Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1685/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
Data do Acordão: 07/05/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 281º, DO C. P. PENAL
Sumário: Mostrando-se ausente um dos pressupostos a que alude o art.º 281º do CPP – ausência de antecedentes criminais do arguido – outra alternativa não resta ao JIC que não seja a de manifestar a sua discordância relativamente à suspensão provisória do processo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Findo o inquérito acima mencionado em cujo âmbito foi constituído arguido A... o Ministério Público ao abrigo do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Penal [CPP] suscitou judicialmente a suspensão provisória do processo como aí facultada.
Na ponderação assim reclamada, exarou-se despacho com o teor seguinte:
“Tal como resulta indiciado nos autos, o comportamento do arguido configura juridico-penalmente um crime de maus-tratos a cônjuge, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal, com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Como afloramento de um principio de oportunidade, o art.º 281.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal, consagra a possibilidade de o Ministério Público decidir suspender provisoriamente o processo, por um período máximo até dois anos (art.º 282.º, n.º 1, do Cód. de Processo Penal), impondo ao arguido determinadas injunções ou regras de conduta, desde que se verifiquem os seguintes pressupostos:
1. Tratar-se de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diversa da prisão;
2. O arguido e o assistente (se houver) manifestarem a respectiva concordância;
3. Ausência de antecedentes criminais do arguido;
4. Não houver lugar a medida se segurança de internamento;
5. A culpa do arguido se revestir de carácter diminuto;
6. Se preveja que o cumprimento das regras de conduta e injunções respondam suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir;
7. Concordância do juiz de instrução.
Tratando-se de crime de maus-tratos a cônjuge, importa, ainda, considerar a hipótese normativa do n.º 6 do art.º 281.º do Cód. de Proc. Penal, segundo o qual “em processos por crime de maus-tratos entre cônjuges, entre quem conviva em condições análogas ou seja progenitor de descendente comum em 1.º grau, pode ainda decidir-se, sem prejuízo do n.º 1, pela suspensão provisória do processo a livre requerimento da vitima, tendo em especial consideração a sua situação e desde que ao arguido não haja sido aplicada medida similar por infracção da mesma natureza”.
Findo o período da suspensão, o Ministério Público, se o arguido tiver cumprido as injunções e regras de conduta, determinará o arquivamento dos autos e, em caso de incumprimento, os autos prosseguirão os seus termos (art.º 282.º, n.º 2, do Cód. de Processo Penal).
In casu, se à primeira vista se afiguram como preenchidos quase todos os pressupostos para que se possa decidir pela suspensão provisória, um se mostra ausente, cujo é a ausência de antecedentes criminais do arguido – cfr. certificado do registo criminal junto aos autos.
Ora, o n.º 1 do art.º 282.º do Cód. de Processo Penal é taxativo quanto à enumeração dos requisitos a observar.
Por outro lado, o n.º 6 do mesmo art.º não afasta tais exigências, antes as reforça, conforme resulta da expressão “sem prejuízo do n.º 1”, apenas acrescentando a possibilidade de a suspensão provisória poder ser suscitada pela própria vítima junto do Ministério Público.
Destarte, por não verificados todos os pressupostos de que a mesma depende, não deve ser determinada a suspensão provisória do processo.
Pelo exposto,
Não concordo com a suspensão provisória do presente processo.
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Remetam-se os autos aos serviços do Ministério Público.”
1.2. Discordando de tal decisão, o Ministério Público interpôs o recurso presente que, depois de devidamente motivado, contém o quadro seguinte de conclusões:
1.2.1. A decisão em crise não aplicou o direito de forma correcta, por não ser a que melhor se adequa ao tipo legal e à própria mens legislatoris.
