Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
73/14.9GAPNL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
CONDUÇÃO SOB EFEITO DE ESTUPEFACIENTES
IN DUBIO PRO REO
FALTA DE TESTE QUALITATIVO E QUANTITATIVO
CONSUNÇÃO DE CRIMES
NEXO DE CAUSALIDADE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
EXAMES
INSTITUTO DE MEDICINA LEGAL
EMA
Data do Acordão: 07/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL - JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 292.º, N.º 1 E 2, DO CP; 81.º, N.ºS 1, 5 E 6, AL. B), 146.º AL. M), 147.º, N.ºS 1 E 2, 153.º E 170.º, N.º 1, AL. B), DO CE; 1.º, 2.º, 4.º E 5.º, DA LEI 18/2007, DE 17/5 QUE APROVOU O REGULAMENTO DE FISCALIZAÇÃO DA CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL OU DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS
Sumário: I – A acusação deve indicar sempre a taxa de álcool no sangue concreta com que o arguido conduzia e não a taxa variável de acordo com o erro máximo admissível.

II - O EMA é aplicável pela autoridade de fiscalização nos termos do regulamento de controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição quando a infracção for aferida por aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares, não se aplicando quanto a TAS é determinada por prova pericial, através da análise à amostra de sangue.

III – A entidade fiscalizadora não tem o poder discricionário para agir como lhe aprouver na pesquisa de álcool no sangue, pois o condutor que interveio em acidente de viação, deve em princípio ser submetido no mais curto espaço de tempo ao teste de pesquisa de álcool no sangue no ar expirado, através de analisador qualitativo e sendo este positivo deve ser submetido novamente a teste a realizar em analisador quantitativo.

IV – A medição da TAS através de análise ao sangue, só deve ser feita quando o condutor requerer a contraprova, ou quando for impossível a realização do teste no ar expirado segundo o procedimento regulamentar do art. 4.º do Regulamento de Fiscalização, aprovado pela Lei 18/2007, de 17/5 ou quando as condições físicas do fiscalizado não o permitam.

V – O arguido que conduza simultaneamente com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l e sob a influência estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não pode ser pronunciado por dois crimes, mas apenas por um, sendo que para lhe ser imputável pelo n.º 2, do art. 292.º, do CP era necessário ainda que da acusação constasse que aquele não estava em condições de conduzir o veículo com segurança, por se encontrar perturbado na aptidão física, mental ou psicológica.

VI – Não tendo sido realização o teste no ar expirado, a colheita de sangue deve ocorrer no mais curto prazo possível, após a ocorrência do acidente e ao condutor deve ser assegurado o transporte ao estabelecimento da rede pública de saúde mais próximo e a entidade fiscalizadora deve proceder ao controle de que aquele não ingeriu bebidas alcoólicas entre a ocorrência do acidente e a colheita da amostra de sangue.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

No processo supra identificado o Ministério Público deduziu acusação contra A... , solteiro, pintor decorador, nascido em 30/07/1964, natural de Londres, Reino Unido, filho de (...) e de (...) , portador da Autorização de residência n° (...) , emitida em 02/04/2007 e residente em (...) PENELA, imputando-lhe a prática de dois crimes de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 2 do Código Penal, e dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, p. e p. pelo art. 292.° n.º 1 e n.º 2 do Código Penal.

*

O arguido requereu a abertura de instrução, com o fundamento de que inexiste qualquer probabilidade do arguido poder vir ser condenado por qualquer um dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes.

Declarada aberta a instrução e efectuado o debate instrutório foi proferido despacho de não pronúncia quanto aos dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, p. e p. pelo art. 292.° n.º 1 e n.º 2 do Código Penal.

Despacho recorrido:

«(…)

Vem o arguido acusado por dois crimes de condução em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, previstos e punidos pelo artigo 292.°, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.

Dispõe o artigo 292.º, n.° 1 do Código Penal que, "quem, pelo menos por negligência, conduzir veiculo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com urna taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2g/1, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".

O n.º 2 da mesma norma legal estipula que "na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veiculo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.

