Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
348/18.8T8FND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: HERANÇA INDIVISA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
LEGITIMIDADE
CABEÇA DE CASAL
HERDEIROS
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
Data do Acordão: 09/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 2024, 2031, 2046, 2050, 2052, 2078, 2088, 2089, 2091 CC, 11, 12, 14, 15, 27, 30, 316 CPC
Sumário: 1. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de-casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (activa ou passiva) no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança (art.ºs 2088º, 2089º e 2091 do CC).

2. Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pela respectiva cabeça-de-casal, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista (e centrada nos direitos e interesses a regular), que quem interpõe a acção, nela figurando como autora - ainda que actuando no interesse de todos os herdeiros - é a cabeça-de-casal.

3. Atendendo à filosofia subjacente ao actual Código de Processo Civil - que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância - não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça-de-casal tem ou não legitimidade para a propositura da acção e, em caso negativo, providenciar pela sanação da sua eventual ilegitimidade com a intervenção dos demais herdeiros.

Decisão Texto Integral:




            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                      

I. Em 21.5.2018, a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de MF (…) e ML (…), representada pela cabeça-de-casal, a filha A (…), veio propor a presente acção declarativa comum contra A (…) e esposa M (…) pedindo que sejam condenados a: A) Reconhecerem que os prédios identificados em 10º da petição inicial (p. i.) integram a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de MF (…) e ML (…). B) A reconhecerem que sobre o prédio ou prédios deles Réus, se encontra constituída uma servidão de passagem de pé, carroça, tractor e veículos motorizados de transportes de pessoas de e para os prédios da Autora, nos termos descritos em 14º a 16º da p. i. C) A retirarem o muro em tijoleiras de cimento bem como a grade em ferro que colocaram, no acesso ao prédio da Autora, no local que coincide com o final da passagem. D) A não praticarem quaisquer actos ou factos que, por qualquer forma, possam perturbar ou impedir o exercício do direito de servidão de passagem. E) A pagarem à Autora uma indemnização de valor não inferior a € 5 000 por danos não patrimoniais sofridos. F) Após o trânsito em julgado da sentença e até ao integral cumprimento da mesma, pagarem uma sanção pecuniária compulsória à autora no valor de € 50 diários por cada dia de atraso no seu cumprimento.

Alegou, em síntese, as circunstâncias do decesso dos autores da herança e indicou os filhos destes, seus herdeiros, e os que, por morte de dois desses herdeiros, assumem o direito de representação (para efeitos sucessórios), bem como a factualidade relativa à existência e propriedade de dois prédios rústicos e três urbanos, de que são actualmente “proprietários em comum e sem determinação de parte ou direito, na proporção dos respectivos quinhões”, os ditos herdeiros (melhor identificados nos art.ºs 3º a 7º e 10º da p. i.), e a existência e configuração de um direito de servidão de passagem constituído a favor dos prédios da herança, onerando um prédio rústico vizinho pertença dos Réus, sendo que estes, com a actuação descrita na p. i. (colocando os obstáculos ao seu exercício descritos nos art.ºs 19º e 20º), têm causado prejuízos à A. e aos herdeiros dos falecidos (que se traduzem no facto de se encontrarem impedidos de aceder aos seus prédios como sempre fizeram e dele retirarem todas as suas utilidades).

Afirmou a legitimidade da autora representada pela cabeça-de-casal, porquanto a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal, cabendo-lhe, entre outros, os poderes atinentes à salvaguarda do direito de propriedade e de manutenção da posse, sobre os bens pertencentes à herança, in casu, a fixação do direito de servidão de passagem constituída a favor dos identificados prédios da herança, sobre um prédio rústico vizinho.

Juntou diversos documentos, nomeadamente, certidões de assentos de óbito e de assentos de nascimento (cf. fls. 8 verso a 18 do processo físico).

Os Réus contestaram e deduziram pedido reconvencional, pedindo, entre o mais, que a A. seja condenada: c) A reconhecer que nunca houve nenhuma passagem dos prédios da A. para o prédio da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C (…) e M (…), uma vez que toda a propriedade desta esteve desde tempos imemoriais murada e vedada e é de acesso exclusivo apenas e tão-só aos seus proprietários e herdeiros. d) A reconhecer que os prédios da A. confrontam com outros prédios que não o da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C (…) e M (…) e que de acordo com o art.º 1553º do CC, a servidão terá de ser constituída sobre aqueles prédios porque implicará um menor sacrifício do que pelo prédio da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C (…) e M (…) e) A absolvição dos RR ao pagamento de qualquer indemnização à A. por danos não patrimoniais sofridos. f) A absolvição dos RR a pagarem qualquer sanção pecuniária compulsória à A. por cada dia de atraso no seu cumprimento; e ainda, nos termos da alínea h) que seja a A. condenada a pagar indemnização a liquidar aos RR, caso seja constituída uma servidão sobre o prédio da Herança indivisa e ilíquida aberta por óbito de C (…) e M (…).

