Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2901/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. COELHO DE MATOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO DE GARANTIAS
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 01/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Processo no Tribunal Recurso: SEVER DO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CIVEL
Indicações Eventuais: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 2º, N.º 3; 8º E 21º DO DEC. LEI N.º 522/85, DE 31/12: ARTIGO 17º DO REGULAMENTO DO INSTITUTO DE SEGUROS DE PORTUGAL E ART. 405º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I. O proprietário de um veículo automóvel que o entrega numa oficina para reparação, desempanagem ou controle de bom funcionamento, não deixa de ter a direcção efectiva do veículo e de o estar a utilizar no seu próprio interesse;
II. Não só por isso, mas também porque o seguro celebrado com o proprietário garante, perante o lesado, a responsabilidade daqueles que detêm o veículo, por lhes ter sido confiado no âmbito das suas funções, designadamente de garagista, a respectiva seguradora responde pelos danos causados pelo mesmo, quando intervém em acidente de viação, ao ser conduzido por um empregado da oficina;
III. No entanto, se o garagista tiver seguro obrigatório de responsabilidade civil é a sua seguradora que responde pelos danos e não a do proprietário; se o não tiver, não é o Fundo de Garantia Automóvel, mas a seguradora do veículo, contratada pelo proprietário, que responde por eles.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A Associação dos B... demandou, na comarca de Albergaria-a-Velha, a Sociedade de Se...., para que seja condenada a pagar-lhe a quantia de 2.880.840$00, para reparação dos danos sofridos na sua viatura de matrícula ZE-74-97 (ambulância) em consequência de colisão com o veículo ligeiro de passageiros de matrícula JQ-32-69, segurado na ré.
Alega, em síntese, que a ambulância circulava na estrada nacional n.º 328, entre Sever do Vouga e Ponte de Pessegueiro e no dito sentido, quando lhe surgiu, em sentido oposto, o veículo JQ, propriedade de Manuel Miguel da S... e conduzido por Filipe Miguel, que invadiu a faixa de rodagem esquerda e aí colidiu com a ambulância da autora, causando-lhe danos no montante peticionado.
A ré contestou, opondo a sua própria ilegitimidade sob a alegação de que o JQ era conduzido por um empregado (o dito Filipe Miguel) da firma "Gineto da Costa & Martins, Lda", oficina de reparação de automóveis, onde o JQ havia sido entregue para aí ser reparado e daí que era essa firma a responsável, ou a sua seguradora, ou Fundo de Garantia Automóvel, caso não tivesse seguro, como era obrigada.
A final veio a acção a ser julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar à autora a quantia de 11.378 € e respectivos juros.

2. A ré não se conforma com a decisão e dela traz a presente apelação, concluindo:
A. O contrato de seguro de garagista é obrigatório, nos termos do n° 3 do artigo 2.º do Decreto - Lei n° 522/85 de 31/12;
B. No momento do acidente o veículo JQ, causador dos danos, circulava ao serviço e sob as ordens e instruções da oficina "Gineto da Costa & Martins, Lda", timonado por um funcionário desta;
C. E isto porque tal veículo havia sido pelo seu proprietário deposto nessa oficina a fim de aí ser reparado;
D. Havendo seguro de garagista e ocorrendo um acidente de viação quando o veículo circulava sob as ordens e ao serviço do garagista fica excluído o seguro de responsabilidade civil feito pelo proprietário do veículo;
E. Não havendo seguro obrigatório do garagista fica igualmente excluído aquele outro seguro feito pelo proprietário do veículo e é responsável pela indemnização o Fundo de Garantia Automóvel;
F. O proprietário do JQ não tinha conhecimento de que este estava a circular na via pública e o JQ estava a circular não no seu interesse e sob as suas ordens mas sim no interesse e sob as ordens da oficina reparadora;
G. Assim é esta e não a ora Recorrente a única responsável pelo acidente a que o JQ deu causa;
H. A douta sentença recorrida violou, para além de outros, o disposto no n° 3 do artigo 2° do Decreto - Lei n° 522/85, de 31/12.

