Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
330/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
IMPUTABILIDADE
Data do Acordão: 07/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 488.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A imputabilidade surge como um requisito prévio ou pressuposto da imputação do facto ao agente a título de culpa, sendo uma qualidade natural que decorre do agente se encontrar no uso das suas faculdades mentais e poder actuar livremente.
2. Uma pessoa normalmente imputável pode praticar actos desprovidos daquela qualidade, actos que não lhe são atribuíveis num plano ético-jurídico.
Sendo o autor da lesão maior de sete anos, é de presumir a sua imputabilidade, pelo que recai sobre aquele o ónus de provar que estava incapacitado de entender ou de querer no momento da prática dos factos, ou seja, o ónus da prova da sua inimputabilidade
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                     I)- RELATÓRIO

A COMPANHIA DE SEGUROS A….. intentou acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra B.....pedindo a condenação do Réu a pagar a quantia de Esc. 963.900$00 quantia esta acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação e até integral pagamento.

Para fundamentar a sua pretensão a Autora alegou, em síntese, o seguinte:

-Celebrou, no exercício da sua actividade, um contrato de seguro do ramo Roubo – Fraudes de Empregados com o Banco C....., titulado pela apólice n.º 8315109, garantindo os prejuízos que o segurado Banco sofresse sobre dinheiro, títulos, valores e letras em virtude de fraudes cometidas pelos empregados designados na apólice, quando no exercício das suas funções;

-O Réu, empregado do dito Banco, apropriou-se abusivamente de valores pertencentes ao seu segurado proveniente de depósitos que lhe foram entregues no serviço móvel para crédito na conta de um cliente do Banco;

-As fraudes iniciaram-se em 29 de Agosto de 1997 e seguiram-se durante o ano de 1997 e 1998;

- Em consequência dessa fraude, o Banco segurado sofreu um prejuízo patrimonial no valor de 2.215.000$00, tendo a Autora pago em 14 de Janeiro de 2000 a quantia de Esc. 963.9000$00, porquanto, e nos termos do contrato, a Autora só tem de indemnizar o tomador no período de seis meses anteriores à participação do sinistro, tendo esta participação ocorrido em 1 de Junho de 1998.

-Ficou sub-rogada nos direitos do Banco segurado contra o Réu causador do sinistro, nos termos do artigo 17.º das Condições Gerais da Apólice do Seguro de Roubo, arts. 589.º e 592.º, n.º 1 do Código Civil e 441.º do Código Comercial.

Regularmente citado, contestou o Réu para concluir pela improcedência da acção, alegando, em resumo, ter sido funcionário bancário na agência de Cernache do Bonjardim do Banco C…., onde exercia a sua função de caixa móvel, admitindo não só ter recebido quantias do Sr. D....., cliente do Banco, durante o período invocado na petição inicial, como admite não ter entregue as quantias na instituição bancária onde trabalhava. Todavia, não se apropriou fraudulentamente de qualquer quantia nem as usou em proveito próprio.

Só o Réu admite ter recebido e não entregue ao Banco as ditas quantias, porque na data da prática dos factos sofria de graves problemas de saúde, sendo diabético, hipertenso, com isquemia de miocárdio, flebitrombose da perna esquerda tendo tido um enfarte agudo do miocárdio aos 44 anos, e  realizado operação para colocação de “Bypass ao co-externo de artéria mamaria interna esquerda para a artéria descendente anterior, condicionando tais problemas o seu modo de vida. Diz ainda que padece de perturbações depressivas reactivas, alterações cerebrais com manifestação de amnésia e desconcentração, tendo  o seu estado de saúde culminado com a reforma por invalidez, em 27.07.1998. Não encontra explicação para os factos que lhe são imputados, como não se recorda de os ter praticado, desconhecendo o destino que deu ao dinheiro, se o perdeu, se o depositou na conta de outro cliente ou se ocorreu qualquer outra situação. Mais assevera que esse comportamento não é consentâneo com o seu brio profissional só encontrando explicação no estado de alteração mental/demencial aquando dos factos que lhe são imputados. Dispôs-se, no entanto, a pagar ao Banco a quantia reclamada que passaria pela concessão de um empréstimo, cujas prestações seriam deduzidas no seu ordenado. Em 22/09/1999 o BTA propõe ao Réu a retenção mensal equivalente a 1/6 da sua pensão de reforma sendo que foram sendo feitos até à data descontos nas retribuições do Réu, por este autorizado. Acordo este que está a ser cumprido integralmente, tendo o contrato de seguro sido mal accionado até porque para existir fraude terá que existir o elemento volitivo e tal não acontece. Alegou por fim não estar ainda determinada a quantia devida – pois que na petição inicial se faz referencia ao montante de 2.215.000$00 e o BTA reclamou ao Réu a quantia de 2.130.820$00 – pelo que não são devidos juros de mora. 

