Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
78/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ESTRADA PÚBLICA E ESTRADA PARTICULAR
CULPA NO ACIDENTE
Data do Acordão: 03/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS MISTAS DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 2º, Nº 2; 3º, Nº 2; E 99º DO C. ESTRADA DE 1994; 570º C. CIV. .
Sumário: I – A noção ampla de acidente de viação abrange, quanto ao local, não só as vias públicas mas também as vias particulares, desde que o acidente seja provocado pela circulação de um veículo, reconduzindo-se a “acidente de circulação” .
II – Desconhecendo-se a natureza pública ou privada da estrada onde ocorreu o acidente, mas depreendendo-se tratar-se de uma via aberta ao trânsito público em zona rural, mesmo se se considerar tal via como privada também aqui se aplicam as regras do Código da Estrada, por imperativo do disposto no artº 2º, nº 2, do Código da Estrada de 1994 .

III – Circulando um tractor agrícola, com reboque e carregado de madeira, por um caminho florestal, vindo o reboque a tombar com a respectiva carga, por deficiência do seu condutor, com o que foi atingido um peão que acompanhava a marcha do tractor e pelo prédio rústico situado do lado direito da via em causa, não pode imputar-se a esse peão uma culpa concorrente no acidente, por violação das regras dos artºs 3º, nº 2, e 99º do referido C. Estrada .

IV – O artº 570º do C. Civ. não postula um dever genérico de o lesado se auto-respeitar, mas apenas um princípio de repartição / imputação do dano .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO

O Autor – A... – instaurou na Comarca de Coimbra acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a Ré – B...
Alegando, em resumo, ter sofrido danos em consequência de um acidente de viação, causados culposamente pelo condutor de um tracto agrícola, pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de 23.490.530$00, acrescida de juros de mora, à taxa de 7%, ao ano, desde a citação, até integral pagamento.
Contestou a Ré, defendendo-se por excepção, ao alegar que o seguro exclui a obrigação de indemnizar, no caso concreto, e por impugnação descrevendo uma versão diferente do acidente.
Respondeu o Autor, contraditando a defesa por excepção.
No saneador relegou-se para final o conhecimento da excepção peremptória, afirmando-se quanto ao mais a validade e regularidade da instância.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu condenar a Ré a pagar ao Autor:
a) 9.000,00 euros (nove mil euros), a título de danos não patrimoniais;
b) 149,64 euros (cento e quarenta e nove euros e sessenta e quatro cêntimos), a título de despesas de deslocações e;
d) 52.500,00 euros (cinquenta e dois mil e quinhentos euros, a título da IPP de que é portador e correspondente perda da capacidade de ganho; tudo, no montante global de 61.649,64 euros (sessenta e um mil seiscentos e quarenta e nove euros e sessenta e quatro cêntimos);
e) - Sobre as quantias atribuídas a título de danos patrimoniais acrescem juros de mora, sempre sobre o capital em dívida, à taxa de 7 %, ao ano, prevista na Portaria n.º 263/99, de 12/04/99, desde a citação e até 30/04/03 e à de 4%, ao ano, prevista na Portaria 291/2003, de 08/04, desde 01/05/03 e até efectivo e integral pagamento e sobre as atribuídas a título de danos não patrimoniais, acrescem juros, à taxa de 4%, ao ano, também sobre o capital em dívida, desde a data da presente decisão e até efectivo e integral pagamento.

Inconformado, o Autor recorreu de apelação, rematando com as seguintes conclusões:
1º) – Houve erro manifesto na aplicação do direito aos factos, nomeadamente no art.487 nº2 do CC.
2º) – O Autor não violou as regras dos arts.3º nº2 e 99 do CE, pois não praticou qualquer acto que impedisse ou embaraçasse o trânsito ou comprometido a segurança dos utentes na via.
3º) – Também não agiu com imprudência, não lhe sendo exigível prever o inesperado, ou seja, a queda do reboque e contar com a falta de prudência do condutor do tractor.
4º) – Ao não atribuir a culpa exclusiva do sinistro ao condutor do tractor, o tribunal violou a norma do art.487 nº2 do CC.
Contra-alegou a Ré sustentando a improcedência do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - Os factos provados:
1) - No dia 18/07/98, cerca das 13 h, junto a uns prédios rústicos sitos no Caraboi, no lugar de Vale de Rosas, freguesia de Lamarosa, concelho de Coimbra, ocorreu um acidente de viação, em que intervieram o conjunto agrícola composto por um tractor, de matrícula XT-08-82 e um reboque de matrícula C-41635, do qual é proprietária C..., conduzido aquando do acidente pelo seu filho, D... e o aqui A.