3. A autora contra-alegou no sentido da confirmação do julgado. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir. Entretanto vejamos os factos provados:
a) A 24 de Junho de 1997, pelas 17,20 horas, deu-se um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro ambulância, matrícula ZE-77-97, marca Mercedes 240 D, e o veículo ligeiro de passageiros, matricula JQ-32-69 (resp. ao n° 1 da Bl).
b) O sinistro ocorreu ao Km 21,350 da Estrada Nacional 328, no lugar da Lombinha, freguesia de Pessegueiro do Vouga, concelho de Sever do Vouga, dentro de uma localidade, com edifícios habitacionais a marginar a via, e zona de muito movimento (resp. aos n° 2 e 3 da 81).
c) A estrada no local é em declive, desenhando-se numa descida para quem circula no sentido Sever do Vouga - Ponte de Pessegueiro, com pavimento asfaltado, em bom estado de conservação, 6,25 metros de largura e uma berma de cerca de 1 metro de largura do lado esquerdo da via, sentido Sever do Vouga -Ponte de Pessegueiro (resp. aos n.ºs 4 a 7 da BI).
d) No sentido Sever do Vouga - Ponte de Pessegueiro a estrada desenvolve-se numa curva, de razoável visibilidade, para a esquerda e entronca pelo seu lado direito, sensivelmente ao meio da curva, com a estrada municipal de acesso ao lugar do Muro (resp. aos n°s 8 e 9 da BI).
e) A EN 328 naquele local dispõe de duas hemi-faixas de rodagem e dois sentidos de marcha, delimitados por um traço continuo ao eixo da via (resp. n° 10 da BI).
f) No dia do acidente estava bom tempo e a hora a que o mesmo ocorreu era dia (resp. ao n° 11 da BI).
g) Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidos circulava o ZE no sentido Ponte de Pessegueiro - Sever do Vouga, tripulado por José António Gomes de Carvalho que circulava com o conhecimento e autorização da Autora, sob as ordens, instruções e ao serviço daquela (resp. aos n° 12 e 13 da B1).
h) O ZE seguia em marcha não superior a 50 Kms/hora, pela hemi - faixa de rodagem direita, considerando o sentido Ponte de Pessegueiro - Sever do Vouga (resp. aos n.ºs 14 e 15 da B1).
i) Quando seguia já em plena curva surgiu-lhe, súbita e inesperadamente, o JQ (resp. ao n° 18 da B1).
j) O JQ circulava no sentido Sever do Vouga - Ponte de Pessegueiro (resp. ao n° 19 da B1).
k) Ao descrever a referida curva o condutor do JQ perdeu o controlo sobre o veículo, que saiu da sua mão de trânsito, galgou o traço continuo, seguiu em sentido oblíquo ao eixo da via e invadiu a hemi-faixa de rodagem esquerda, sentido Sever do Vouga - Pessegueiro do Vouga, indo embater violentamente com a frente no lado esquerdo do ZE (resp. aos n.ºs 20, 21,23 e 24 da B1).
l) Ao aperceber-se do supra descrito o condutor do ZE ainda travou mais este veículo e encostou-o totalmente à berma do lado direito, sentido Ponte de Pessegueiro - Sever do Vouga passando a circular sobre a dita berma, na perspectiva de evitar o embate (resp. aos nos 25 e 26 da B1).
m) O embate deu-se rigorosamente sobre a berma do lado direito, sentido Ponte de Pessegueiro - Sever do Vouga, a 6,90 metros da berma do lado esquerdo, considerando o mesmo sentido (resp. ao n° 27 da B1).
n) Após o embate" o JQ veio a imobilizar-se, atravessado na via, sobre a hemi-faixa de rodagem direita, atento o sentido Sever do Vouga - Pessegueiro do Vouga (resp. ao n° 28 da B1).
o) O veículo ligeiro ambulância matricula ZE-77-97 era propriedade da Autora (resp. ao n° 29 da B1).