Aduziram, designadamente: carece a A. representada pelo cabeça-de-casal de legitimidade activa para sozinha intentar a presente acção judicial, nos termos do art.º 2091º do Código Civil (CC), pois fora dos casos de entrega de bens que o cabeça-de-casal deva administrar, de cobrança de dívidas ou de venda de bens e satisfação de encargos (art.ºs 2088º, 2089º e 2090 do CC), “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”; assim, deveria a A. ter intentado a presente acção judicial acompanhada de todos os herdeiros e não só do cabeça-de-casal, pois trata-se de um caso de litisconsórcio activo necessário e legal (cf. o mencionado art.º 2091 do CC e o art.º 33º do Código de Processo Civil/CPC); a ilegitimidade activa da A. representada pela cabeça-de-casal obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, devendo os Réus ser absolvidos da instância; existe igualmente ilegitimidade passiva, visto que a acção foi proposta contra os Réus quando deveria ter sido proposta contra a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C (…) e M (…) e todos os seus herdeiros - “o direito que a A. vem peticionar deveria ter sido intentada contra a herança e todos os seus herdeiros” (sic), pois trata-se também de um caso de litisconsórcio passivo necessário e legal, para que a decisão produza o seu efeito útil normal; ao não serem todos demandados, herança e herdeiros, verifica-se existir ilegitimidade passiva dos Réus, obstando ao conhecimento do mérito da causa e dando lugar à absolvição da instância.

Juntaram diversos documentos, inclusive, certidões de assentos de óbito (fls. 44).

Suscitou, então, a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de MF (…) e ML (…) representada pela dita cabeça-de-casal, face às “sérias e fundadas dúvidas quanto à sua legitimidade para por si só fazer seguir os presentes autos”, a intervenção dos restantes co-herdeiros ((…), melhor identificados na p. i. e no art.º 4º do requerimento de 21.9.2018) e a sua citação, ao abrigo do disposto no art.º 316º, n.º 1 do CPC - como associados de A (…), que nestes autos se deverá entender que age igualmente na qualidade de herdeira da herança em causa -, bem como, face ao também aduzido pelos Réus, o esclarecimento e/ou a intervenção provocada (da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C (…) e M (…), representada pelos herdeiros (…)) requerida no segundo requerimento apresentado em 21.9.2018.

A A. replicou e os Réus pronunciaram-se quanto aos incidentes de intervenção provocada, referindo, designadamente (contrariando a posição assumida na contestação…[1]), que a A. herança ilíquida e indivisa aberta por óbito MF (…) e ML (…) não tem personalidade judiciária, o que configura uma excepção dilatória típica e insuprível, sendo que a presente acção teria de ter sido intentada por todos os herdeiros de MF (…) e ML (…), e não pela herança ilíquida e indivisa deixada pelo seu óbito, que não tem personalidade judiciária pois já foi aceite.

Por despacho de 24.10.2018, o tribunal aferiu da preterição de litisconsórcio necessário activo e passivo e admitiu os incidentes de intervenção principal provocada, considerando, nomeadamente, que a situação em análise reclamava a intervenção de todos os herdeiros da herança indivisa A., tratando-se, pois, de um caso de litisconsórcio activo de todos os herdeiros, afigurando-se igualmente que do lado passivo se impunha a intervenção de G (…), na qualidade de herdeira da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C (…) e M (…) acautelando a hipótese de o alegado prédio serviente integrar o referido património autónomo.[2]

 De tal despacho interpuseram recurso os Réus/reconvindos (…) formulando as seguintes conclusões:

(…)

Não houve resposta.

O Mm.º Juiz a quo pronunciou-se sobre a invocada nulidade, suprindo e justificando o omitido e/ou sintetizado no despacho em crise.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente, da admissibilidade dos mencionados incidentes de intervenção principal, a que subjaz a questão de saber se a herança ilíquida e indivisa tem ou não personalidade judiciária, verificando as consequências emergentes da eventual falta desse pressuposto (designadamente, se deve conduzir à absolvição da instância) e se existe ou não algum obstáculo legal à admissão do incidente de intervenção principal dos demais herdeiros.