Proferiu-se despacho saneador e seleccionou-se a factualidade relevante, sem qualquer reclamação. O Réu requereu sujeição a exame psiquiátrico, tendo por objecto os factos vertidos nos n.ºs 10, 11, 12, e 14 a 25 da base instrutória. Foi admitida a realização de exame médico-legal na pessoa do Réu, mas indeferida a prova pericial tendo por objecto a factualidade dos n.ºs 15, 17, 19, 21, 23 e 25.

O Réu não se conformou com tal decisão, dela agravando e alegando, como se vê de fls. 367 e 402 a 405. A Autora contra-alegou em defesa do julgado, como decorre de fls.410 a 414.

Após audiência de julgamento foi proferida sentença a julgar a acção totalmente procedente e provada, sendo o Réu condenado a pagar à Autora a quantia de € 4.807,91 (correspondente a Esc. 963.900$00), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a citação até integral pagamento.

Irresignado com tal decisão, apelou o Réu, continuando a insistir na absolvição do pedido, e extraindo da sua alegação de recurso as seguintes conclusões:

1ª-Como causa de pedir e atendendo às condições da apólice junta à petição inicial, a Autora reclama a condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de 963.900$00.

2ª-Isto porque, a Autora diz que o Réu se apropriou fraudulentamente dessa quantia.

3ª-Pois, para que o seguro seja accionado não basta uma mera apropriação desse dinheiro, como resulta das condições da apólice:

4ª-É necessário que a mesma seja fraudulenta.

 5ª-Ou seja, que seja um acto voluntário, consciente de apropriação indevida.

6ª-Ora, se é verdade que se deu como provado que o Réu fez suas as quantias reclamadas na presente acção.

7ª-Não se deu como provado que essa acção fosse consciente, com a intenção de fazer sua coisa alheia.

8ª-Sendo que o Réu logrou provar (o que até nem sequer era necessário) que padecia de alteração orgânica demencial, dificuldades de concentração, memorização, perturbações de Precordilalgias, perturbações do sono, queixava-se de alterações de memória recente e passada, perturbações depressivas reactivas, amnésia e desconcentração que se foi agravando com o decorrer do tempo.

9ª-O que levou à sua reforma por invalidez em 21.07.1998.

10ª-Ou seja, no próprio ano da prática dos factos que lhe são imputados.

11ª-O que bem atesta a saúde mental do Réu à data da prática dos factos que lhe são imputados.

12ª-Logo não tendo sido dado como provado que tal apropriação foi fraudulenta.

13ª-Isto é, que o Réu teve consciência e o querer de praticar tal acto.

14ª-Devia a acção ter sido julgada improcedente por não provada.

A Autora contra-alegou em defesa do julgado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                     II)- OS FACTOS

Na sentença sob exame foi dada por assente a seguinte factualidade:

1-A Autora dedica-se à actividade seguradora.

2-No exercício da sua actividade a Autora celebrou com o C.....o acordo titulado através da apólice n.º 8315109 e designado “contrato de seguro”, através do qual assumiu todos os prejuízos que o C.....sofresse com dinheiros, valores títulos e letras em virtude de fraudes cometidos pelos seus empregados designados na apólice, quando no exercício das suas funções.

3-O Réu era funcionário na agência de Cernache do Bonjardim do C…., onde exercia as funções de Caixa-Móvel.

4-No período compreendido entre 29.08.1997 e o ano de 1998, o Réu no exercício das suas funções, recebeu do Sr. D....., cliente do Banco C…., por sete vezes, quantias em dinheiro para crédito da conta daquele n.º 11971277/001 e não as entregou no referido Banco.

5-As quantias referidas em 4) foram recebidas pelo Réu no serviço móvel para depósito.

6-As quantia referidas em 4) ascendem ao montante de 2.215.000$00.

7-Em 5 de Maio de 1998, o cliente lesado comunicou à Gerência do Estabelecimento de Cernache de Bonjardim que tinha uma diferença no saldo da conta.

