Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
148/98.0IDCBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Data do Acordão: 07/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 107º DO RGIT, 113º L. 64-A/08
Sumário: O entendimento segundo o qual o limite de €7500 previsto no art.º 105/1 também é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no art.º 107/1 constitui interpretação «contra legem».
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra –
I – Relatório –
1.1- No processo comum 148/98 do 2º Juízo Criminal de Coimbra, V..., M…, C… e a sociedade «T…, SA» foram condenados pela prática, na forma continuada, do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social nas penas, respectivamente, de 14 meses de prisão os três primeiros e de 300 dias de multa a quarta arguida.
Quanto àqueles foi-lhes suspensa a execução da pena de prisão na condição do pagamento, em três anos, ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social da indemnização arbitrada no valor de € 193.614,55 e respectivos juros de mora.
1.2-Após a alteração do art.º 105º do RGIT operada pelo art.º 113º da Lei n.º 64-A/2008 de 31/12 vieram os arguidos requerer que “fosse aberta audiência nos termos do art.º 371-A do CPP para aplicação do regime jurídico/penal mais favorável, proferindo-se nova sentença que revogando a anterior condene os arguidos somente quanto à não entrega do valor de €9965,55 referente ao mês de Fevereiro de 1997 e os absolva quanto ao mais”.
1.3- O tribunal, por simples despacho, indeferiu a pretensão dos requerentes já que a seu ver o art.º 107º [do RGIT] não foi alterado pela referida Lei.
2- Inconformados, os arguidos recorrem concluindo –
1) Os recorrentes V..., M... e C… foram condenados por sentença de 31/1/2005, confirmada por acórdão de 1/6/2005 do tribunal da Relação, pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social e absolvidos do crime de abuso de confiança fiscal.
2) Todo o procedimento criminal, inquérito e instrução, decorreu de forma autónoma no que respeita aos factos relativos aos dois crimes, que são autónomos entre si, apenas tendo havido apensação dos dois processos em momento anterior à audiência de julgamento a pedido dos arguidos. Situamo-nos, portanto, numa questão distinta da problemática de ao mesmo crime e aos mesmos factos poderem ser aplicadas normas de diferentes leis que sucederam no tempo.
3) A situação dos autos apenas coloca a questão de determinar se aos factos que alegadamente integram o crime de abuso de confiança fiscal poderá ser aplicado o RGIT e aos factos que alegadamente integram o crime de abuso de confiança à segurança social poderá ser aplicado o RJIFNA.
4) No caso estão em causa dois tipos de crimes, o que implica que em causa estejam vários factos puníveis e consequentemente vários momentos em que aqueles foram cometidos, nada obstando a que a cada tipo de crime seja aplicado um regime jurídico consagrado em leis distintas que se sucederam no tempo.
5) Aplicar o regime mais favorável em bloco a crimes diferentes, mas que por apensação dos processos foram julgados em simultâneo, rejeitando a aplicação mais favorável aos factos que integram cada um desses tipos é violar o princípio da lei mais favorável estabelecido no art. 2/4 do Código Penal.
6) Se os processos não tivessem sido apensados, como o foram a requerimento dos condenados, tal questão jamais se teria agora colocado, o que demonstra que a presente questão não é uma questão de sucessão de leis no tempo mas uma questão de aplicação de leis distintas ainda que sucedâneas no tempo a factos e a crimes distintos.
7) Não releva o argumento de que se está a construir regimes particulares pela conjugação de elementos retirados de uma e de outra lei, já que a aplicação de cada regime relativo a cada tipo de crime está a ser aplicado conforme pretendido pelo legislador na medida em que se está a tratar de factos e de crimes perfeitamente autónomos.
8) É manifesto que a teoria da aplicação do regime mais favorável em bloco, de forma unitária, somente é válida quando em causa estão factos que preencham o mesmo tipo de crimes e aos quais sucedem no tempo leis distintas; quando a factos e a crimes diferentes sucedem no tempo leis distintas, vale plenamente o princípio da aplicação da lei mais favorável consagrado no artigo 2/4 do Código Penal.
9) Não obstante, mais paradoxal se torna o caso quando se constata que hoje, pela aplicação em bloco do RGIT, seriam os aqui recorrentes também absolvidos da prática do crime de abuso de confiança fiscal por os valores constantes em cada declaração entregues nas administração tributária não ultrapassarem os €7.500.
10) Por força do princípio de aplicação da lei mais favorável em bloco chegar-se-ia à conclusão que hoje a lei mais favorável aos arguidos relativamente a ambos os crimes é o RGIT, uma vez que o legislador descriminalizou todas as condutas de não entrega de quantias até ao valor de €7.500.