*

II. 1. A matéria fáctica e processual a considerar é a que resulta do relatório que antecede.

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Relativamente à pretensa nulidade da decisão recorrida, verifica-se que o Mm.º Juiz a quo, no despacho em que se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso, de 10.4.2019, admitiu terem parcialmente razão os Réus/reconvintes, porquanto, na decisão recorrida, o tribunal quase omitiu a referência à posição expressa nos autos pelos mesmos na oposição aos incidentes de intervenção principal.

Mas no dito despacho acabou por se descrever, com suficiente largueza, tal posição, justificando e suprindo o dito “vício” - se e na medida em que aquela “omissão” pudesse ter sido efectivamente praticada, com alguma relevância para os autos -, concluindo, todavia, “que o tribunal atentou no teor da oposição deduzida ao incidente”, “(…) não ocorrendo, assim, a nulidade invocada”.

De facto, assim é, na medida em que o tribunal a quo não deixou de levar em atenção as perspectivas das partes (nomeadamente, “a pronúncia dos Réus, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art.º 318º do CPC”), num plano de plena igualdade e respeitando o contraditório, não se podendo/devendo concluir que haja cometido qualquer irregularidade que “possa influir na decisão da causa”.

            Daí que também se considere que não existe qualquer nulidade da decisão, mormente a prevista no art.º 615º, n.º 1, alínea d) do CPC.

3. Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável (art.º 6º, n.º 1 do CPC). O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo (n.º 2).

A personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte (art.º 11º, n.º 1 do CPC) ou seja, na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida alguma providência de tutela jurisdicional. Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária (n.º 2).

Têm ainda personalidade judiciária, nomeadamente, a herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado (art.º 12º, alínea a) do CPC, artigo que enumera as excepções ao princípio da correspondência entre personalidade jurídica e personalidade judiciária previsto no cit. art.º 11º, n.º 2).

A capacidade judiciária consiste na susceptibilidade de estar, por si, em juízo (art.º 15º, n.º 1 do CPC).

Salvo disposição especial em contrário, os patrimónios autónomos são representados pelos seus administradores (art.º 26º, 1ª parte, do CPC).

A incapacidade judiciária e a irregularidade de representação são sanadas mediante a intervenção ou a citação do representante legítimo do incapaz (art.º 27º, n.º 1 do CPC).

O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer (art.º 30º, n.º 1 do CPC). O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha (n.º 2). Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (n.º 3).

Se a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade (art.º 33º, n.º 1 do CPC). É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (n.º 2). A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (n.º 3).

Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária (art.º 316º, n.º 1 do CPC).

Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam (art.º 2024º do CC).

A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele (art.º 2031º do CC).

Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046º do CC).

O sucessível chamado à herança, se ainda a não tiver aceitado nem repudiado, não está inibido de providenciar acerca da administração dos bens, se do retardamento das providências puderem resultar prejuízos (art.º 2047º, n.º 1 do CPC).

O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material (art.º 2050º, n.º 1 do CC). Os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão (n.º 2).

A herança pode ser aceita pura e simplesmente ou a benefício de inventário (art.º 2052º, n.º 1 do CC).

A aceitação pode ser expressa ou tácita (art.º 2056º, n.º 1 do CC). A aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (n.º 2). Os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança (n.º 3).

Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro (art.º 2078º, n.º 1 do CC). O disposto no número anterior não prejudica o direito que assiste ao cabeça-de-casal de pedir a entrega dos bens que deva administrar, nos termos do capítulo seguinte (n.º 2).

A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (art.º 2079º do CC).

O cabeça-de-casal administra os bens próprios do falecido (art.º 2087º, n.º 1, 1ª parte, do CC).

O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído (art.º 2088º, n.º 1 do CC). O exercício das acções possessórias cabe igualmente aos herdeiros ou a terceiro contra o cabeça-de-casal (n.º 2).

O cabeça-de-casal pode cobrar as dívidas activas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente (art.º 2089º do CC).

Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (art.º 2091º, n.º 1, do CC).

4. Na prática forense é frequente a intervenção (activa ou passiva) de heranças indivisas como se tivessem personalidade judiciária (v. g.: a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de A, representada pela cabeça-de-casal, B; determinada pessoa singular instaura acção declarativa comum contra Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de F e G, “representada por todos os seus herdeiros”, depois devidamente identificados; “Herança Indivisa aberta por óbito de A”, representada pelos seus herdeiros, aí devidamente identificados; ou ainda, numa formulação mais adequada, diversas pessoas singulares, devidamente identificadas, “por si e na qualidade de herdeiros da herança ilíquida indivisa” aberta por óbito de M, instauram acção com processo comum contra certa pessoa singular ou colectiva, pedindo que se declare o direito de propriedade dos autores por si e na qualidade de herdeiros da herança aberta, ilíquida e indivisa por óbito de M. sobre o prédio urbano identificado na petição inicial; etc.).