8-O cliente informou, também, que tinha apresentado a mesma reclamação junto do Réu B....., e que lhe entregara os talões dos depósitos efectuados nos anos de 1996 a 1998, bem como os registos de movimentos da conta.

9-O Réu não procedia à certificação por terminal das quantias referidas em 4).

10-a fim de as usar suas, o que sucedeu.

11-O C.....restituiu ao cliente as quantias referidas em 4).

12-O C.....participou o facto à Autora em 1 de Junho de 1998.

13-Em virtude do acordo referido em 2) a Autora pagou ao Banco C…, em 14/01/2000, a quantia de Esc. 963.900$00.

14-O Autor reformou-se em 21.07.1998 por invalidez.

15-Já antes de 1996 o Réu era diabético, hipertenso, sofria de isquemia do miocárdio, flebitrombose da perna esquerda.

16-e teve um enfarte do miocárdio aos 44 anos.

17-Em 13.021992, o Réu realizou uma operação no Hospital da Universidade de Coimbra, consistente na colocação de Bypass Ao/Co – Enxerto de artéria mamaria interna esquerda para a artéria descendente anterior. Excerto de artéria mamaria interna direita um enxerto livre para a artéria marginal. Enxerto de via safena para a artéria coronária direita.

18-operação essa delicada e de grande risco.

19-O Réu era uma pessoa alegre e extrovertida.

20-O Réu padecia de sintologia varicosa dos membros inferiores, que se foi agravando, com o decorrer do tempo.

21-e de perturbações depressivas reactivas, alterações circulatórias cerebrais com manifestação de amnésia e desconcentração que se foi agravando com o decorrer do tempo.

22-O Réu queixou-se de alterações de memória recente e passada a um médico.

23-Em 30.06.1998 o R. realizou Tac-craneo-encefalico, que revelou pequena área de hipodensidade no hemisfério cerebeloso direito sendo sugestiva de pequeno foco lacunar isquemio , não recute.  Padrão de discreta atrofia cortiço sub-cortical difusa, com acentuação moderada dos sulcos da convexidade de modo bilateral e simétrico e MMST = 2 com alterações para o calado mental.

24-o Réu sofre de alteração orgânica demencial.

25-Em virtude do referido em 15) a 23), o R. requereu a sua reforma por invalidez.

26-o Réu sofre de insuficiência circulatória cerebral, cansaço, hipertensão arterial, obesidade, dislopidencio, com dificuldades de concentração, memorização, dificuldades de comunicabilidade com o público, perturbações de Precordialgias, fácil irritabilidade e perturbações de sono.

27-o R. foi bancário durante vários anos.

28-A assinatura e letra dos documento junto pelo R. aos autos como Documento 4)  é do Dr. …….

Como resulta do despacho de fls. 663 a 671, foram considerados provados os quesitos n.ºs 6 e 18, cuja redacção é a seguinte:

a fim de as fazer suas, o que sucedeu”- n.º6

O R. padecia de sintomatologia varicosa dos membros inferiores, que se foi agravando com o decorrer do tempo”- n-º18.

Sendo manifesto o erro de escrita, uma vez que se fez constar o verbo “usar” em vez de “fazer” e a expressão “sintologia” em vez da palavra  “sintomatologia”, procede-se à correcção dos n.ºs 10 e 20 da factualidade assente em conformidade com o teor dos mencionados quesitos. No tocante à demais factualidade, que não mereceu impugnação, considera-se a mesma definitivamente fixada.

                                      III)- O DIREITO

Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação (arts. 684º, n.º3 e 660º, n.º2, ambos do CPC).  Cabe assim conhecer de todas as questões colocadas nas conclusões,- exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras,- e apenas dessas questões, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (n.º 2 do art. 660º, n.º2 do CPC). E sem esquecer que os recursos destinam-se a reapreciar questões já apreciadas e não a decidir questões novas, não colocadas ao tribunal recorrido.

A)- AGRAVO

Visto ainda o disposto o disposto no n.º1 do art. 710º do CPC, atentemos em primeiro lugar no recurso de Agravo interposto pelo Réu contra o despacho exarado a fls. 362.

A este respeito, flui dos autos (fls. 118) ter o Réu requerido prova pericial nos seguintes termos:

Requere-se a realização de prova pericial à pessoa do R., na especialidade de psiquiatria, a realizar no Instituto de Medicina Legal de Coimbra, tendo por objecto os factos constantes nos artigos 10), 11), 12), 13), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 22), 23), 24), 25) e 26) da base instrutória.