Quanto ao n.° 1 da norma, para preenchimento do tipo legal basta aqui, pelo lado objectivo, a condução na via pública ou equiparada com uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 gr./l. Trata-se de um crime de perigo abstracto - cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português anotado, l0-ª ed., pág. 812.

Está em causa a segurança da circulação rodoviária, se bem que indirectamente se protejam outros bens jurídicos que se prendem, com a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida ou a integridade física.

Por via pública entende-se, nos termos conjugados dos artigos 1.º e 2.º do CE, toda a via do domínio público do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais. Encontram-se assim abrangidas pela noção, estradas, auto-estradas e vias de acesso ás mesmas, praças, cruzamentos e entroncamentos, parques e zonas de estacionamento, passagens de nível, vias reservadas, corredores de circulação e pistas especiais. O conceito estende-se ainda, por força do n.º 2 do artigo 2.° do mesmo diploma legal, a vias do domínio privado, quando abertas ao trânsito público.

Uma vez que o bem jurídico protegido é a segurança do tráfego, a condução de veículo só se torna relevante face a esse mesmo bem jurídico ao ter lugar numa via pública destinada á circulação de veículos com ou sem motor.

Quanto ao elemento subjectivo, o preenchimento do tipo legal tanto poderá ter lugar a título doloso como negligente - cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, II, pág. 1093 e seguintes.

Relativamente ao n.º 2 da norma, cumpre frisar que "não se tendo apurado que a presença do produto psicotrópico no corpo do condutor era perturbadora da sua aptidão física, mental ou psicológica para a condução, fica apenas demonstrado que aquele se encontrava sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não preenche o tipo de crime de condução de veículo sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, antes se verificam os elementos de contra-ordenação ao Código da Estrada, para tal, basta conduzir sob a influência de produtos psicotrópicos na medida em que o Código da Estrada estabelece directamente aquela proibição" - Ac. da RC de 6.4.2011,  in jusnet.pt.

*

Cumpre agora apreciar as várias questões suscitadas no RAI.

No que respeita á invocada nulidade do artigo 120.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, por falta da notificação da acusação ao arguido devidamente traduzida, diga-se que, a ter existido tal nulidade, a mesma encontra-se sanada.

De facto, nos termos da referida norma legal "constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais, a falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória".

Acontece que já depois do RAI ter dado entrada nos autos, ainda nos serviços do M. P., foi traduzida a acusação proferida nos autos e notificada ao arguido devidamente traduzida. É o que resulta das 493 a 503.

Assim, corno se disse, mesmo que tivesse sido cometida a invocada nulidade, encontra -se neste momento sanada, pelo que nada mais há a ordenar nesse particular.

*

Relativamente ao crime do artigo 292.°, n.° 2 do Código Penal - condução de veículo sob a influência de estupefacientes - cumpre desde já atentar no relatório do INML junto aos autos.

Como se lê a fls. 512v "nesta amostra foi apenas detectado o THC-COOH. Trata-se de um metabolito que é inactivo, não exercendo os efeitos psicoactivos dos canabinóides, não influenciando, assim, o indivíduo na sua condução. A presença desta substância no organismo é unicamente indicativa do consumo de canabinóides, não se podendo estabelecer uma relação directa entre a sua presença no sangue e eventuais alterações na aptidão física, mental ou psicológica do indivíduo".

Assim, não se pode concluir que o arguido não estava em condições de conduzir em segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.

Vejamos mais alguma jurisprudência para além do Ac. da RC de 6.4.2011, supra mencionado.

Segundo o Ac. da RP de 7.9.2011, in jusnet.pt "A presença de uma substância psicotrópica no corpo do condutor, para que preencha o crime de condução sob efeito de substâncias psicotrópicas, a mesma tem de ser perturbadora da aptidão física, mental ou psicológica para a condução".

No mesmo sentido o Ac. da RE de 5.6.2012, in jusnet.pt, nos termos do qual "para integração do tipo legal, não basta a condução sob o efeito de estupefacientes, é necessário a alegação e prova de que a presença dos produtos estupefacientes no corpo do condutor perturbou a sua aptidão física, mental ou psicológica e que essa perturbação o influenciou de modo a concluir que o mesmo não é capaz de efectuar uma condução em segurança".