11) O despacho recorrido violou a norma do artigo 2/4 do Código Penal porquanto deveria ter sido esta norma interpretada e aplicada no sentido de se poder aplicar a cada um dos crimes em causa regimes de leis distintas que se sucederam no tempo e não, como decidiu o despacho recorrido, no sentido de se aplicar obrigatoriamente a lei em bloco aos dois tipos de crimes.
12) Por virtude das remissões feitas pelo art.º107/2 do RGIT para o artigo 105º:
- Os factos só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (alínea. a) do n° 4 do art.º 105°, autónoma desde a Lei 53-A/06 de 29112 que aprovou o O.G.E. para 2007, sendo antes o n° 4 do art. ° 105°;
- Os factos só são puníveis se não ocorreram os pagamentos que forem devidos, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (alínea b) do n.º 4 do art.º 105° na redacção dada pela referida Lei 53-A06 de 29/12.
- Os valores a considerar são os que nos termos da legislação aplicável devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária (n° 7 do art. ° 105°);
- Até à revogação do n° 6 do art.º105° e antes da introdução da al. b) do n° 4 a responsabilidade criminal extinguia-se se no prazo de 30 dias após notificação para o efeito ocorresse o pagamento das quantias devidas desde que os montantes em causa não excedessem € 1.000 (na redacção inicial do RGIT) ou € 2.000 (na redacção dada ao n° 6 pelo art° 60° da L 60-A/05 de 30/12 que aprovou o O.G.E para 2006).
13) Assim, sempre se pretendeu que o regime de punição fosse idêntico em ambos os crimes – abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social – sendo apenas diferentes as entidades devedoras das prestações e os fundamentos das dívidas.
14) Por virtude da remissão do n° 1 do art. 107° sempre se teve em conta o montante de € 50.000 previsto no n° 5 do art.° 105° para se qualificar o crime punindo-o mais severamente.
15) Não se compreenderia, pois, que prevendo agora o legislador uma menor severidade quando estão em causa quantias não superiores a € 7.500 se aplicasse tal alteração apenas aos crimes de abuso de confiança fiscal e não também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, não se fazendo a identidade de punições que sempre o legislador entendeu fazer.
16) O núcleo da tipicidade permanece inalterado: a não entrega da prestação tributária retida no prazo legalmente fixado, tal como é referido no indicado acórdão de Fixação de Jurisprudência, ou como refere Susana Aires de Sousa in “Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexão sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador”, pág. 121, "o tipo incriminador realiza-se com a não entrega dolosa das prestações tributárias deduzidas pelo agente que desta foram lesa o património do Estado”.
17) Ou seja, sempre se tiveram em consideração todos os valores referidos no art.º 105° para os aplicar aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social (por virtude das remissões feitas pelo art. ° 107).
18) A não criminalização do não pagamento das quantias devidas à Segurança Social até ao montante de € 7.500 não significa que tais quantias não continuem a ser devidas, sendo elas de cobrar pelos meios processuais próprios.
19) Foi o próprio Estado que entendeu "desinteressar-se" criminalmente falando das quantias devidas até € 7.500, tendo-o feito, é certo, antes de se conhecer a extensão da crise (aquando da preparação do O.G.E. ainda não eram conhecidos os actuais contornos da crise).
20) Tal limite de € 7.500 já existia para o crime de fraude contra a segurança social, conforme já se referiu, pelo que entender-se agora que esse limite se verifica também para o crime de abuso contra a segurança social nada tem de novo.
21) Se o objectivo (ou um dos objectivos) do legislador ao estabelecer o limite de €7.500 foi o de descongestionar os tribunais retirando-lhes processos/crime em que estavam em causa valores diminutos, então mais uma razão para se entender que tal limite deve ser tido em conta também quando está em causa a Segurança Social pois que assim mais processos serão arquivados.
22) A continuação da criminalização de determinada conduta não deve ser entendida por razões meramente economicistas, ainda para mais quando só é crime quando o credor é o Estado, seja a Administração Tributária seja a Segurança Social, pois que a não ser assim então que se criminalize também o não pagamento das dívidas dos empresários aos seus fornecedores e aos seus trabalhadores uma vez que o seu não pagamento também afecta a economia.
23) A remissão feita pelo art.º 107/1 do RGIT para o art.º105/1do RGIT deve ser entendida também para o caso em que não haja pena, por não haver crime, como acontece quando o valor em causa não excede €7.500.
24) As razões expostas estão conforme a jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-2-2009, consultado em www.dgsi.pt
25) A Lei do Orçamento de Estado para 2009 procedeu à alteração do n.º1 do art.º 105º do RGIT e revogou o seu n.º6. Apesar dessa alteração, a mesma lei do Orçamento de Estado não procedeu a qualquer alteração ao artigo 107. ° do RGIT mantendo no n.º2 deste artigo a remissão para o n.º6 do artigo 105º, que entretanto foi revogado.