Resulta inequívoco da alínea a) do art.º 12º do CPC que apenas a herança jacente é dotada de personalidade judiciária, isto é, apenas a herança aberta que ainda não haja sido aceite nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046º do CC) goza de tal atributo.

E é entendimento corrente que relativamente a conflitos relativos a herança que já haja sido aceite mas permaneça indivisa devem estar em juízo, consoante a natureza dos direitos em litígio, ou o cabeça-de-casal (art.ºs 2087, 2088º, 2089º e 2090º do CC) ou todos os herdeiros (art.º 2091º do CC).

No entanto, esta questão, nas situações concretas submetidas à apreciação dos tribunais, não tem apresentado resposta única ou unânime, dando-se, nalguns casos, especial relevo à presença na lide daqueles cujo direito ou interesse importa salvaguardar, na prossecução do objectivo de regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, tanto mais que estamos hoje “sob a égide de legislação muito menos tributária de meros e rígidos conceitos formais, em detrimento e com ostracismo dos verdadeiros interesses e valores a que aqueles servem de simples indumentária jurídica”[3].

Só desta forma, cremos, se cumprirá a finalidade de todo o direito adjectivo, vendo-o, por um lado, também, como “uma responsabilizante dimensão ética do homem” e, por outro lado, e sempre, como meio e/ou solução adequados a determinada problemática.[4]

5. A herança indivisa não se subsume, para efeito de lhe ser atribuída personalidade judiciária, ao conceito legal de património autónomo semelhante cujo titular não esteja determinado.[5]

Coincidindo a abertura da sucessão com o momento da morte do seu autor (art.º 2031º do CC), decorre do preceituado no art.º 2056º do mesmo Código que a aceitação pode ser expressa ou tácita, sendo a mesma havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir; a aceitação é tácita quando o herdeiro pratica algum facto de que necessariamente se deduz a intenção de aceitar, ou de tal natureza que ele não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro.[6]

6. Na situação em análise, sem quebra do devido respeito por opinião em contrário, afigura-se que os autos não fornecem elementos probatórios de que a herança A. tenha sido aceite pelos respectivos herdeiros; inexistindo aceitação expressa da referida herança por parte dos respectivos herdeiros, também não pode sustentar-se, perante os elementos facultados pelos autos, que tal aceitação tenha ocorrido de forma tácita (art.º 217º, n.º 1 do CC), pelo que tal herança jacente é/será, nos termos referidos, dotada de personalidade judiciária.[7]

Mas ainda que se propenda para o entendimento de que a herança-A. não deve ser qualificada de jacente (“herança indivisa” não “jacente”), uma vez que tacitamente aceite pelos respectivos herdeiros (art.º 2046º do CC), no configurado quadro fáctico-jurídico, e convocando, principalmente, os princípios que presidiram às reformas processuais desde 1995/96 até ao presente, sempre será de concluir que, não obstante a herança-A. seja, in casu, desprovida de personalidade judiciária (apenas a herança jacente goza de personalidade judiciária, não extensiva à herança indivisa com titulares determinados)[8], com a intervenção de todos os herdeiros, mostram-se agora salvaguardados os interesses que estes deveriam prosseguir caso a acção tivesse sido por si instaurada; ou seja, estando em causa a protecção dos interesses dos herdeiros da A. e nenhum outro motivo obstando ao conhecimento do mérito da causa, a subsistente excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da A. não poderá/deverá determinar a absolvição da instância (art.º 278º, n.º 3 do CPC), antes devendo os autos prosseguir os seus termos para conhecimento de mérito[9] - entendimento que melhor se explicitará adiante.

        7. Ademais, ao cabeça-de-casal competem, para além dos definidos especialmente, poderes de administração ordinária, ou seja, poderes para a prática de actos e negócios jurídicos, de conservação e frutificação normal dos bens administrados.[10]

Pode, assim, o cabeça-de-casal, conforme decorre do art.º 2088º, n.º 1 do CC, intentar contra herdeiros ou terceiros acções com vista a obter a entrega dos bens da herança que deva administrar e que estes tenham em seu poder e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.