Ora, pelo que fica dito, fácil é concluir que não estão verificados os elementos típicos deste crime de que o arguido vem acusado. Quanto a este não existe uma probabilidade de futura condenação do arguido e, por isso, deve ser proferido despacho de não pronúncia.

*

No que respeita ao crime previsto e punido pelo artigo 292.°, n.º 1 do Código Penal, começa-se por referir o teor do relatório do INML de fls. 512 e seguintes. Aí se diz, neste particular, que "na amostra de sangue foi detectado etanol (álcool etílico) numa concentração de 1,20 ± 0,15 g/l. Assim, este valor corresponde á estimativa da incerteza. A representação da incerteza como ± x significa que este valor (X) caracteriza a dispersão dos valores que podem ser atribuídos ao resultado final obtido. No presente caso, considerando o valor expresso no nosso relatório, um resultado expresso como 1,20 ± 0,15 g/l, significa que foi analiticamente determinada uma alcoolémia de 1,20 g/1 e que, tendo em consideração a incerteza estimada para o método em vigor, a mesma poderá variar entre 1,05 e 1,35 g/l".

Ora, pelo que fica dito, não se pode concluir que o arguido aquando da prática dos factos apresentava uma TAS de 1,20 g/l ou superior. Podia ser que sim como podia ser que não. Apenas se pode concluir que teria uma taxa entre 1,05 e 1,35 g/l. Acresce que o facto do álcool no sangue diminuir com a passagem do tempo, não pode levar á conclusão que aquando da prática dos factos, o arguido tinha uma TAS de 1,20 ou superior. Poderia ter 1,80, 1,90, 1,70 ou qualquer outra que se queira referir, uma vez que a mesma é desconhecida.

Assim sendo, por se desconhecer ao certo a TAS aquando da prática dos factos e existir a possibilidade dela ser inferior a 1,20 g/l, também quanto a este crime não existe uma probabilidade de futura condenação do arguido e, por isso, deve ser proferido despacho de não pronúncia.

De facto, se o arguido fosse a julgamento pelos dois crimes supra mencionados, muito provavelmente seria absolvido.

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Nestes termos e sem necessidade de tecer mais considerações, decide-se proferir despacho de não pronúncia do arguido A... quanto aos dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, previstos e punidos pelo artigo 292.°, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, de que vinha acusado.

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 Consequentemente, pronuncia-se:

- A..., solteiro, pintor decorador, nascido a 30.7.1964, natural de Londres, Reino Unido, filho de (...) e de (...) , portador da autorização de residência n.º (...) , emitida em 2.4.2007 e residente em (...) , Penela, pelos factos constantes da acusação, de fls. 370 e seguintes (á excepção dos dois últimos parágrafos de fls. 371 e 5.° parágrafo de fls. 372) que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, nos termos do artigo 307.°, n.° 1 do Código de Processo Penal e por dois crimes de homicídio negligente, previstos e punidos pelo artigo 137.°, n.º 2 do Código Penal»

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Deste despacho interpôs recurso o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

«1.ª A decisão de não pronúncia quanto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. no art. 292.°, n.º 1 do Código Penal de que o arguido estava acusado, fundamentou-se apenas no resultado do exame químico e toxicológico realizado no Instituto de Medicina Legal de Coimbra;

2.ª Além desse relatório, existem outros elementos relevantes aos quais não foi atribuído qualquer valor probatório;

3.ª Assim, não foi tido em consideração o resultado do teste qualitativo de alcoolemia que foi efectuado, o tempo que mediou entre o momento do acidente e a colheita da amostra de sangue para determinar a TAS de álcool, bem como a prova testemunhal produzida nos autos;

4.ª Estes elementos devidamente apreciados e valorados, segundo as regras da experiência comum, permitem concluir que o arguido no momento do acidente conduzia com uma TAS de álcool de pelo menos 1,20g/l;