26) É manifesto, portanto, que o legislador por lapso não procedeu à alteração do artigo 107º do RGIT, tendo mantido uma remissão para uma norma revogada; e se assim é, se o legislador pretendia alterar o artigo mas por lapso o não fez – como refere o próprio despacho em crise – “se o legislador disse menos do que porventura quereria” – há que aplicar as regras e os princípios gerais de direito, nomeadamente de interpretação da lei, de forma a se alcançar um resultado justo e coerente com todo o sistema jurídico/­penal.
27) Segundo o princípio da igualdade perante a lei, o legislador não pode tratar arbitrariamente o essencialmente igual como desigual nem o essencialmente desigual arbitrariamente como igual, sendo que está ao seu alcance e até lhe é exigível efectuar diferenciações entre duas situações desde que assentes em princípios de racionalidade e de justiça, ou seja, quando exista uma justificação racional e objectiva, não arbitrária.
28) Questiona-se se se verificam circunstâncias ou razões específicas na situação de o sujeito passivo reter € 50 dos salários dos seus trabalhadores e os não entregar à Segurança Social, quando comparado com a não entrega à Administração Tributária de €50 ou mesmo €7.500 que já tinham sido retidos a título de IRS também dos seus trabalhadores.
29) Mesmo que se leve em conta a distinção existente entre os bens jurídicos de ambos os crimes, aquela distinção é ao nível do sujeito lesado – no crime de abuso de confiança à Segurança Social o lesado é a Segurança Social enquanto no crime de abuso de confiança fiscal o lesado é a administração fiscal – e não ao nível objectivo.
30) E, ainda assim, àquele nível, a aproximação entre os dois tipos de crime é tão intensa que em última análise é sempre o Estado o lesado, pelo que também não é com base neste argumento que se encontrará fundamento para tratar de forma diferente situações essencialmente iguais.
31) A interpretação da lei não se deve cingir à sua letra mas reconstituir-se a partir dos textos o pensamento legislativo tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (art.º 9/1 do Código Civil).
32) A referência à unidade do sistema jurídico e ao espírito da lei apenas pode significar no presente caso que a descriminalização de condutas operada pela lei do Orçamento do Estado relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal tem plena aplicação ao crime de abuso de confiança à segurança social, sob pena de tal unidade e espírito ficarem comprometidos.
33) O mesmo resultado é atingido quando se entenda que o esquecimento do legislador aquando da elaboração da Lei 64-A/2008 de 31 de Dezembro de não alterar o artigo 107º do RGIT constitui um caso de lacuna.
34) No presente caso, por via do disposto no artigo 10/1 do Código Civil, dever-se-á aplicar por analogia legis o previsto para o crime de abuso de confiança fiscal.
35) Tendo em consideração que no caso dos autos apenas a declaração de Dezembro de 1997 ascende ao valor constante no artigo 105/1 do RGIT [€9.965.55] conclui-se que a lei nova é mais favorável ao arguido, o que constitui fundamento para a reabertura da audiência nos termos do disposto no artigo 371° – A do Código de Processo Penal.
36) A decisão recorrida deveria ter interpretado a norma do artigo 113° da Lei 64-A/2008 de 31 de Dezembro – na parte em que altera o artigo 105° do RGIT – no sentido de se aplicar também ao crime de abuso de confiança à Segurança Social.
37) Ou caso assim não se entenda, a decisão deveria ter aplicado a norma do artigo 113° da Lei 64-A/2008 na parte e que altera o artigo 105° do RGIT – analogicamente ao crime de abuso de confiança à Segurança Social.
38) A decisão recorrida violou o disposto no artigo 13° da C.R.P e no artigo 113° da Lei 64­A2008.
3- Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido pelo infundado do recurso.
O juiz recorrido sustentou o seu despacho.
E o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu no mesmo sentido o parecer de fls. 1510/1513.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II – Apreciação –
Quanto a nós o despacho recorrido não merece censura. É o que tentaremos demonstrar.
A Lei n.º 64-A/2008 de 31/12 introduziu uma alteração ao n.º1 do art.º105º do RGIT pela qual só constituem crimes de abuso de confiança fiscal as faltas de entrega à administração tributária de prestações tributárias deduzidas de valor superior a €7.500 (cfr. art.º 113º da referida Lei).
Questiona-se, então, a ponderação de tal valor também quanto ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do RGIT.
A questão está a provocar divergências jurisprudenciais. Enquanto uns entendem que a alteração é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social (Ac. da RL de 25-2-2009; Ac. RG de 23-3-2009), outros sustentam o contrário (Ac. RC de 4-3-2009; Ac. da RP de 25-3-2009).
