Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3623/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ATAÍDE
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PAGAMENTO VOLUNTÁRIO
Data do Acordão: 01/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 155º, N.º 3, DO C. DA ESTRADA
Sumário: I- Depois de paga voluntariamente a coima apenas se pode apresentar defesa restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável, sem discutir a verificação da infracção.
II- Tal entendimento não padece de qualquer inconstitucionalidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

No recurso de contraordenação nº 294/05, do tribunal judicial de Trancoso, o arguido A... viu confirmada a decisão que o condenou numa coima e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 90 dias ao abrigo do disposto nos arts. 69°, n.° 1 e 76°, ai. a), do Dec. Reg. n.° 22-A/98,01.10, e 146°, ai. i), 137°, 140º e 144º, todos do Código da Estrada.

Inconformado com tal decisão interpôs recurso, em cuja motivação formulou as seguintes conclusões:

1.- Apesar de paga voluntariamente a coima, pode-se discutir a existência de contra-ordenação quando for aplicada uma sanção acessória;

2.- Se não fosse possível discutir a existência da infracção, estamos perante uma inconstitucionalidade por restrição de direitos fundamentais;

3.- O recorrente em sua defesa alegou que passou o sinal amarelo e não o vermelho;

4.- Referiu que só não parou porque estava muito próximo do semáforo quando a transição de cores se deu, não querendo pôr em perigo a circulação rodoviária.

5.- Conclui pedindo a suspensão acessória de inibição de conduzir ou sujeição à prestação de caução de boa conduta;

6.- Por isso deveria o tribunal recorrido pronunciar-se sobre a totalidade do recurso.

O recurso foi admitido

Na contra-motivação apresentada a Digna Procuradora - Adjunta concluiu:

I. A decisão recorrida julgou parcialmente improcedente a impugnação judicial apresentada por A..., fundando-se numa interpretação e aplicação correctas do disposto nos art. 153 n. 1 e 5, e 155 n. 3, ambos do Código da Estrada (na redacção do Decreto-Lei n. 265-A/2001, de 28.09);

2. Nos termos do primeiro dos apontados artigos, «é admitido o pagamento voluntário da coima, pelo mínimo, nos termos e com os efeitos estabelecidos nos números seguintes» (cfr. n. 1 do art. 153 do Código da Estrada), sendo certo que «o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o arquivamento do processo, salvo se a contra-ordenação for grave ou muito grave, caso em que prossegue restrito à aplicação da inibição de conduzir» ( cfr n. 5 do mesmo normativo);

3. Já nos termos do disposto no art. 155 n. 3, do Código da Estrada, «o arguido que proceda ao pagamento voluntário da coima não fica impedido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável.

4. Donde resulta que, na defesa por si apresentada - vertida no recurso de impugnação da decisão administrativa que deu origem a estes autos -, não poderia o arguido, ora recorrente, invocar, como invocou, a não verificação da infracção por cuja prática lhe foi aplicada a coima que o mesmo pagou de forma voluntária, mas tão só, querendo, contestar a gravidade da dita infracção e a medida ou forma de execução da sanção de inibição de conduzir aplicada pela dita decisão administrativa;

5. Ao invocar, no recurso de impugnação judicial de tal decisão administrativa, não ter praticado a contra-ordenação que conduziu à aplicação e posterior pagamento voluntário de coima, o ora recorrente não poderia senão ver, como viu - por força da decisão recorrida -, julgada parcialmente improcedente tal.

6. Por tudo o que fica dito, não pode a decisão recorrida ter-se por violadora do disposto no mencionado art. 155 n. 3, do Código da Estrada (na redacção do Decreto-Lei n. 265-A/2001, de 28.09), uma vez que não ignora os valores inerentes a tal preceito, e invoca os princípios e as normas legais atinentes à questão que concretamente se propôs analisar.

Igual posição assumiu nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

Começando por delimitar o âmbito e o objecto do recurso que o mesmo apenas visa o reexame de direito, colocando neste âmbito o problema de saber se paga a coima o arguido pode questionar a verificação da infracção estradal ou apenas pode prosseguir a sua defesa sobre a aplicação da sanção inibitória de condução

Estão provados os seguintes factos:

1.- No dia 09.11.2004, pelas 23 horas e 45 minutos, na E.N. 226, ao Km 85,700, Trancoso, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula 41-06-ST.

2.- Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o recorrente foi autuado por não parar ao sinal luminoso imposto pela luz vermelha de regulação do trânsito.

3.- O arguido efectuou o pagamento voluntário da coima.

4.- O recorrente tem averbada ao seu RIC a prática de:

- uma contra-ordenação grave, praticada em 16.02.2004, tendo sido aplicada sanção de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa na sua execução por 180 dias;

- uma contra-ordenação muito grave, praticada em 06.10.2003, tendo sido aplicada sanção de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa na sua execução pelo período de 180 dias.