5.ª Contrariamente ao decidido na decisão instrutória, os autos contêm indícios suficientes para pronunciar o arguido pela prática deste crime;

6.ª Ao não pronunciar a decisão recorrida violou o disposto nos art. 127.°, 163.°, 283.° n.° 2 e 308.°, n.º 1 e 2 do CPP e 292.°, n.º 1 do CP;

7.ª Mesmo admitindo que do teor do relatório de exame apenas se pode concluir que no momento do acidente teria uma TAS entre 1,05 e 1,35g/l, sempre haveria o arguido de ser pronunciado pela prática da contra-ordenação muito grave, p. e p. pelos art. 81.º, n.º 1 e 2, 136.°, 145.°, 146.°, al. j) e 147.° do Código da Estrada;

8.ª No que concerne à não pronúncia pelo crime de condução sob a influência de estupefacientes, aceita-se que existem dúvidas quanto à verificação de todos os seus elementos constitutivos e que tais dúvidas devem ser valoradas a favor do arguido;

9. Mesmo assim, restaria a contra-ordenação pela qual deveria ser pronunciado, p. e p. pelos art. 81.°, n.º 1,4,5,6 al. b), 146.°, al. m) e 147.º, n.º 1 e 2 do Código da Estrada.

10. Deverá, por conseguinte, revogar-se a decisão na parte recorrida, substituindo-se por outra que pronuncie o arguido pela prática do crime, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1do CP de que estava acusado e indicada contra-ordenação».

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Notificado o arguido, nos termos do art. 411.º, n.º 6, para efeitos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, apresentou reposta, que seguindo de perto os trilhos do juiz de instrução, conclui que o recurso deve improceder e consequentemente manter-se o despacho recorrido.

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Nesta instância de recurso, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual acompanhando a posição do Ministério Público na 1.ª instância, emitiu douto parecer no sentido de que deve ser concedido provimento ao recurso interposto.

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Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não houve resposta.

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Colhidos os vistos legais, cumpre-nos decidir.

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II- O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:

Apreciar se há fundamento para pronunciar o arguido por dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, p. e p. pelo art. 292.° n.º 1 e n.º 2 do Código Penal.

Apreciando:

Antes de mais, para melhor apreciar as questões suscitadas no recurso, importa apreciar os termos da acusação, na parte em que se relaciona com a imputação ao arguido de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, respectivamente p. e p. pelos n.º 1 e n.º 2, do art. 292.°, do Código Penal.

Constam da acusação os seguintes factos com relevância para a decisão:

«…no dia 27 de Junho de 2014, cerca das 18.39 horas, o arguido conduzia o veículo, quadriciclo de passageiros, com a matrícula (...) JO, de que é proprietário, na Estrada Municipal n.º 1195, em Casal Novo - Cumeeira, do concelho de Penela, área desta Instância Local de Condeixa-a-Nova.

O arguido, durante a tarde desse dia esteve no estabelecimento de mercearia e bebidas, pertença de B... , sita naquele lugar de Casal Novo, onde ingeriu bebidas alcoólicas, após o que saiu e dirigiu-se ao veículo, tendo desafiado o menor C... a acompanhá-lo, o que este acabou por fazer, sentando-se no banco atrás daquele onde se encontrava o arguido.

(…)

Em virtude do acidente, o arguido foi transportado aos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde lhe foi feita a colheita de sangue, para pesquisa de álcool, cerca das 22.40 horas.

Realizado o exame pelo Instituto de Medicina Legal de Coimbra, verificou-se que o arguido apresentava uma TAS de 1,20+/-0, l5g!1 de álcool no sangue e, bem assim a presença de THC-COOH, correspondente a metabolito inactivo dos Carabinoides.

O arguido sabia que não podia conduzir o quadriciclo na via pública, após a ingestão de bebidas alcoólicas e depois de consumir produtos estupefacientes.

(…)

As circunstâncias referidas foram potenciadas pelo facto de o arguido se encontrar a conduzir, em estado e embriaguez e sob influência de substância estupefaciente, condicionantes da capacidade para o exercício da condução».