A redacção do art.º 105º/1 do RGIT era «Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, a prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias».
A alteração determinada no art. 113° da Lei 64-A/2009 de 31de Dezembro circunscreveu-se à introdução dum limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando a exigir que ela seja «de valor superior a € 7500».
Por força da alteração a redacção do art.º 105°/1 é agora «Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias».
Mas manteve-se inalterada a redacção do artigo 107°/1, que continua a ser «As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art. 105°».
Se bem atentarmos nos transcritos segmentos legais, neles define-se o que deva entender-se, respectivamente, por crime de abuso de confiança fiscal e por crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Constata-se que não são idênticas as respectivas previsões. Efectivamente, o elemento gramatical é a regra de ouro quando se trate da previsão de tipos legais de crime.
Dum modo geral, o ponto de partida na interpretação de qualquer lei é o seu elemento literal. Elemento este irremovível (Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, Lisboa, 13ª ed. 2005, pág. 396) e que assume especial acuidade quando se trate de definir tipos legais de crime atento os princípios da legalidade e da tipicidade.
Pela simples leitura dos preceitos constata-se, por um lado, que os elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social constam integralmente do n.º1 do art.º 107° que permaneceu intocado perante as alterações introduzidas no RGIT pela Lei 64-A/2008; pelo outro, que a remissão constante do artigo 107°/1 se circunscreve às penas.
Assim, como se diz no Ac. da RG de 23/3/2009, a falta de remessa no art.º 107º para o novo valor inscrito no art.º 105/1 encerra só por si as portas à aplicação da restrição ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.
O argumento de que não faz sentido que se interprete a mesma norma de duas formas diferentes, consoante a remissão se faça para o n.º1 ou para o n.º5 do mesmo preceito (cfr. neste sentido o citado Ac. da RG de 23/3/2009) não colhe pois não há quaisquer diferentes atitudes de interpretação já que o n.º5 do art. 105º se limita à previsão duma circunstância qualificativa que apenas releva quanto à penalidade aplicável.
A favor da repudiada tese observou-se no Ac. da RL de 25-2-2009 que “não se compreenderia que prevendo agora o legislador uma menor severidade quando estão em causa quantias não superiores a €7.500 se aplicasse tal alteração apenas aos crimes de abuso de confiança fiscal e não também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, não se fazendo a identidade de punições que sempre o legislador entendeu fazer”.
Tal visão carece de qualquer valor interpretativo pois só o legislador está em posição de ajuizar da oportunidade das alterações a introduzir no tecido penal.
A dar-se-lhe valia corresponderia à possibilidade de criação ou de alteração pela via jurisprudencial de tipos legais de crime, o que é insustentável.
O art.º 1º do Código Penal consagra o princípio da legalidade e seu corolário lógico é o princípio da tipicidade, pelo qual cabe à lei e só a esta especificar quais os factos ou condutas que constituem um crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação duma pena. Por isso importa que a sua definição seja tanto quanto possível precisa.
Com função primacialmente garantística impõe-se que só a lei possa delimitar uma função delituosa. Donde a sua consagração no art.º 29º da CRP e a apresentação da lei penal como um sistema fechado, sem possibilidade de aplicação analógica ou extensiva (embora nesta última com indefinição sobre o que ela realmente constitui).
A isto adite-se que é da competência relativa da Assembleia da República a definição dos crimes e penas. E que o legislador ordinário tem uma ampla liberdade de conformação dos tipos dentro do respeito dos princípios constitucionais.
Não obstante alguma semelhança decorrente da igual conformação dos tipos em causa (ambos omissivos puros cuja consumação ocorre com a não entrega de prestações/contribuições deduzidas) e a identidade dos regimes punitivos, os tipos em causa são autónomos e encontram previsão em diferentes capítulos o RGIT.
Servem de exemplo a autonomia, o limite a partir do qual a conduta é punível no crime de fraude fiscal (€15.000/artigo 103º/2) e no crime de fraude contra a segurança social (€7500/artigo 106/1); bem como a previsão dum regime sancionatório especial quanto aos ilícitos contraordenacionais contra a Segurança Social (art.º 1º/2 da Lei 15/2001).
Não há que fazer apelo ao princípio da igualdade já que se trata de crimes que protegem bens jurídicos diversos.
Em conclusão –, o entendimento segundo o qual o limite de €7500 previsto no art.º 105/1 também é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no art.º 107/1 constitui interpretação «contra legem», a todos os títulos inadmissível.
A orientação que em termos sintéticos aqui se deixa delineada é uniforme nesta Relação.
III – Decisão –
Termos em que se confirma o despacho recorrido.
Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça pelo mínimo.
Coimbra,