1.2.2. Com a publicação da Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio, que atribuiu natureza pública ao ilícito, foi introduzido no corpo do art.º 281.º do CPP o seu actual n.º 6, que prevê que o MP “pode ainda decidir-se, sem prejuízo do disposto no n.º 1, pela suspensão provisória do processo a livre requerimento da vitima, tendo em especial consideração a sua situação e desde que ao arguido não haja sido aplicada medida similar por infracção da mesma natureza”…
Com a expressão “sem prejuízo do disposto no n.º 1” pretendeu o legislador autonomizar a suspensão do inquérito nos termos do n.º 6, dos requisitos do n.º 1 do art.º 281.º do CPP, ou seja, a intenção do legislador foi a de que, em inquéritos onde se indicie a prática de crimes de maus-tratos entre cônjuges, o MP “sem prejuízo de que”, caso se verifiquem os requisitos do n.º 1 (e a vitima nada requeira) possa propor ele próprio a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo (como já podia,) poder propor, também, caso exista livre requerimento da vitima, a suspensão do inquérito, tendo somente em consideração os requisitos do n.º 6, estes substancialmente menos exigentes.
1.2.3. Não obstante a natureza pública do crime, são os interesses da vítima que estão sobretudo em jogo e a iniciativa em requerer, livremente, a suspensão do inquérito corresponderá, a maior parte das vezes, a um menor desvalor do resultado, que faz atenuar as necessidades de intervenção do direito penal, pelo que a verificação dos requisitos do art.º 281.º, n.º 6, só por si, garante os fins de protecção da vítima e de condenação social e efectiva da conduta
A interpretação da norma nos termos em que o M.mo Juiz o faz levaria a que, sem o requerimento da vítima, fosse necessária a averiguação dos requisitos do n.º 1 do art.º 281.º do CPP (cinco) e com o referido requerimento e consequente diminuição da necessidade da intervenção penal, os cinco requisitos passassem para oito, dificultando, ou mesmo inviabilizando, a aplicação do instituto que de semi-público passaria a ter, para além da natureza pública, uma muralha de protecção quase inexpugnável.
1.2.4. Na verdade, só esta interpretação das normas conflituantes permite o necessário compromisso entre a natureza pública do crime e as exigências e interesses da mulher, (caso a sua vontade seja livre e esclarecida).
1.2.5. Assim, neste entendimento, a suspensão a requerimento da vitima conforme o n.º 6 do art.º 281.º do CPP mais não será do que “uma válvula de escape do sistema criado e que nela se insere”, pois, sem pôr em causa natureza pública do crime, permite harmonizar os sensíveis interesses conflituantes, conferindo assim a este tipo legal uma natureza pública sui generis.
1.2.6. Salvo o devido respeito por opinião contrária, deveria o M.mo JIC ter dado o seu aval à suspensão provisória do processo tal como sugerida, pois que todos os pressupostos exigidos ao efeito pelo n.º 6 do art.º 281.º do CPP se mostravam reunidos.
1.2.7. Decidindo em contrário violou, consequentemente, o indicado normativo.
Terminou pedindo que na procedência do recurso seja revogado o despacho recorrido, substituindo-se por outro que dê aquiescência à suspensão provisória do processo, nos moldes equacionados.
1.3. Admitido o recurso, sem qualquer resposta do arguido, e instruídos os autos, foram eles remetidos a este Tribunal.
1.4. Aqui, o Exmo. Procurador-geral Adjunto, na adesão ao antes expendido pelo recorrente, emitiu parecer conducente ao provimento do recurso.
1.5. Cumpriu-se com o disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2 do CPP.
1.6. No exame preliminar a que alude o n.º 3 de igual normativo consignou-se que nada obstava ao conhecimento do recurso.
1.7. Colhidos os vistos dos M.mos Adjuntos, realizou-se conferência.
Cabe, então, apreciar.
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II – Fundamentação.
2.1. Como é consabido, o âmbito do recurso é dado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (cfr., entre outros, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça [STJ], de 19 de Junho de 1996, no BMJ, 458.º/pág. 98). Na verdade, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (vd. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. pág. 335), isto sem prejuízo, naturalmente, daquelas que assumam eventual conhecimento oficioso.
No caso dos autos, não existindo nenhuma das últimas, e lendo-se as conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso interposto, temos que o objecto respectivo se cinge a uma única estrita questão, qual seja a de verificarmos se, ao contrário do sufragado no despacho recorrido, em caso de ilícito como o em causa, a suspensão provisória do processo pode ser determinada mesmo que se não verifique, em concreto, o pressuposto definido pelo artigo 281.º citado, seu n.º 1, alínea b).