Tal prova deverá ser instruída, como os documentos n.º4, 5, 6, 7, e 8 juntos à contestação e com os que agora se requerem, a fim de que os senhores peritos possam documentar-se para a perícia a realizar”.

A fls. 220 foi solicitado ao IML de Coimbra a realização de exame médico-legal ao R., com o objecto constante de fls. 118.

Junto a fls. 333 a 337 o relatório da perícia psiquiátrica médico-legal, requereu e insistiu o Réu que os peritos respondessem em concreto à matéria dos mencionados quesitos.

Notificado de tal requerimento, o IML veio dizer que a resposta concreta a tal matéria sai fora do âmbito estritamente psiquiátrico médico-legal.

Foi então proferido o despacho impugnado a indeferir o requerido, porque a matéria dos quesitos 15, 17, 19, 21, 23 e 25 não é idónea a ser objecto da diligência em causa.

Na sua alegação, o Réu insistiu na revogação do despacho.

Que dizer a este respeito?

Tal como prescreve o art. 388º do CC, a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.  E nos termos do n.º 1 do art. 577º do CPC, ao requerer a perícia, a parte indicará logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as diligências de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência (n.º1 do art. 577º do CPC). Mas, como é evidente, é aos peritos que cabe responder à  matéria de facto objecto da perícia e aferir se estão em condições de responder a tal matéria de facto face aos seus específicos conhecimentos. Ou seja, ao Tribunal está vedado obrigar os peritos a responder a matéria de facto quando aqueles não se julgam habilitados a responder. E no caso ajuizado os senhores peritos médicos do IML de Coimbra, que procederam à perícia na pessoa do Réu, fizeram saber ao Tribunal que se lhes “afigura totalmente descabido e fora do objectivo visado no âmbito estritamente médico-legal responder em concreto a uma tal matéria quesitada (na sua grande maioria, aliás, provada documentalmente), uma vez que ela, como foi explicitado pelo ilustre causídico, deveria, mais do que tudo, servir (como serviu) de objecto para melhor documentação dos médicos peritos”.  A tese defendida pelo Réu/Agravante visa justamente obrigar os senhores peritos a responder a matéria sobre a qual não se consideram habilitados, transcendendo os conhecimentos médico-psiquiátricos, como expressamente deram conhecimento ao Tribunal.  Deste jeito, o despacho impugnado não contraria o anterior despacho que deferiu a requerida prova pericial e fixou o objecto da perícia, apenas sublinha a impossibilidade de resposta a tal matéria, conforme foi reconhecido pelos senhores peritos médicos.

De qualquer modo, sendo embora certo que tal matéria exorbita dos específicos conhecimentos médico-psiquiátricos, sendo antes objecto de prova documental e testemunhal, verifica-se que a matéria dos quesitos 10 a 15, 18 a 24 foi considerada provada, correspondendo à matéria de facto vertida nos n.ºs 14 a 26. Apenas os quesitos 16, 17, 25 e 26 foram considerados não provados.

Em suma, e contrariamente à opinião do Réu, o despacho recorrido não violou qualquer disposição legal, designadamente as normas que citou (arts. 568º, 265º, n.º3, ambos do CPC e 388º do CC). Nenhuma nulidade processual foi praticada ou foi violado o caso julgado formal.

Consequentemente, estando isento de censura a decisão impugnada, o agravo não merece ser provido.

B)- APELAÇÃO

No que tange ao mérito da causa, a divergência do Réu/Apelante  remete para a verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar por factos ilícitos, importando, como única questão decidenda, definir se o Réu, aquando da prática dos factos que lhe são imputados, tinha a capacidade natural para discernir e apreciar o carácter ilícito do seu acto e a faculdade de dirigir o seu comportamento de um modo conforme à apreciação feita.

Tais capacidades (intelectual e volitiva) resultam indirectamente da lei, ao prescrever o n.º1 do art. 488º do CC, que “não responde pelas consequências do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer, salvo se o agente se colocou culposamente nesse estado, sendo este transitório”. A imputabilidade surge assim, tal como na responsabilidade criminal,[1]  como requisito prévio ou um pressuposto da imputação do facto ao agente a título de culpa, pois só pode ser censurado quem detém aquelas capacidades de discernimento e de livre exercício da sua vontade. A imputabilidade é, à face do direito civil, uma qualidade natural, que decorre do agente se encontrar no uso das suas faculdades mentais e poder, portanto, actuar livremente. Uma pessoa, normalmente imputável, pode praticar actos desprovidos dessa qualidade, actos que não lhe são atribuíveis num plano ético-jurídico; é o que sucede quando age em estado de completa embriaguês, num acesso de loucura total, em estado de sonambulismo, hipnose ou narcose[2].