p) À data do acidente estava em óptimo estado de conservação, pintura, chaparia, motor, mecânica, estofos, pneumáticos e pneus (resp. ao n° 30 da B1).
q) Com o acidente descrito nos autos o ZE sofreu estragos cuja reparação importou em Esc. 1.752.065$00 e o seu reboque para a oficina que o reparou Esc. 8.775$00, e sofreu um embate violento na sua estrutura (al. a dos FA e resp. aos n.ºs 33 e 34 da B1).
r) O tempo necessário para reparação do veículo era de 18 dias úteis (al. b) dos FA).
s) A Autora dedica-se à actividade social de assistência, transportes de e para os Hospitais, Centros de Saúde, Clinicas, socorro a acidentes, incêndios, e outros, e havia adquirido o veículo ZE-77-97 para o afectar àquela actividade (resp. ao n° 36 da BI).
t) A A. necessitava do ZE diariamente para ocorrer às chamadas de assistência, transportar sinistrados e doentes para os Hospitais, Centros de Saúde e Clinicas, percorrendo em média 200 Kms diários (resp. ao n° 37 da BI).
u) A Ré efectuou a peritagem do veículo em 02.07.97 (resp. ao n° 38 da BI).
v) Desde o acidente a A. esteve privada daquele veículo durante pelo menos 42 dias, contando dias úteis e sábados (resp. ao n° 39 da BI).
w) Com a privação do ZE durante aquele período a A. deixou de ganhar 10.000$00/dia (resp. ao n° 40 da BI).
x) Na perspectiva da resolução do assunto e ressarcimento dos danos sofridos a A. contactou a GNR a fim de obter informações e a Companhia Seguradora. Com tais diligências perdeu tempo (resp. aos n.ºs 41 e 42 da BI).
y) Filipe Miguel era funcionário da oficina "Gineto da Costa & Martins, Lda», com sede em Pessegueiro do Vouga, Sever do Vouga (resp. ao n° 46 da BI).
z) Aquando do acidente Filipe Miguel conduzia o JQ por virtude e no exercício das suas funções, no âmbito da actividade profissional supra aludida, ao serviço e sob as ordens ou instruções de "Gineto & Martins, LdS» (resp. ao n° 47 da BI).
aa) Manuel Miguel da S... era o proprietário do JQ (resp. ao n° 44 da BI).
bb) A responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do JQ encontrava-se transferida para a Ré Seguradora, por contrato de seguro celebrado com Manuel Miguel Silva Oliveira, titulado pela apólice n° 211817, com as condições particulares constantes de fis. 40 (al. c) dos FA).


4. A autora demandou a seguradora do JQ, porque era conduzido pelo Filipe Miguel por conta e no interesse do respectivo proprietário, que assim tinha a direcção efectiva do veículo.
Provados estes factos entendeu o Sr. juiz que o acidente ocorreu por culpa do condutor do veículo JQ, por ter saído da sua mão de trânsito e invadido a faixa de rodagem destinada à circulação dos veículos em sentido contrário. Daí o condenar a respectiva seguradora, por ter assumido, pelo contrato de seguro, a responsabilidade pelos danos provocados pelo veículo.
Porém, o caso assumiu outros contornos, porque o condutor Filipe Miguel era empregado da oficina "Guineto da Costa & Martins, Lda." e aquando do acidente conduzia o JQ por virtude e no exercício das suas funções, no âmbito da actividade profissional, ao serviço e sob as ordens ou instruções da mesma.
Apesar de se não dizer expressamente, estes factos pressupõem que o carro aí havia sido entregue para qualquer reparação, revisão, manutenção ou afinação e embora se não diga porquê, o certo é que vem provado que o condutor actuou dentro desses condicionalismos.
Condicionalismos que levaram a que a ré seguradora, logo na contestação, levantasse a questão da sua própria ilegitimidade, porque a lei impunha a existência de seguro de garagista (seguro obrigatório referido no artigo 2º, n.º 3 do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12) e, caso não existisse, seria o Fundo de Garantia Automóvel a suportar a indemnização.