Consequentemente, também não se poderá afastar o entendimento de que o cabeça-de-casal tem legitimidade para, só por si (representando a herança ilíquida e indivisa), intentar uma acção como a presente em que pede que, a favor do prédio da herança, se reconheça a existência de uma servidão de passagem onerando o prédio dos Réus, com o atendimento do demais peticionado.[11]

8. Como vimos, a herança indivisa pode, conforme os casos, estar em juízo representada pelo cabeça-de-casal ou por todos os herdeiros (art.ºs 2088º, 2089º e 2091º, n.º 1 do CC).

Tendo a acção sido proposta em nome da herança só por um herdeiro que alegou ser o respectivo cabeça-de-casal, atento o respectivo objecto (in casu, sobretudo, o reconhecimento de um direito de servidão de passagem incluído no acervo hereditário), a intervenção de todos os herdeiros, face ao disposto no art.º 2091º, n.º1 do CC (onde se preceitua que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”), assegura de forma eficaz a regularidade daquela representação.[12]

9. Esta, de resto, a solução conforme a uma leitura segundo o espírito e filosofia do nosso sistema processual civil.

Se a herança indivisa (mas não jacente) não tem personalidade judiciária e a falta de personalidade judiciária é, por regra, insanável, há que notar, contudo, que a própria lei estabelece, de modo expresso, uma situação em que esse vício pode ser sanado (cf. art.º 14º do CPC[13]).

E também na situação dos autos se poderá considerar que, em bom rigor, não está sequer em causa a sanação da falta de personalidade da herança indivisa, mas sim uma leitura e interpretação da p. i. menos formalista e da qual se poderá concluir que a parte (a autora) não será propriamente a herança, mas sim a respectiva cabeça-de-casal, sendo que a formulação adoptada nestes autos em nada difere da comummente utilizada para identificar a pessoa que propõe ou contra quem se propõe uma acção, quando está em causa uma herança, sem que, habitualmente, se questione a falta de personalidade judiciária, por se entender que, na realidade, a parte na causa é a cabeça-de-casal ou os herdeiros que demandam ou são demandados por questões relacionadas com a herança.

O cabeça-de-casal, quando instaura uma acção por questões relacionadas com a herança (inclusive, nos casos em que a lei lhe atribui competência para o efeito), não o faz em seu próprio nome e em seu benefício exclusivo e, naturalmente, terá que fazer menção desse facto para clarificar que não é o “destinatário” (ou o único “destinatário”/”beneficiário”) da pretensão que vem exercer e que ela tem como destinatário a herança ou o conjunto dos herdeiros e, na identificação da qualidade em que propõe a acção, refere-se habitualmente, que o faz na qualidade de representante da herança.[14]

É certo que ao concretizar a qualidade em que propõe a acção, a cabeça-de-casal identifica-se como representante da Herança que surge, aparentemente, como autora na acção. Porém, essa circunstância não deverá impedir o normal prosseguimento da acção, na medida em que, em rigor, aquilo que está em causa, é uma mera incorrecção na expressão utilizada para identificar a parte e a qualidade em que interpõe a acção, devendo entender-se que a autora é a própria cabeça-de-casal e não a herança que diz representar - a herança indivisa nem sequer corresponde a uma realidade diferente do conjunto dos herdeiros; a falta de personalidade da herança não jacente decorre precisamente da circunstância de os seus titulares já estarem determinados, pelo que a herança corresponde, na prática, ao conjunto dos herdeiros, afigurando-se, por isso, excessivamente formalista a afirmação de que a acção não pode ser aproveitada e não pode prosseguir por falta de personalidade judiciária quando são os herdeiros ou a cabeça-de-casal (actuando no interesse daqueles e no âmbito dos poderes de administração da herança que a lei lhe atribui) que estão na acção (ainda que, incorrectamente, se tenham identificado como representantes de uma entidade ou realidade que não tem personalidade e cuja titularidade pertence aos herdeiros).[15]

            Ademais, reafirma-se, o espírito e a filosofia subjacentes ao actual direito adjectivo também apontam para a conveniência de interpretar a p. i. de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária, dada a circunstância de a acção ter sido intentada pela cabeça-de-casal (ainda que indevidamente se identificando como representante da herança), importando notar que, ainda que a acção exija a intervenção dos demais herdeiros, essa já é questão que se prende com a legitimidade e que facilmente poderá ser corrigida (como foi, porquanto requerida e efectivada a intervenção dos demais herdeiros).