2) O referido tractor e reboque circulavam numa via de acesso a vários prédios rústicos sitos em Caraboi, numa estrada que os liga a Vale de Rosas e que termina a nascente junto dos mesmos.
3) O reboque havia sido carregado de lenha por vários agricultores, que ali faziam o abate de pinheiros.
4) Já depois de ter percorrido cerca de 200 a 300 metros no sentido Vale de Rosas - Vila Verde, o tractor, ao passar por cima de diversos buracos que existiam na estrada, começou por oscilar à esquerda e depois à direita, vindo a cair na via, do lado direito, o reboque com toda a carga que o mesmo transportava.
5) O A., que havia estado a carregar o tractor, estava no prédio situado do lado direito do veículo, acompanhando a marcha do mesmo e, surpreendido pela queda do reboque, foi apanhado pelo mesmo e pela carga nele transportada, ficando debaixo dos rolos de madeira.
6) O tractor não tombou.
7) Em consequência do acidente o A. sofreu uma hemorragia sub-aracnoideia extensa com inundação ventricular e hidrocefalia aguda, edema cerebral difuso, hemorragia bubdural a nível da tenda do cérebro direito, apresentando, ainda, esfacelo auricular direito, fractura da arcada direita, abrasão da face direita, traumatismo da coluna com fractura de D 12 e traumatismo toráxico.
8) O A, tinha acabado uma formação de encadernação e tinha em vista o exercício daquela actividade e preparava-se para concorrer a um lugar de encadernador.
9) O vencimento médio de um encadernador oscila entre os 500,00 e os 750,00 €.
10) O A. de 18/07/98 a 31/05/99 sofreu de ITA para o trabalho.
11) Em consequência do acidente, o A. despendeu em transportes nas deslocações da sua residência aos HUC e vice-versa, para consultas e tratamentos, uma quantia nunca inferior a 50.000$00.
12) E já foi operado para extracção do material que lhe foi implantado na coluna.
13) Pelas lesões e ferimentos sofridos no acidente e suas sequelas, o A. teve dores intensas, mal-estar e sofrimentos prolongados e angústias.
14) O A. deu entrada em 18/07/98, no Serviço de Urgência dos HUC e atendendo à gravidade do seu estado, foi internado no Serviço de Medicina Intensiva com estado de consciência avaliado em E1M4V1, segundo escala de Glasgow.
15) Foi sujeito a intervenção cirúrgica em 22/07/98 e foi transferido para o Serviço de Neurotraumatologia, onde esteve internado de 22/07/98 a 30/07/98, tendo sido, então, transferido, para Ortopedia 4, por fractura em afundamento de D12 mais de 50%.
16) Em 06/08/98, foi operado para fixação posterior com material USS - artrodese posterior com enxerto colhido do ilíaco, tendo alta da Ortopedia em 28/08/98.
17) Passou, então, a partir de 03/02/99 a iniciar Medicina Física e de Reabilitação.
18) O A. retomou a sua actividade após um ano de ITA.
19) O A. sentiu com grande intensidade a gravidade do que lhe estava a acontecer, porque esteve entre a vida e a morte por muito tempo, foi submetido a várias intervenções cirúrgicas e passou por um estado de coma.
20) O A. ficou com uma IPP de 35%, em consequência das lesões sofridas.
21) Sente-se frustrado por não poder efectuar, com a mesma habilidade e destreza, os exercícios e trabalhos que executava até então com facilidade.
22) Sofre de dores intensas na coluna e é incapaz de estar por muito tempo de pé ou sentado, tendo de fazer longas pausas em posição de descanso, deitando-se para aliviar as suas dores.
23) Esteve muito tempo sem conseguir falar de forma inteligível, tendo grandes dificuldades em se fazer entender e vendo-se obrigado a realizar longos exercícios de terapia da fala.
24) O A. apresenta uma cicatriz com cerca de 15 cm, diversas cicatrizes na orelha direita, assim como ao longo da coluna vertebral.
25) O que o levou a deixar de expor o seu corpo, nomeadamente na praia, onde já não vai desde o acidente.
26) Deixou de ser o rapaz alegre e saudável que sempre foi até à data do acidente, para se tornar mais taciturno, introvertido e envergonhado.