5 - O arguido necessita da carta de condução para trabalhar.

Como resulta dos presentes autos, do teor da decisão recorrida e do próprio requerimento de interposição de recurso apresentado, o requerente procedeu ao pagamento voluntário do montante da coima aplicada.

De acordo com o artigo 153°, n°1 do Código da Estrada, nos casos de contra-ordenações estradais é admissível o pagamento voluntário da coima respectiva, pelo mínimo.

Tal pagamento voluntário da coima, como se disse, efectuado pelo mínimo, determina o arquivamento do processo, salvo se a contra-ordenação for grave ou muito grave, caso em que prossegue restrito à aplicação da inibição de conduzir — artigo 153º, n°5 do Código da Estrada.

O pagamento voluntário, que implicava a aplicação automática da sanção de inibição de conduzir pelo mínimo, caso a infracção fosse punida com essa sanção, não produz agora qualquer efeito em relação a essa mesma sanção, prosseguindo o processo apenas para esse efeito.

No caso dos autos, o arguido recorrente pagou voluntariamente a coima (pelo mínimo legal) correspondente à contra-ordenação praticada, pelo que o processo prosseguiu para apreciação da matéria relativa à aplicação da inibição de conduzir.

Concluiu o Srº Juiz recorrido que não pode o tribunal, nestas circunstâncias, aferir da prática ou não da contra-ordenação, pois que o arguido/recorrente, ao pagar a coima pelo mínimo, assume a referida prática. No nosso entender segundo a orientação expressa consagrada na lei.

Como se refere na sentença recorrida o arguido não pode pagar a coima pelo mínimo e depois pretender discutir a verificação ou não da contra-ordenação. Se tal fosse admissível, estava encontrada a forma dos infractores pagarem sempre as coimas pelo mínimo legal, bastando para tal que efectuassem o respectivo pagamento voluntário, impugnando depois judicialmente a decisão da autoridade administrativa, pois que mesmo não sendo procedente tal impugnação, o tribunal não poderia alterar o montante da coima por força da proibição da “reformatio in pejus”, plasmada no artigo 72°-A, do RGCO.

Cita a propósito um Acórdão da Relação do Porto de 11.03.98, in www.dgsi.pt.jtrp “tendo o arguido pago voluntariamente o mínimo da coima prevista para a contra-ordenação que lhe era imputada, isso significa que se conformou com os factos relativos a tal contra-ordenação. Prosseguindo o processo apenas para aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, o tribunal apenas tinha que enumerar os factos atinentes a essa sanção e já não apreciar a matéria de facto relativa à contra-ordenação.”

Alega o recorrente que ao contrário da posição defendida na sentença recorrida, o facto do recorrente ter pago voluntariamente a coima pelo mínimo, não lhe coarcta a possibilidade de, em sede judicial, discutir a verificação ou não da contra – ordenação.

E cita a propósito o acórdão da relação de Guimarães datado de 25/10/04 que decidiu que, apesar de paga voluntariamente a coima, pode-se discutir a existência da contra-ordenação quando for aplicada uma sanção acessória, atento o disposto no nº 3 do art.°155° do C. Estrada, que refere:” O arguido que proceda ao pagamento voluntário da coima não fica impedido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável”.

Segundo este acórdão a interpretação do preceito em causa vai no sentido de que o arguido, porque pagou voluntariamente a coima, não pode discutir a existência da infracção, mas apenas na parte que diz respeito a essa mesma coima.

Pode, todavia, discutir a infracção no que toca à gravidade da mesma.

E pode discuti-la quanto à sanção de inibição de conduzir. E, neste aspecto, em toda a sua extensão. Ou seja, pode querer demonstrar que não praticou a infracção ou que praticou infracção diversa.

O vocábulo “aplicável” aponta, sem sombra de dúvida, neste sentido.

Se o legislador entendesse que não podia discutir-se a existência da infracção utilizaria o vocábulo “aplicada”. Este teria como única referência a infracção em causa. O vocábulo aplicável abrange a própria incriminação.

E acrescenta … Mas, se assim fosse – não poder discutir-se a existência da infracção – estaríamos em face de norma violadora do n.º 1 do art.º 32º da CRP e, por isso, inconstitucional já que se estaria a restringir ao arguido direitos fundamentais.

Salvo o devido respeito permitimo-nos discordar deste entendimento. A alusão ao adjectivo aplicável faz todo o sentido, pois a inibição ainda não foi aplicada, vai ser aplicada em função da gravidade da infracção. Repare-se que o preceito parte do princípio que a infracção está assumida e verificada, por isso apenas permite a discussão da sua gravidade e não faz alusão à discussão de origem.