Salvo o devido respeito não há elementos nos autos que nos permitam concluir pela imputação dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, respectivamente p. e p. pelos n.º 1 e n.º 2, do art. 292.°, do Código Penal.

Se não vejamos.

Os factos integradores dos crimes em causa ocorreram no dia 27/06/ 2014, cerca das 18.39 horas.

Depois, como também consta da mesma acusação, em virtude do acidente, o arguido foi transportado aos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde lhe foi feita a colheita de sangue, para pesquisa de álcool, cerca das 22.40 horas.

 A participação de fls. 15 a 16 do acidente de viação, no qual perderam a vida os dois menores D... e Ee o menor C... sofreu graves lesões, que o arguido transportava no quadriciclo é omissa quanto à realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, constando da parte final da mesma que o condutor do veículo não prestou declarações em virtude de ter abandonado o local, sem prestar auxílio às vítimas.

A participação foi elaborada apenas no dia seguinte, ou seja dia 28/06/2014, pelas 18.35horas e relativamente à recolha de elementos quanto aos crimes dos n.º 1 e n.º 2, do art. 292.°, do Código Penal, apenas se fez constar a fls. 15v.:

«Teste de Álcool submetido TAS COLHEITA DE SANGUE.

Teste de Substâncias Psicotrópicas Submetido».

Depois foi feito o aditamento à participação do acidente de viação no dia 2/09/2014, de fls. 74, da qual consta, fazendo agora consta da mesma o mesmo participante cabo da GNR F... sobre as diligências feitas quanto à pesquisa de álcool o sangue:

 «Teste de Álcool Submetido TAS 1,20 - Não requereu contraprova.

Teste de Substâncias Psicotrópicas Submetido – Resultado Positivo».

Podemos concluir que não foi feito qualquer teste de pesquisa de álcool no sangue, através de teste ao ar expirado, efectuado com analisador qualitativo, limitando-se a GNR de Penela referir o resultado obtido no INML da colheita de sangue feita nos HUC, enfermando a participação de falsa o incorrecta informação.

Aliás, é o que consta do próprio aditamento à participação onde se informa:

«…o condutor do respectivo veículo de matrícula (...) JO…foi constituído arguido e conduzido por conseguinte  aos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde recebeu tratamento médico, e recolhida uma amostra de sangue através do KIT GNR 038173, para quantificação de álcool no sangue e produtos estupefacientes.

Em 25 de Agosto de 2014 foi recebido no Posto da Guarda Nacional Republicana de Penela um relatório de exame químico e toxicológico com o n.º 14.001353.1 proveniente do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P, Delegação do Centro…

Saliento que em referência ao respectivo relatório o mesmo referente às análises efectuadas apresenta um resultado positivo em relação à Quantificação de Canabinóides no sangue por GC/MS Sangue num procedimento de ensaio PE-STF-C209_Rev.02 e também resultado de 1,20+/-0.15 g/l em relação à Quantificação de etanol no sangue por GC/FID sangues num procedimento de ensaio PE-STF-C-401 Ver.02, mencionando também no campo das observações o seguinte texto: A substância detetada, THC-COOH, corresponde a um metabolito inactivo dos Canabinóides podendo persistir no organismo durante vários dias»

O art. 153.º, do CE, quanto à fiscalização da condução sob influência de álcool, dispõe no n.º 1 que o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.

A Lei 18/2007, de 17/5 aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, anexo à mesma lei e da qual faz parte integrante.

O referido Regulamento prevê no seu art. 1.º, n.º 1, quanto à detecção de presença de álcool no sangue é indiciada através de teste ao ar expirado, efectuado com analisador qualitativo. Por sua vez o n.º 2, estipula que a quantificação da taxa de álcool no sangue é feita através de teste ao ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise ao sangue, sendo esta só terá lugar nos casos de impossibilidade de realização do teste em analisador quantitativo, por força do n.º 3.

Assim, de acordo com o disposto no art. 2.º, do Regulamento, quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo.