No prosseguimento da acção veio a constatar-se a inexistência de seguro de garagista e a considerar-se a ré seguradora parte legitima. Na sentença considerou-se que, não obstante o acidente ter ocorrido quando o veículo era conduzido no âmbito da actividade profissional do garagista, o proprietário manteve a direcção efectiva e por isso a ré seguradora mantém a obrigação de indemnizar.
A seguradora recorrente entende que não, porque a lei impõe o seguro obrigatória do garagista e, na omissão deste, transfere a obrigação de indemnizar para o Fundo de Garantia Automóvel; logo, não tendo o garagista seguro obrigatório, deve ser o Fundo de Garantia Automóvel e não a ré a indemnizar.
A apelante ilustra a sua alegação com um acórdão do STJ, publicado no BMJ n.º 288, a págs. 394, mas tê-lo-á feito certamente por lapso, porque esse acórdão decidiu exactamente em sentido oposto à tese da recorrente. Decidiu-se nele que "o proprietário de uma viatura automóvel, que a entrega numa oficina para reparação, não perde essa qualidade e responde, bem como a seguradora, pelos danos causados pela mesma viatura quando intervém em acidente de trânsito, ao ser conduzida por um empregado da mesma oficina para outra, uma vez que ela era, ainda nesse caso, utilizada no seu próprio interesse e sob a sua direcção efectiva".
O acórdão que a apelante pretendeu citar certamente que haveria de dizer que o proprietário não tinha a direcção efectiva do veículo que, a partir do momento em que deu entrada na oficina, era ela quem tinha a direcção efectiva e respondia pelos danos causados enquanto estivesse sob a sua alçada.
Por conseguinte a questão que se nos coloca é apenas a de saber se, tendo ocorrido o acidente quando a viatura era conduzida por um empregado da oficina, onde fora entregue para reparação ou manutenção, no exercício das suas funções e no âmbito da actividade profissional, ao serviço e sob as ordens ou instruções da mesma (como vem provado), e não tendo esta cumprido a obrigação de segurar, deve ser a seguradora do proprietário do veículo ou o Fundo de Garantia Automóvel a suportar a indemnização ao lesado.

5. Ora, não há dúvida de que o citado n.º 3 do artigo 2º do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12 comete aos garagistas a obrigação de segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções e no exercício da sua actividade profissional, os veículos que lhes forem entregues para reparação, desempanagem ou controle de bom funcionamento.
E colhe-se do artigo 15º do Dec. Lei n.º 522/85 e do artigo 17º do Regulamento do Instituto de Seguros de Portugal que no caso de, relativamente ao mesmo veículo, existirem vários seguros, responde em primeiro lugar e para todos os efeitos legais o seguro de garagistas ou, em caso de inexistência deste, o seguro de automobilistas ou, em caso de inexistência destes dois, o contrato celebrado nos termos do nº 2 do artigo 2º (seguro realizado por qualquer outra pessoa que não o proprietário, usufrutuário, adquirente ou locatário) daquele decreto lei.
Estabelece-se, assim, o critério da responsabilidade do segurador, quando existam vários seguros relativamente ao mesmo veículo. De acordo com este critério o seguro de garagista responde pelos danos do veículo que lhe é entregue para reparação, desempanagem ou controle de bom funcionamento, ficando afastada a responsabilidade do segurador contratado pelo proprietário.
Não haveria dúvidas, no nosso caso, se a "Guineto da Costa & Martins, Lda." tivesse cumprido a obrigação de segurar. Como não cumpriu, a apelante pretende que seja o Fundo da Garantia Automóvel.
Mas parece que sem razão. Vejamos.