A lei presume a falta de imputabilidade nos menores de sete anos e nos interditos por anomalia psíquica (n.º2 do art. 488º do CC). O lesado pode sempre contrariar tal presunção juris tantum, provando que uns e outros podem ter o discernimento bastante para entender e querer.  Mas não pode deduzir-se a contrario que os maiores de sete anos ou os inabilitados por anomalia psíquica são sempre responsáveis. Há apenas uma presunção de imputabilidade, que ao autor da lesão incumbirá afastar[3]. O agente considera-se, pois, imputável, em princípio, ou seja,  é susceptível ou capaz de ser suporte de um juízo de censura.

Excepcionalmente, porém, as pessoas não imputáveis podem ser oneradas com a obrigação de indemnização, nos termos previstos no art. 489º do CC, ou seja, podem, por motivo de equidade, ser condenadas a reparar os danos, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a reparação das pessoas a que incumbe a vigilância. A inimputabilidade do agente não exclui sem mais o dever de indemnizar.

Analisando a hipótese sub judice, caberia, pois, ao Réu provar que, no momento da prática dos factos, estava incapacitado de entender ou de querer, ou seja, que era inimputável. Nessa direcção foi, aliás, dirigida a defesa do Réu, alegando não se recordar da prática dos factos que lhe são imputados e, se existiram, foram necessariamente praticados ao grave estado de saúde que descreve, só encontrando explicação no seu estado de alteração mental/demencial e sem qualquer liberdade de determinação ou capacidade volitiva. Mas a matéria de facto vertida a esse respeito na base instrutória (quesitos 25 e 26) mereceu resposta negativa, ou seja, não se provou se os actos que lhe são imputados (cfr. n.º 4 da factualidade assente) ocorreram em virtude da doença de que o Réu sofre e descreve, como não se provou que o Réu não se recorda da prática daqueles actos. Tendo sido o Réu submetido a exame de psiquiatria, como se vê de fls. 333 a 337, concluíram os senhores peritos médicos no relatório que “o examinado sofre de um quadro demencial (F01.3 da CID-10), de evolução crónica, com carácter irreversível e curso flutuante, e do ponto de vista psiquiátrico-forense, não se apuram razões de natureza psiquiátrica que permitam excluir ou atenuar a sua imputabilidade para os factos descritos nos autos, à data da sua prática”.

Correctamente, foi consignado na sentença sob exame, que do seu estado clínico não pode concluir-se que o comportamento cometido pelo mesmo -e descrito sob os factos 4, 5, 9 e 10-foi feito num estado de inimputabilidade, pois esta matéria - quesitada sob os factos n.º 25 de fls. 105 e seguintes - designadamente se a apropriação das quantias ocorreu em virtude da doença de que o Réu sofre - e n.º 26º do dito saneador. Designadamente se o réu não se recorda dessa apropriação – foram factos, que ainda que alegados, receberam resposta negativa. (…) E tal matéria “enquanto matéria de excepção ao direito arrogado pela Autora, incumbe ao Réu, atento a repartição do ónus da prova, estatuída no art. 342º do Código Civil, mormente no n.º2 desta norma”.

Face ao que acaba de ser sublinhado, e contrariamente à opinião do Réu expressa nas conclusões 7ª, 12ª e 13ª, não competia à Autora alegar e provar que a acção do Réu foi consciente ou que este teve consciência e o querer de praticar tal acto. O Réu faz assim uma errada interpretação do art. 342º do CC, sobre a repartição do ónus da prova.

Dispondo, pois, o Réu de discernimento (capacidade intelectual) e de liberdade de determinação (capacidade volitiva) no momento da prática dos factos que lhe são imputados, logrou a Autora, provar, como lhe cabia, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual enunciados no art. 483º do CC, isto é, o facto voluntário do agente, a ilicitude, a imputação do facto ao agente (culpa), o dano e o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano.