Em conclusão a medição da taxa de álcool no sangue (TAS) é feita através de um aparelho específico, de um analisador quantitativo ou por análise ao sangue, sendo que esta só terá lugar nos casos de impossibilidade de realização do teste em analisador quantitativo, por força do n.º 3, tendo sido esta situação que aconteceu.

É estranho que na participação logo no dia seguinte ao acidente não referira que o arguido foi submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue através de analisador qualitativo e depois analisador quantitativo, mas apenas que foi feita “colheita de sangue” e depois se referira no aditamento da participação que “não requereu contraprova”.

Também é estranho que a participação, apesar de elaborada só no dia seguinte, nada diga quanto às circunstâncias em que ocorreu o acidente e consequências do mesmo, limitando-se a dizer que o arguido abandonou o local e só depois no aditamento se refira que foi conduzido ao hospital para tratamento médico, onde lhe foi recolhida amostra de sangue.

Resulta dos autos que o acidente ocorreu pelas 18.35 horas e a colheita de sangue para pesquisa de álcool depois de transportado aos Hospitais da Universidade de Coimbra, foi feita cerca das 22.40 horas, cerca de 4 horas depois.

As deficiências da participação e a falta de rigor na recolha de elementos probatórios logo no dia do acidente são evidentes, pois o participante nada refere quanto às circunstâncias em que ocorreu, a que hora foi localizado o arguido e se se assegurou que depois do acidente não ingeriu bebidas alcoólicas ou se consumiu substâncias psicotrópicas até ser recolhida a amostra de sangue.

Um estado de direito deve ser rigoroso em assegurar os direitos de defesa do arguido.

O participante também podia e devia ter referido se o arguido estava ou não em condições de realizar o teste qualitativo e depois quantitativo de pesquisa de álcool no sangue e a que hora foi localizado ao arguido.

Por outro lado a Lei 18/2007, de 17/5 que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, no seu art. 4.º, dispõe que na impossibilidade de realização do teste no ar expirado, quando após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste, é realizada análise de sangue, devendo o agente da entidade fiscalizadora assegurar o transporte do indivíduo ao estabelecimento da rede pública de saúde mais próximo para que lhe seja colhida uma amostra de sangue.

Acrescenta depois o art. 5.º, do mesmo diploma legal que a colheita de sangue é efectuada, no mais curto prazo possível, após o acto de fiscalização ou a ocorrência do acidente.

Registe-se que no caso dos autos foi cerca de 4 horas depois!

Como se não bastasse o tempo decorrido, a entidade fiscalizadora omitiu de forma grosseira elementos que nos permitissem concluir que foi impossível realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue pelas formas legais atrás apontadas e as razões por que foi recolhida a amostra de sangue ao arguido apenas 4 horas depois.

São circunstâncias que não podem ser ignoradas que suscitam a dúvidas quanto à taxa de álcool no sangue à data em que o arguido conduzia o veículo e ocorreu o acidente de viação.

Por outro lado, é manifesto que mesmo face ao resultados apresentados nunca o arguido deveria ter sido acusado por um crime de condução em estado de embriaguez, pois a peça acusatória diz expressamente:

“Realizado o exame pelo Instituto de Medicina Legal de Coimbra, verificou-se que o arguido apresentava uma TAS de 1,20+/-0,l5g/1 de álcool no sangue e, bem assim a presença de THC-COOH, correspondente a metabolito inactivo dos Carabinoides.

A Lei 72/2013, de 3 de Setembro, que alterou o Código da Estrada, pôs cobro à querela jurisprudencial e, na alínea b) do n.º 1 do art.º 170.º do C. Estrada, prescreve que do auto de notícia passe a constar “o valor registado” e “o valor apurado” “após dedução do erro máximo admissível previsto no regulamento de controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição”.

Não nos parece ser correcto referir-se na acusação que o arguido conduzia com uma “TAS de 1,20+/-0, l5g/1 de álcool no sangue”.

A expressão mais não quer dizer que o arguido conduzia com uma TAS variável entre 1,05 g/l e 1,35 g/l.