6. Escreveu-se, a este propósito, num acórdão do STJ ( Acórdão de 8/7/1993, CJ -STJ, vol.II, págs.193) que: "o seguro de responsabilidade por danos da circulação automóvel visou sempre dois interesses: o dos segurados (o seguro é contratado por quem quer tutelar o seu próprio património contra eventualmente pesadas obrigações de indemnizar), e o da vítima (os seus direitos ficam assim fortemente garantidos contra a possível insolvência do devedor).
A partir do momento em que o seguro de facultativo (celebrado em homenagem ao princípio da liberdade contratual - art. 405º do CC), se transformou em seguro obrigatório tornou-se claro que o interesse de protecção das vítimas passou para o primeiro plano como o interesse de maior valor cuja defesa se impunha assegurar.
Disso nos dá conta Leite de Campos quando diz: "a introdução do seguro obrigatório não é devida a uma exigência socialmente sentida de garantir a integridade patrimonial do lesante em si e por si considerado, mas sim a exigência de assegurar ao lesado a indemnização com base na ideia de que todo o dano deve ser indemnizado (o Seguro da Responsabilidade Civil em Acidentes de Viação, pag. 43).
Se é certo que as normas da responsabilidade continuam a ser a base de todo o sistema (o segurador só é obrigado na medida em que o seria o segurado se respondesse pessoalmente), não é menos certo que a responsabilidade civil muda completamente de fisionomia: de instituto destinado a endossar a um indivíduo as consequências patrimoniais dos seus actos transforma-se… "em instrumento jurídico e técnico da pretensão ao seguro"… ou "em simples instrumento de limitação da garantia fornecida pelo segurador" (Sinde Monteiro, Reparação dos Danos em acidentes de Trânsito, 1974, pags. 47 e 48).
Dado o fim fundamental do seguro (garantir ao lesado, nos limites quantitativos estabelecidos pela lei e para os danos previstos, a obtenção da indemnização em todas as hipóteses em que alguém possa ser chamado a indemnizar - Leite de Campos, ob. cit. 43), os diversos sistemas jurídicos tendem a apresentar, na consagração do seguro obrigatório, determinadas características comuns, entre as quais sobressaem: atribuição ao terceiro lesado de um direito próprio contra o segurador, garantido por uma acção directa; inoponibilidade por parte do segurador de algumas, ou mesmo a totalidade das excepções que poderão opôr ao segurado com base no contrato de seguro; criação de fundos de garantia para assegurar, no todo ou em parte, a reparação dos danos causados por condutores desconhecidos, não segurados ou insolventes (Sinde Monteiro, ob. cit. pag. 42)".
Quer isto dizer que, ao instituir o seguro obrigatório, o legislador elegeu como primeira prioridade, a necessidade de indemnizar as vítimas das lesões provocadas pelo automóvel; e fê-lo pela imposição do dever de segurar e segurar por um montante digno; e, prevendo a hipótese de violação deste dever, instituiu o Fundo da Garantia Automóvel, para garantir, até ao montante do seguro obrigatório, a satisfação das indemnizações às vítimas, quando o responsável seja desconhecido, ou, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz e revele manifesta insuficiência de meios para solver as suas obrigações (artigo 21º do Dec. Lei n.º 522/85).
Ou seja, o Fundo de Garantia Automóvel não é chamado a satisfazer a indemnização em igualdade de circunstâncias com as seguradoras; só o será se de todo em todo não for possível, no caso concreto, a indemnização ser satisfeita por estas.
A confirmá-lo está o disposto no artigo 8.º quando determina que o seguro obrigatório garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 2.º - proprietário, usufrutuário, adquirente (no caso de venda com reserva de propriedade) ou locatário (no caso de locação financeira) - dos legítimos detentores e condutores do veículo e até daquele que o furta ou rouba ou do que provoca o acidente dolosamente.
Assim, perante o lesado, o seguro garante não só a responsabilidade do tomador do seguro como ainda a dos legítimos detentores e condutores do veículo (e até a responsabilidade do acidente imputável ao autor do furto ou furtum usus do automóvel). Logo, também garante a responsabilidade daqueles que o detêm por lhes ter sido confiado no âmbito das suas funções, designadamente de garagista.