A filosofia subjacente ao Código de Processo Civil visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, visando que o processo e a respectiva tramitação tenham a maleabilidade necessária para funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes[16], como claramente se evidencia no preâmbulo do DL n.º 329-A/95 de 12/12[17] e vemos reafirmado e até reforçado no CPC vigente.

10. Concluindo.

Atendendo a tais princípios, não se justificará, assim, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança, porquanto, com uma leitura e interpretação menos rígida e formalista da lei e da p. i. e com vista a simplificar e facilitar o exercício dos direitos das partes e sua eventual satisfação, poderemos admitir e considerar, sem grande dificuldade, que a autora não é a herança, mas sim a respectiva cabeça-de-casal (que, como tal, dispõe de personalidade jurídica e judiciária), não se justificando, no nosso entendimento, a absolvição da instância por falta de personalidade da herança, quando é certo que a acção foi interposta pela pessoa que, sendo cabeça-de-casal, é a administradora da herança em representação da qual se apresentou a litigar[18]; por outro lado, se é certo que a cabeça-de-casal, desacompanhada dos demais herdeiros, não tem legitimidade para a presente acção, a excepção de ilegitimidade da cabeça-de-casal por preterição de litisconsórcio necessário já se mostra sanada por via do incidente de intervenção principal provocada (art.º 316º, n.º 1 do CPC), sendo que nenhum obstáculo existia à admissão do aludido incidente destinado a fazer intervir os demais herdeiros que, em relação ao objecto da causa, têm um interesse igual ao da autora (cabeça-de-casal), assim se sanando a ilegitimidade desta (com o normal prosseguimento dos autos), porquanto o direito aqui em causa apenas poderá ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros (art.ºs 33º do CPC e 2091º, n.º 1 do CC).[19]

11. Face ao que se deixa exposto, nada será de objectar à intervenção principal provocada dos demais herdeiros da herança-A. e da herança que motivou o segundo requerimento de intervenção, assegurando-se, pois, a regularidade de representação (por sucessão)[20] exigida pelo art.º 2091º, n.º 1 do CC[21], afigurando-se, assim, inteiramente correcto o expendido no despacho sob censura, mormente no segmento onde se diz: «(…) in casu, a situação postula necessariamente a intervenção de todos os herdeiros da herança indivisa./ Trata-se, pois, de um caso de litisconsórcio activo de todos os herdeiros, afigurando-se (...) que do lado passivo se impõe igualmente a intervenção de (…) (…), na qualidade de herdeira da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C (…) (...), acautelando a hipótese de o alegado prédio serviente compor o referido património autónomo (…)./ Dito isto, é certo que, ao arrepio do sobredito entendimento, a acção foi intentada figurando como autora a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de M (…), representada pela Cabeça-de-Casal, a filha A (…) (…)./ Trata-se, todavia, apenas de uma fórmula jurídica que radica num diferente entendimento jurídico ou numa errada acepção, que, todavia, é passível de ser sanada, nos termos do art.º 6º/2, do CPC, ponto é que todos os interessados no conjunto das relações jurídicas em apreço estejam em juízo, o que resultará do deferimento do já requerido incidente de intervenção principal provocada./ Pelo que, sendo sanável tal preterição de litisconsórcio activo, através do conexo incidente de intervenção principal provocada já deduzido pela autora, ao abrigo do art.º 316º/1, do CPC, admite-se a intervir nos presentes autos os chamados (…), na qualidade de herdeiros da herança em causa (aberta por óbito de M (…)), como associado de (…), que nestes autos se deverá entender que age igualmente na qualidade de herdeira da herança em causa./ Nos termos do referido entendimento, admite-se ainda a intervir nos presentes autos G (…), na qualidade de herdeira da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C (…), acautelando a hipótese de o alegado prédio serviente compor o referido património autónomo (…)».

12. Improcedem, assim, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas da apelação segundo o decaimento a final.


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24.9.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço



[1] Cf., nomeadamente, o art.º 18º da contestação e a parte inicial do presente “relatório”.

[2] Decisão depois reformada quanto a custas, por despacho de 10.4.2019.
[3] Cf. o acórdão do STJ de 12.9.2013-processo 1300/05.9TBTMR.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[4] Vide A. Castanheira Neves, O direito como validade, in RLJ, 143º, 175.