2.2. Um dos princípios estruturantes do nosso sistema penal é o da legalidade. Significa ele que a entidade titular da acção penal está obrigada a promovê-la sempre que tiver adquirido a notícia de um crime e a submetê-la a julgamento desde que se tenha verificado a existência de indícios suficientes da prática do crime e de quem foram os seus agentes. Sob a égide de tal princípio conserva-se um característico e basilar postulado do Estado de Direito formal, traduzido na garantia jurídica de defesa dos cidadãos face ao arbítrio estatal, garantia que se funda, por sua vez, na exigência de que todos os cidadãos são iguais perante a lei.
Decorrência ou corolário desse princípio é o da imutabilidade quer do processo penal, quer do conteúdo seu objecto. O que significa a imutabilidade da acusação pública e com ela a impossibilidade de renúncia ou desistência da mesma, vale por dizer, do fechar de portas a soluções jurídico-processuais no domínio da diversão.
A admissibilidade desta está, em contrário, vinculada à possibilidade de funcionamento do princípio da oportunidade que se traduz basicamente na faculdade, conferida à entidade com legitimidade para exercer a acção penal, de poder ou não fazer uso do seu exercício, segundo considerações de vária ordem, nomeadamente políticas, financeiras, sociais, etc. A diversão traduzir-se-á, então, como a tentativa de solução do conflito jurídico-penal fora do processo normal de justiça penal, devendo operar num seu momento intraprocessual (cfr. A Relevância Político-Criminal da Suspensão Provisória do Processo, de Fernando José dos Santos Pinto Torrão, Almedina, págs. 125/7).
Típico exemplo de instituto consagrado sob a égide da consideração de tais juízos de oportunidade e de diversão (subordinado à tentativa de combater as bagatelas penais, como sobressai do n.º 6 a) do relatório do CPP) é o plasmado pelo artigo 281.º aludido, seja da suspensão provisória do processo.
Descurando da delimitação estrutural e regime jurídico deste instituto, mormente sujeitos processuais envolventes, pressupostos materiais de aplicação; injunções e regras de conduta admissíveis e consequências jurídicas da decisão de suspensão, focalizemos a nossa atenção na singela questão colocada.
E, adiantando a solução, no sentido de que com o despacho recorrido, se nos afigura não ser admissível no caso dos autos a reclamada suspensão, pois que o arguido tem antecedentes criminais.
Louva-se a tentativa ensaiada pelo recorrente que, de jure constituendo, quiçá mereceria o aplauso da solução propugnada.
Contudo, a utilização da expressão “sem prejuízo do disposto no n.º 1” no n.º 6 do apontado artigo 281.º faz ruir, em contra ciclo, o que porventura constituiu uma intenção legislativa.
A tese defendida pelo recorrente teria inequívoca consagração com a simples utilização alternativa, v.g., da expressão “independentemente do disposto no n.º 1”. Aqui seria manifesta a interpretação a seguir.
Já a expressão utilizada comporta um distinto entendimento de exigência de verificação cumulativa de pressupostos que bem interpretou o M.mo Juiz a quo.
Como resulta do artigo 9.º do Código Civil a interpretação normativa deve cingir-se, desde logo, à letra da lei embora concedendo o recurso ao elemento sistemático e ao elemento teleológico. Importa, todavia, não olvidar que: «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» – n.º 2 de tal artigo –.
Ora, no caso concreto, acatar o entendimento sugerido pelo recorrente seria no ensaio de buscar o elemento teleológico, perfilhar um entendimento que não tem mínimo arrimo na letra da lei. Bem pelo contrário, como decorre da expressão em causa.
Sufragar solução diversa da adoptada traduzir-se-ia, ainda, na permissão ao juiz de instrução para que a devida concordância que também lhe é imposta pudesse estar arredada do princípio da legalidade a que, porém, ele se deve manter vinculado.
Do que decorre, como já dito, que mostrando-se ausente um dos pressupostos a que alude o artigo 281.º, n.º 1 do CPP – ausência de antecedentes criminais do arguido –, outra alternativa não restava ao M.mo JIC que não fosse o de manifestar a sua discordância relativamente à sugerida suspensão provisória do processo.
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III – Decisão.
Tendo em consideração todo o exposto, nega-se provimento ao recurso e, consequentemente, mantém-se o despacho recorrido.
Sem tributação.
Notifique.
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Coimbra, 5 de Julho de 2006