A este propósito, e numa situação de comodato em que o comodatário foi causador do acidente e se entendeu que o seguro do veículo garantia a responsabilidade, apesar de esta não caber ao tomador, escreveu o Prof. Vaz Serra ( RLJ, 109º, 163): "isto não significa que o proprietário seja responsável por tal acidente, mas apenas que o seguro por ele contratado abrange a responsabilidade civil do comodatário.
Daí resulta que, efectivada pelo segurador a responsabilidade que era objecto do seguro e, por isso, aproveitando o comodatário com o seguro, fica a existir, entre ele e o proprietário, uma relação jurídica em virtude da qual este pode ter contra aquele direito a ser ressarcido".
Por conseguinte, no caso de o garagista não ter seguro e apenas existir o seguro efectuado pelo proprietário do veículo, será a respectiva seguradora quem responde pelos danos causados pela condução e não o Fundo da Garantia Automóvel.
A norma do artigo 15º do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12 apenas regula a situação em que, relativamente ao mesmo veículo, existem vários seguros efectuados ao abrigo do artigo 2º. Dela não resulta - a contrario - que o seguro do proprietário de veículo não responde no caso de inexistência de seguro de garagista. O que resulta é que, havendo seguro de garagista, é este que responde e não o do proprietário. Foi neste sentido que esta Relação decidiu, num caso em tudo idêntico, com o brilhantismo do então desembargador relator Nunes da Cruz. ( cfr. Acórdãos desta Relação, de 13/12/91, CJ, tomo V, págs.77 e segs. No mesmo sentido o acórdão da RP Acórdão da Relação do Porto, de 20/04/1993, sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, 426, pág. 527)
Volvendo ao nosso caso, do que dito fica se conclui que a seguradora, ora apelante, garante - pelo contrato de seguro celebrado com o proprietário do JQ - perante a lesada, autora, a indemnização pelos danos sofridos em consequência da supra descrita colisão e por isso não há que recorrer ao Fundo da Garantia Automóvel, para ressarcir a lesada, cujos interesses ficam, deste modo, plenamente garantidos.
A demais, visto que até nem foi alegada a insuficiência económica do garagista, a solução preconizada pela recorrente - garantir os interesses da lesada pela intervenção do Fundo de Garantia Automóvel - acabaria por os deixar absolutamente desprotegidos.
Num acórdão recente, relatado pelo Exmo. Conselheiro Nuno Cameira ( de 27/05/2003, em www.dgsi.pt ), o STJ decidiu que a obrigação de indemnizar deve recair sobre a seguradora do garagista, nos termos do citado artigo 2.º, n.º 2, ficando afastada a responsabilidade da seguradora do proprietário e isso não colide com a nossa tese, uma vez que é suposto, nesse caso, o garagista ter seguro e isso também nós defendemos. A diferença está em que, no nosso caso, o garagista não tem seguro e defendemos que, respondendo o seguro do proprietário, não tem a indemnização que ser satisfeita pelo Fundo de Garantia Automóvel.
Em suma, podemos concluir:
I. O proprietário de um veículo automóvel que o entrega numa oficina para reparação, desempanagem ou controle de bom funcionamento, não deixa de ter a direcção efectiva do veículo e de o estar a utilizar no seu próprio interesse;
II. Não só por isso, mas também porque o seguro celebrado com o proprietário garante, perante o lesado, a responsabilidade daqueles que detêm o veículo, por lhes ter sido confiado no âmbito das suas funções, designadamente de garagista, a respectiva seguradora responde pelos danos causados pelo mesmo, quando intervém em acidente de viação, ao ser conduzido por um empregado da oficina;
III. No entanto, se o garagista tiver seguro obrigatório de responsabilidade civil é a sua seguradora que responde pelos danos e não a do proprietário; se o não tiver, não é o Fundo de Garantia Automóvel, mas a seguradora do veículo, contratada pelo proprietário, que responde por eles.

Decisão
Pelo exposto acordam os juizes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Coimbra,