   Na prossecução desse desiderato, vejamos, desde logo, algumas das “proclamações” do Preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12.12:

   - “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma”, entre as linhas mestras do modelo de processo perfilhado;

   - Atribuição ao processo civil de natureza “verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários”, constituindo aquele “uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”;

   - “Ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo (…) que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”.
[5] Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 15.01.2004-processo 03B4310, publicado no “site” da dgsi.
[6] Vide J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. I, 4ª edição, Almedina, 1990, pág. 17, nota (35).
[7] Cf., sobre esta matéria, os acórdãos da RP de 19.10.2015-processo 443/14.2T8PVZ-A.P1 e da RL de 18.6.2009-processo 166/09.4TBTVD-A.L1-6, publicados no “site” da dgsi.
   Relativamente aos limites da jacência da herança e à aceitação da herança, vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, págs. 71 e 78 e seguintes.

[8] Cf., neste sentido, nomeadamente, Carlos Lopes de Rego, Comentários ao CPC, Volume I, 2.ª edição, 2004, Almedina, pág. 41) e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 15.01.2004-processo 03B4310 e 31.01.2006-processo 05A3992 (com o seguinte sumário: «IV- A herança ilíquida e indivisa, cujos herdeiros já se encontram determinados, não tem personalidade jurídica, nem judiciária./ V- A lei apenas atribui personalidade judiciária à herança jacente e aos patrimónios autónomos semelhantes.»); da RG de 02.6.2016-processo 72/15.3T8VPA.G1; da RP de 04.12.1998, 07.11.2006-processo 0622574, 09.5.2007-processo 0720560, 30.10.2007-processo 0721996, 09.6.2009-processo 52/03.1TBMDR-A.P1, 13.12.2011-processo 54/10.1TBBGC-H.P1 e 19.10.2015-processo 443/14.2T8PVZ-A.P1; da RC de 15.6.2010-processo 690/2002.C1 [constando do respectivo sumário: «(…) V - Não respeitando a uma herança jacente, mas antes a uma herança meramente indivisa, já aceite expressa ou tacitamente, é aos herdeiros que caberá intervir como parte nas acções em que se debatam interesses da herança, excepcionados os casos em que isso é legalmente atribuído ao cabeça de casal./ VI – Uma herança impartilhada carece de personalidade judiciária para propor acção de reivindicação sobre imóvel dessa herança, já que não se trata de uma herança jacente (art.º 2046º CC e 6º, al. a), CPC), não sendo a legitimidade activa assegurada pela intervenção da cabeça-de-casal – art.º 2091º, n.º 1, do CC.(…)»], 16.11.2010-processo 51/10.7TBPNC.C1, 24.02.2015-processo 1530/12.7TBPBL.C1 e 26.02.2019-processo 1222/16.8T8VIS-C.C1 e da RL de 01.6.2010-processo 1282/08.5TVLSB.L1-7, 15.02.2018-processo 2538/16.9T8LRS-2 e 30.10.2018-processo 2650/15.1T8VFX.L1-1, publicados no “site da dgsi, com a excepção do referido primeiro acórdão da RP que se encontra publicado na CJ, XXIII, 5, 211.
   Perspectiva diversa e “mais alargada” vemos adoptada por Antunes Varela, e Outros, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 105, nota (1), entendendo-se que atribuindo a lei tal personalidade à herança jacente, por analogia baseada em argumento de maioria de razão, será também de considerar que a atribui à herança indivisa (já aceite mas ainda não partilhada), pois que embora «não estando ainda efectuada a partilha, é em nome da herança (ou contra a herança), embora carecida de personalidade jurídica, que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário».

   E no acórdão da RP de 26.9.2011-processo 4494/09.0TJVNF.P1, publicado no “site” da dgsi, também se defende, em idêntico sentido: «Aliás, tal entendimento é desde logo confirmado pelo disposto nos art.ºs 2079º, 2088º, 2089º e 2091º, n.º 1, do CC, nos quais se prevê o exercício pelo cabeça-de-casal e/ou por todos os herdeiros, conforme os casos, dos “direitos relativos à herança” (expressão expressamente utilizada pela lei no último daqueles preceitos e que abarca as situações ali previstas e, como ali mesmo se refere, as previstas nos restantes preceitos). Acrescente-se ainda que chegou a ser proposta pela chamada “comissão Varela” de revisão do Código de Processo Civil a previsão da atribuição expressa de personalidade judiciária à herança não partilhada ao lado da herança de titular indeterminado, mas acabou por se decidir [na redacção da alínea a) do preceito em análise, que é a resultante do DL 329-A/95, de 12.12] não o fazer porque se entendeu que tal fórmula “ia longe demais na atribuição de personalidade judiciária, que o facto de serem já conhecidos os sucessores tornava redundante” [como nos dá conta Lebre de Freitas, no seu CPC Anotado, Coimbra Editora, Vol. 1º, a págs. 18 e 20 (anotações 1 e 3 ao art.º 6º), citando Teixeira de Sousa, “As partes, o objecto e a prova na acção declarativa”, Lisboa, Lex, 1995, pág. 18].
Deste modo, e em conformidade com o que se referiu, é de, contrariamente ao defendido na decisão sob recurso e dando procedência ao entendimento da recorrente, reconhecer que a herança indivisa - como a ora autora - tem personalidade judiciária, devendo, por isso, ser em seu nome (como o foi) que a presente acção deve ser proposta.»