27) Deixando de conviver e de sair com os seus amigos com a mesma frequência, receando a todo o tempo ser questionado sobre a sua incapacidade, assim como porque não pode fazer viagens de carro, de longa duração, sob pena de sofrer de dores intensas.
28) O A. nasceu em 18 de Julho de 1970, cf. respectivo assento de nascimento, junto a fl.s 47, aqui dado por inteiramente reproduzido.
29) A proprietária do conjunto referido em 1), havia transferido para a ora Ré, por contrato de seguro, válido e eficaz à data do acidente, titulado pela apólice n.º 43-119040/06, de que acha junta cópia a fl.s 22, aqui dada por reproduzida, a responsabilidade civil pelos danos causados por tal conjunto.

2.2. - O Direito:
A sentença recorrida, na ponderação da dinâmica factual do acidente, concluiu pela existência de culpas concorrentes, na proporção de 60% para o condutor do tractor e 40% para o Autor ( peão ).
O condutor do tractor por não ter regulado a velocidade de forma a evitar a queda do reboque e respectiva carga, com violação das regras dos arts.24 nº1, 25 nº1 b) e 56 nº2 e 3 a) e b) do CE, e o Autor por haver infringido as normas dos arts.3º nº2 e 99 do CE, já que violou o dever geral de cuidado.
Em contrapartida, considera o apelante não haver violado os normativos citados, devendo imputar-se ao tractorista a culpa exclusiva do acidente – sendo este o objecto do recurso - , objectando com os seguintes argumentos:
a) - O Autor não se encontrava na via pública, mas num prédio sito do lado direito do veículo, pelo que não praticou qualquer acto que embaraçasse o trânsito;
b) - Não lhe era exigível que contasse com a imprudência do condutor do tractor e com a ocorrência inesperada ( queda da carga );
c) - Ainda que se admita a sua contribuição culposa, é exagerada a proporção da culpa ( 40% ).
O acidente ocorreu quando, depois de o respectivo reboque ter sido carregado com rolos de pinheiro e já ter percorrido cerca de 200 a 300 metros, numa estrada florestal, ao passar em cima de uns buracos, oscilou para ambos os lados, acabando o reboque e a respectiva carga por tombar, vindo a cair na estrada, do lado direito, com toda a carga que transportava.
O Autor, que havia estado a carregar o tractor, acompanhava a sua marcha num prédio situado do lado direito do veículo e sendo surpreendido pela queda do reboque foi apanhado pelo mesmo e pela carga nele transportada, ficando debaixo dos rolos de madeira.
Numa primeira observação, impõe-se sublinhar que o caso concreto assume contornos peculiares, visto que o acidente ocorreu numa estrada florestal ( via de acesso a vários prédios rústicos sitos em Caraboi, numa estrada que os liga a Vale de Rosas e que termina a nascente junto dos mesmos ), por onde circulava um veículo composto por tractor agrícola ou florestal com reboque, carregado de madeira.
É inquestionável tratar-se de um acidente, enquanto ocorrência anormal e imprevista, devendo aqui configura-se como acidente de viação, na sua acepção ampla, ou seja, um “acidente de circulação”, tal como na designação francesa de “ accidents de la circulation “ ( cf. SERGE PLUMELLE, Infracode, 7ª ed., prefácio ), e que melhor se aproxima do étimo latino “ vectio “.
Por isso se tem entendido uma noção ampla de acidente de viação, abrangendo quanto ao local não só as vias públicas, como até as particulares, desde que seja provocado pela “circulação”.
Embora se desconheça a natureza pública ou privada da estrada, em todo o caso depreende-se tratar-se de uma via aberta ao trânsito público em zona rural, logo, mesmo a considerar-se privada, também aqui se aplicam as regras do Código da Estrada, por imperativo do disposto no art.2º nº2 ( CE/94 ).
Note-se que a propósito da noção similar de via pública postulada no art.1º do CE/54, já VAZ SERRA sustentava que o referido conceito se deveria ampliar de modo a abranger “ todos os locais que proporcionem a possibilidade de alguém ser lesado por um veículo que neles manifeste os riscos especiais” ( RLJ ano 104, pág.46 ).
Para aferir da ilicitude e da culpa, enquanto pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual ( art.483 do CC ), serão aqui convocadas as regras do Código da Estrada /94.
Sobre a actuação culposa do tractorista, a sentença recorrida justificou-se com a violação das regras dos arts. arts.24 nº1, 25 nº1 b) e 56 nº2 e 3 a) e b) do CE/94, que não foi impugnada.