Como refere o Ministério Público nas suas alegações, se, à semelhança do recorrente, nos socorrermos dos vocábulos utilizados pelo legislador, sempre cumprirá notar que, se no caso de proceder ao pagamento voluntário da coima o arguido pudesse, ainda assim, defender-se sem quaisquer restrições, alegando mesmo a não verificação da infracção – conforme pretende o recorrente - , então não faria sentido a aposição, na letra da lei, do vocábulo « restrita ».

O recorrente, face á letra da lei, apenas poderá discutir a gravidade da infracção e a sanção de inibição de conduzir, na sua medida e na sua execução.

Mas será que o preceito, com esta leitura, padece de inconstitucionalidade?

No âmbito dos direitos e deveres fundamentais dispõe o art. 32º n.10 da Constituição que nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

Por sua vez em relação ao processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso – art. 32º n.1.

Só pela simples leitura, verificamos que há diferenças sensíveis entre o processo crime e regime geral de contra-ordenações, sobre o primeiro fala-se em todas as garantias e para o segundo assegura-se o direito de audiência e defesa.

O n.1 constitui uma cláusula geral que inclui não só todas as garantias explicitadas nos números seguintes mas também as demais que decorressem da necessidade de efectiva defesa do arguido em processo penal. É esse o seu significado actual, a que acresce a explicitação do direito ao recurso, acrescentada na revisão de 1997.

Todas as garantias de defesa não são as garantias que a lei formalmente concede, mas, no quadro dessas garantias e dos princípios estabelecidos pela constituição e pelas leis, todos os meios que em concreto se mostrem necessários para que o arguido se faça ouvir pelo juiz sobre as provas e razões que apresenta em ordem a defender-se da acusação que lhe é movida.

O arguido é tomado como sujeito processual a quem devem ser asseguradas todas as possibilidades de contrariar a acusação, a independência e imparcialidade do juiz ou tribunal e a lealdade do procedimento.

O n. 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra - ordenacional, administrativa, fiscal, laboral disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação, pois que só há defesa perante uma acusação. A constituição proíbe absolutamente a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida a possibilidade de se defender. O direito de se defender é por muitos considerado um princípio natural de qualquer tipo de processo, uma exigência fundamental do Estado de Direito material Veja-se neste sentido, segundo texto que reproduzimos, as anotações do Profº Jorge Miranda ao art. 32º da Constituição, na edição de 2005.

Do exposto resulta que as diferenças entre o processo penal e processo contra –ordenacional são de monta.

Ao primeiro são garantidas todas as defesas, sem excepção das que estão contempladas no preceito constitucional, como seja presunção de inocência, defesa oficiosa, instrução, audiência de julgamento necessária, presença do arguido, critérios apertados de obtenção de prova, intervenção necessária de um tribunal, etc.

Ao segundo apenas a necessária audição e possibilidade de defesa.

Porventura ciente deste dever constitucional, o Dec. Lei nº 244/95 de 14 de Setembro que alterou regime geral das contra-ordenações reforçou os direitos e garantias dos arguidos, destacando a fixação de regras sobre a atenuação especial da coima e a previsão de tal atenuação nos casos de tentativa e cumplicidade, bem como a revisão do regime das sanções acessórias, estabelecendo com rigor os respectivos pressupostos e, em especial, fazendo depender a sua aplicação de uma ligação relevante com a prática da contra-ordenação.

A constitucionalidade do regime do regime contra-ordenações, está desde logo assegurada pelo art. 50º que estabelece que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.

E em perfeita sintonia com o disposto no art. 50-A do regime geral das contra- ordenações sobre o pagamento voluntário da coima, com certeza de absoluta constitucionalidade, surge o art. 155º do Código da Estrada a garantir a defesa restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável.
No regime geral das contra-ordenações, porque não jogam necessariamente todos os direitos constitucionais do art. 32, o arguido pode aceitar que cometeu a infracção e por isso ser condenado. Ao aceitar passivamente a comissão da infracção não perde o direito de defesa sobre a sanção acessória.
Do exposto resulta que o arguido quando procedeu ao pagamento voluntário da coima, aceitou a comissão da infracção e a partir desta fase podia e devia defender-se da medida da aplicação da sanção acessória, como efectivamente o fez. Simplesmente como não podia beneficiar da medida excepcional de suspensão desta, oportunamente apreciada pela entidade administrativa e em recurso por autoridade judicial, viu aplicada a medida acessória na medida proporcional à gravidade da infracção.
Foram-lhe garantidos o direito de audiência e de defesa em estrito cumprimento do art. 32º n.10 da Constituição.
Pelo exposto concluímos que o art. 155º n.3 do Código da Estrada não padece de qualquer inconstitucionalidade com o leitura que mereceu na sentença recorrida e como tal o recorrente depois de paga voluntariamente a coima apenas pode apresentar defesa restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável, sem discutir a verificação da infracção a qual está necessariamente assumida como tendo ocorrido.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente – 6 UC de taxa de justiça.

Coimbra 18 de Janeiro de 2006