[9] Cf. o citado acórdão do STJ 12.9.2013-processo 1300/05.9TBTMR.C1.S1.
[10] Vide R. Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 3ª edição, pág. 55.
[11] Cf. o acórdão da RP de 02.6.2009-processo 0827646, publicado no “site” da dgsi.
[12] Vide, designadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. citados, pág. 152 e, por exemplo, o referido acórdão da RP de 26.9.2011-processo 4494/09.0TJVNF.P1.
[13] Que reza o seguinte: “A falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representações pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado.”

[14] Cf., a propósito, a posição de Antunes Varela a que se alude na “nota 8”, supra, no sentido de que o cabeça-de-casal, quando propõe uma acção no âmbito dos poderes de administração da herança que a lei lhe concede, actua no interesse da herança e não em interesse próprio e exclusivo, ainda que, em termos processuais, seja ele a parte e não a herança, na medida em que esta não dispõe de personalidade jurídica e tão-pouco de personalidade judiciária.

[15] Veja-se, em idêntico sentido, os acórdãos do STJ de 10.7.1990-processo 078685 (tendo-se concluído: “perante uma petição em que no cabeçalho se diz que a acção é proposta contra a herança do falecido mas logo a seguir se identificam todos os herdeiros pedindo-se a citação destes para os termos da causa, é de entender que a acção foi proposta contra estes…”) e da RC 27.5.2008-processo 400/2002.C1 (que em situação idêntica à dos presentes autos concluiu que “assiste aos herdeiros determinados da «herança ilíquida e impartilhada de A., identificados na petição, personalidade judiciária e legitimidade processual para proporem a acção como representantes dela”), publicados no “site” da dgsi.
[16] Aliás, como ensina I. GalvãoTelles, in Direito das Sucessões/Noções Fundamentais, 6º edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1996, págs. 40 e seguintes, 61 e seguinte, 84 e 264, o traço essencial da sucessão ou transmissão é a ideia de identidade – identidade do direito (que o direito se conserva o mesmo) e consequente identidade do regime (o regime permanece igual – o direito tem nas mãos do novo titular o regime que tinha nas do antigo); por outro lado, apesar da incorrecta “definição” do art.º 2024º do CC, o regime sucessório consagrado no Código Civil assenta na ideia de aquisição de um património ou de bens, que passam a novos titulares, os herdeiros ou legatários; a propriedade (servindo igualmente o interesse geral) também é transmissível por morte, pela decisiva razão de que, se ela não sobrevivesse ao proprietário extinguindo-se com este, se perturbaria a ordem e ofenderia a justiça, quebrando-se a continuidade de situações económico-jurídicas, princípio igualmente consagrado no art.º 62º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (que estabelece: “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.”).
[17] Cf. a nota 4, 2ª parte, supra.
[18] Em idêntico sentido, cf. o cit. acórdão do STJ de 12.9.2013-processo 1300/05.9TBTMR.C1.S1.

[19] Cf., sobre os pontos II. 9. e II. 10., principalmente, os citados acórdãos da RC de 24.02.2015-processo 1530/12.7TBPBL.C1, aqui seguido de perto, e de 26.02.2019-processo 1222/16.8T8VIS-C.C1.

    Com entendimento parcialmente diverso, e numa perspectiva porventura mais “ortodoxa” do processo, cf., de entre vários, os citados acórdãos do STJ de 15.01.2004-processo 03B4310; da RG de 02.6.2016-processo 72/15.3T8VPA.G1; da RP de 19.5.2010-processo 16/1999.P1 e 19.10.2015-processo 443/14.2T8PVZ-A.P1 e da RC de 16.11.2010-processo 51/10.7TBPNC.C1.
[20] Vide I. GalvãoTelles, ob. cit., págs. 47 e seguinte e 60.
[21] Cf., ainda, o cit. acórdão da RP de 26.9.2011-processo 4494/09.0TJVNF.P1.