A acusação deve indicar concretamente a TAS depois de deduzir o erro máximo admissível (EMA) e não indicar a variação para mais e para menos, por assim o impor o princípio in dúbio pro reo.

Logo, nunca poderia ser imputada ao arguido uma TAS superior a 1,05 g/l.

Também aqui não andou bem a acusação, ara além de se colocar a questão da não admissibilidade da dedução do erro máximo admissível, quando a TAS é obtida por processo científico, através de análise feita à amostra de sangue recolhida e levada  a cabo pelos técnicos do INML, aplicando aquele desconto apenas quando o resultado é obtido através de instrumentos de medição.

É a falta de fiabilidade dos instrumentos de medição, cuja utilização depende de muitos factores, que justifica a aplicação do EMA e da contraprova, contrariamente à prova por pericial ou científica, que se rege em termo probatórios pelo art. 163.º, do CPP.

É que parece resultar da redacção do art. 170.º, n.º 1, al. b), do CE, relativamente aos elementos que devem constar do auto de notícia relativamente á fiscalização no exercício de condução sob a influência do álcool, quando prescreve:

«O valor registado e o valor apurado após dedução do erro máximo admissível previsto no regulamento de controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição, quando exista, prevalecendo o valor apurado, quando a infração for aferida por aparelhos ou instrumentos devidamente aprovados nos termos legais e regulamentares.

Tal nunca consubstanciaria a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.° n.º 1 do Código Penal, mas a prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos art. 145.º, n.º 1, al. l) e 146.º, al. j), do CE.

Porém, como acabámos de dizer, as vicissitudes da participação nunca nos poderá levar a qualquer imputação de comportamento ilícito, mesmo de natureza contra-ordenacional, pois ficou por explicar, a razão por que não foi observado o procedimento normal relativamente à fiscalização da condução sob influência de álcool, segundo as prescrições constantes do art. 153.º, n.º 1, do CE, através do ar expirado e realizado mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito e de acordo com o estipulado nos art. 1.º, n.ºs 1 a 3, 2.º, 4.º e 5.º, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, anexo à Lei 18/2007, de 17/5 que o aprovou e da qual faz parte integrante.

Ora, não tendo sido feito qualquer exame ao arguido, sem justificação, antes de colheita de sangue que só ocorreu cerca de 4 horas depois do acidente e dado que não feito qualquer controlo do mesmo condutor no intervalo que mediou entre o acidente e a colheita de sangue, no sentido de saber se nesse período não ingeriu bebidas alcoólicas ou consumiu substância psicotrópicas.

Por outro lado, tratando-se de condutor com lesões leves, como se escreve no aditamento à participação a fls. 74, podia e devia ter sido levada ao estabelecimento mais próximo e não para os HUC, para tal fim.

O arguido que conduza simultaneamente com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l e sob a influência estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não pode ser pronunciado por dois crimes, mas apenas por um, sendo que para lhe ser imputável pelo n.º 2, do art. 292.º, do CP era necessário ainda que da acusação constasse que aquele não estava em condições de conduzir o veículo com segurança, por se encontrar perturbado na aptidão física, mental ou psicológica.

Não é manifestamente o caso da acusação.

Nesta conformidade, por obediência ao princípio in dúbio pro reo, não pode o arguido ser pronunciado pelos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, p. e p. pelo art. 292.° n.º 1 e n.º 2 do CP e consequentemente, pelas mesma razões, pelas respectivas contra-ordenações, p. e p. pelos art. 81.º, n.º 1, 5 e 6, al. b), 146.º, al m) e 147.º, n.º 1 e 2, do CE e p. e p. pelos art. 81.º, n.º 1 e 2, 136.°, 145.°, 146.°, al. j) e 147.°, também do CE.

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III- Decisão:

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente se mantém o despacho recorrido que não pronunciou o arguido pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, respectivamente p. e p. pelos n.º 1 e n.º 2, do art. 292.° do Código Penal.

Sem custas.
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NB: Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 

Coimbra, 13 de Julho de 2016

(Inácio Monteiro - Relator)

(Alice Santos - Adjunta)