Resta aquilatar da contribuição culposa do Autor para os danos provocados pelo acidente, o que implica saber se ao assumir a qualidade de peão, violou as normas dos arts.99 e 3 nº2 do CE.
Neste contexto, afirmou-se na sentença que o Autor “ devia ter em conta o perigo resultante de circular, a pé, ao lado de um tractor carregado de madeira, numa estrada florestal em que existiam vários buracos e, assim, perspectivar a possibilidade, real, de o tractor se virar, tudo aconselhando que não circulasse ao lado do tractor mas em local suficientemente dele afastado, de forma a salvaguardar a sua integridade física, no caso de ocorrer, como ocorreu, a queda do reboque e da carga, ou do tractor “.
Contrariamente ao alegado pela Ré ( art.2º da contestação ), não se comprovou que o Autor seguisse sobre a carga do reboque ( resposta negativa ao quesito 4º ), demonstrando-se estar no prédio situado ao lado do veículo, acompanhando a sua marcha, quando foi surpreendido pela queda do reboque.
Pese embora a matéria de facto ser omissa sobre as características e configuração do caminho ou estrada florestal, é por demais evidente que caminhando o Autor pelo prédio que ladeava a referida estrada, não o fazia pela faixa de rodagem ou pela berma ( se é que existia ), logo não poderá imputar-se a violação do art.99 do CE.
Com efeito, as regras de trânsito para os peões podem, no essencial, resumir-se no seguinte: (a/) existindo passeios, pistas ou passagens ou, na sua falta, bermas, devem os peões transitar por esses locais ( nº1 ), sendo indiferente agora o seu sentido de marcha, contrariamente à anterior norma do art.40 do CE/54; (b/) não existindo esses locais ou na impossibilidade de os utilizar, podem transitar pela faixa de rodagem, mas desde que o façam com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos ( nº1 b) ).
Mesmo a admitir-se que, naquelas peculiares circunstâncias, o prédio lateral à via funcionava como berma (segundo um critério funcional e não rigorosamente jurídico, na acepção do art.1 alínea m) do CE ) o sentido de marcha do Autor era indiferente, pois não estava obrigado a fazê-lo pela esquerda, e, nesta perspectiva, sempre seria concebida como reduto onde os peões devem poder circular livremente por confiarem na presunção de inexistência de circulação rodoviário no espaço que lhes é reservado.
Por outro lado, também não se vê que a sua conduta ( passiva ) tivesse atentado contra a liberdade de circulação, bem jurídico tutelado pela norma do art.3 nº2 do CE.
Na verdade, postula-se aqui um princípio geral do dever de diligência ou de cuidado e como resulta da própria sistemática, esta norma insere-se no âmbito dos princípios gerais do Código da Estrada, à semelhança do antecedente art.1º nº2 do CE/54, visando tutelar a liberdade de trânsito ou de circulação de quaisquer utentes das vias, condutores ou não, impondo um dever geral de abstenção dirigido a todas as pessoas.
O conteúdo deste dever abrange os actos que impeçam ou embaracem o trânsito rodoviário, a segurança e comodidade dos utentes das vias, ou seja, um dever geral de cuidado ou de prevenção do perigo.
Mas não tendo o Autor infringido as regras de trânsito para peões e dado que o sinistro consistiu na queda do reboque, por deficiente condução do tractorista, temos por seguro que o facto de caminhar ao lado do tractor, através de espaço em prédio lateral, em nada contribuiu para afectar a liberdade de circulação do veículo/tractor agrícola.
Poder-se-á dizer que tal como o art.13º do CE impõe que o trânsito de veículos se faça o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando uma distância que permita evitar acidentes, também decorre de uma interpretação teleológica do art.99, conjugado com o art.3 do CE, que mesmo nas situações em que é permitida a circulação de peões, também o devem fazer a uma distância que evite qualquer acidente, parecendo ser esta a lógica subjacente à sentença.
Contudo, ainda que o Autor tenha ajudado a carregar o reboque, não pode daqui inferir-se que perspectivasse a “possibilidade real” do mesmo virar, tanto mais não se comprovar que a carga estivesse mal acondicionada ( cf. resposta negativa ao quesito 5º ) e, por outro lado, nada foi alegado sobre a distância a que seguia em relação ao tractor.
Assente inexistir qualquer infracção às regras de trânsito por parte do Autor, será legítimo, mesmo assim, fazer intervir aqui a norma do art.570 nº1 do CC, cuja ratio é explicitada pela ideia jurídica de uma auto-responsabilidade do lesado, apenas com base na violação de um dever genérico de prevenção do perigo?