Na verdade, tal como se provou, no período compreendido entre 29.08.1997 e o ano de 1998, o Réu no exercício das suas funções, recebeu do Sr. D....., cliente do Banco C…., por sete vezes, quantias em dinheiro para crédito da conta daquele n.º 11971277/001, e não as entregou no referido Banco. Essas quantias foram recebidas pelo Réu no serviço móvel para depósito, ascendendo ao montante de 2.215.000$00. O Réu não procedia à certificação por terminal de tais quantias a fim de as fazer suas, o que sucedeu.

O Réu violou assim ilicitamente o direito de propriedade do Banco sobre as quantias em dinheiro que lhe foram entregues para depósito e agiu com culpa, porque teve o propósito de fazer suas essas quantias,  merecendo tal conduta a censura do direito.  Agiu voluntariamente, tratando-se de actos de apropriação ilícita objectivamente controláveis ou domináveis pela sua vontade. E como consequência adequada da conduta do Réu ficou o Banco lesado nas quantias de 2.215.000$00.

Incorreu, por conseguinte, o Réu em responsabilidade civil por facto ilícito, ficando obrigado a indemnizar o Banco C…., sua entidade patronal na altura. Este Banco dispõe do direito de acção indemnizatória contra o Réu.

A Autora, na qualidade de seguradora daquele Banco, nos termos e em cumprimento do contrato de seguro aludido no n.º2 da factualidade assente - Apólice de Seguro Ramo Roubo-Fraude de Empregados- pagou ao segurado a quantia de Esc. 963.900$00, cobrindo em parte os prejuízos sofridos.  E ex vi do art. 17º das Condições Gerais da Apólice, do art. 441º do Código Comercial e do art. 592º do Código Civil, ficou subrogada em todos os direitos que pertenciam ao segurado contra o Réu responsável ou terceiro causador dos danos. Por essa via se transmitiu, pois, o crédito do Banco segurado para a Autora, adquirindo esta, na medida da satisfação dada ao segurado, os poderes que a este competiam (n.º1 do art. 593º do CC). A Autora seguradora ficou deste modo investida na posição jurídica até aí atribuída ao Banco segurado. Tratando-se de satisfação parcial, a subrogação não prejudica, em princípio, os direitos do credor (n.º 2 do mesmo normativo).

Atenta a matéria de facto assente, julgou acertadamente a 1ª instância a verificação da subrogação legal, nada obstando a que o Réu, por se tratar de subrogação legal, pudesse invocar contra a Autora subrogada os meios de defesa que lhe era lícito invocar contra o Banco segurado. Seria injustificável que o devedor fosse colocado em pior situação do que aquela que se encontrava antes da transmissão do crédito, aplicando-se o regime da cessão de créditos (art. 585º do CC), não por remissão, mas antes por analogia[4]. E efectivamente, como vimos, o Réu invocou sem êxito a excepção da sua inimputabilidade consubstanciada em estado de alteração mental/demencial aquando dos factos cuja prática lhe é atribuída.

Inexiste, em suma e sem margem para qualquer dúvida, qualquer fundamento legal que obste ao pretendido reembolso da quantia que a Autora pagou ao Banco segurado em cumprimento do contrato de seguro entre ambos celebrado contra o risco de infidelidade, fraude ou apropriação indevida por parte dos empregados do Banco segurado. A tese sufragada pelo Réu na sua alegação de recurso não é merecedora de acolhimento, uma vez que a 1ª instância fez correcto enquadramento jurídico da factualidade assente.

                                         IV)- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento aos recursos de agravo e apelação, confirmando inteiramente as decisões impugnadas.

As custas dos recursos ficam a cargo do Réu.

COIMBRA,

(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj.- Des. Helder Roque)

(2º Adj.- Des. Távora Victor)


[1] Cfr. arts. 19º e 20º do Código Penal.
[2] Cfr. “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, p. 331, de Fernando Pessoa Jorge. E
[3] Cfr. Código Civil Anotado, vol. 1º, (anotação ao art. 488º) de Pires de Lima e Antunes Varela; Das Obrigações em Geral, vol. 1º, p. 584 ( nota 1), de Antunes Varela e Direito das Obrigações., vol. 1º, p. 453, de Jorge Ribeiro de Faria.
[4] Cfr. obra citada de Antunes Varela, vol. 2º, p. 352 (nota 1) ; Direito das Obrigações, 4ª edição, p. 219, de Inocêncio Galvão Teles ;Direito das Obrigações, vol. 2º, p. 43, de Menezes Leitão e Direito das Obrigações, vol. 2º, p. 105, de Menezes Cordeiro.