Fora dos casos tipicizados no art.486 do CC ( responsabilidade pela omissão ), o nosso direito aceita ainda o princípio geral do dever de prevenção do perigo, radicando em razões de natureza ética, no princípio geral do “ neminem laedere “.
Este princípio foi, há muito, objecto de especial atenção pela jurisprudência e doutrina alemãs ao admitirem vários deveres de tráfego baseados “ na ideia de abrir uma fonte de perigos funda o dever jurídico de adoptar as precauções para o evitar “, como informa VAZ SERRA ( BMJ 84, pág.109 e segs. ).
Também ANTUNES VARELA veio enfatizar no plano dogmático este princípio geral ( RLJ ano 114, pág.77 e segs., em anotação ao Ac STJ de 26/3/80 ), o qual, embora não expressamente plasmado em preceito legal, decorre de várias normas do Código Civil, no sentido de que “ a pessoa que cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ela relacionados “.
Pois bem, perante a factualidade apurada, é apodíctico que o Autor não criou uma situação de perigo para a circulação rodoviária do tractor e da norma do art.570 nº1 do CC não se pode retirar a existência de um dever genérico de o lesado se auto-respeitar, mas apenas um princípio de repartição-imputação do dano.
Conforme acentua BRANDÃO PROENÇA, este preceito “ não se apresenta como uma norma de conduta, com uma finalidade proibitiva ou impositiva destinada a tutelar os interesses do lesado, pois não se vislumbra na interpretação que se faça do preceito um conteúdo preenchido por uma proibição abstracta de o dono dos bens os colocar em perigo “ ( A Conduta do Lesado, pág.455 ).
Apenas em determinados domínios, como, por exemplo, o das contra-ordenações estradais é que se faz apelo à “doutrina do fim de protecção”, mas como já se anotou não se vislumbra qualquer infracção por parte do Autor.
De resto, mesmo que por hipótese, seguindo a linha discursiva da sentença, o Autor houvesse omitido o dever geral de cuidado, sempre se poria o problema da causalidade da omissão, ou seja, se esta foi causal para a contribuição dos danos, o que nos remeteria para os “critérios da imputação”.
A este propósito, a doutrina tem avançado várias teorias, como por exemplo, a " teoria da interferência " ou a " teoria da acção esperada ", parecendo, no entanto, que as mais relevantes, para o efeito, são as que se reportam ao " princípio da adequação" e ao " princípio do incremento do risco ".
Segundo a teoria da adequação ( causalidade adequada ) nem todas as condições são relevantes, mas tão somente aquelas que previsivelmente são idóneas a produzir o resultado, e daí que a adequação se afira segundo um juízo de prognose póstuma, reportado ao momento do sinistro.
Noutra perspectiva, e a propósito da imputação, CLAUS ROXIN refere que quando o legislador permite, à semelhança do que sucede em outras manifestações da vida moderna, se ocorra um risco até certo limite, apenas poderá haver imputação se a conduta do autor significa um aumento do risco permitido ( Problemas Fundamentais de Direito Penal, pág.152 ).
Ora, tanto pela teoria do nexo, como do princípio do incremento do risco, não se pode asseverar que o resultado tivesse sido também causado pela conduta passiva do Autor, ou seja, que fizesse aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação do risco permitido.
Por conseguinte, conclui-se pela culpa exclusiva do condutor do tractor, sem que se possa imputar qualquer responsabilidade ao Autor/lesado, o que implica a condenação da Ré Seguradora no pagamento integral dos danos computados na sentença, no montante global de € 102.749,40, os quais não foram impugnados.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar procedente a apelação e, revogando-se a sentença recorrida, condenar a Ré a pagar ao Autor:
1.1.) – A quantia de € 102.749,40 ( cento e dois mil setecentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos );
1.2.) – Os juros de mora, à taxa de 7 %, ao ano, prevista na Portaria n.º 263/99, de 12/04/99, desde a citação e até 30/04/03 e à de 4%, ao ano, prevista na Portaria nº 291/2003, de 08/04, desde 01/05/03 e até efectivo e integral, sobre a quantia de € 87.749,40 ( oitenta e sete mil setecentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos );
1.3.) – Os juros de mora, à taxa de 4% ano desde a data da sentença e até integral pagamento, sobre a quantia de € 15.000,00 ( quinze mil euros ).
2)
Condenar a Ré/apelada nas custas, em ambas as instâncias.
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Coimbra, 14 de Março de 2006.