Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOÃO NOVAIS | ||
Descritores: | INJÚRIA TIPO OBJECTIVO | ||
Data do Acordão: | 05/18/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO - J2) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 181.º DO CP | ||
Sumário: | A expressão “Você é um mau pai”, dirigida pelo arguido a outrem, poderá ser materialmente injusta, reveladora de uma personalidade desrespeitosa, mal-educada, pouco cortês, mas não ultrapassa o patamar de simples palavras azedas, acintosas, trocadas entre dois interessados na boa educação de uma criança, não chegando ao conteúdo ofensivo da honra e consideração do visado de forma a justificar uma reacção penal. | ||
Decisão Texto Integral: | Acórdão da 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
*** II - Fundamentação de FactoA – (Teor da acusação particular deduzida pelo assistente ) Indiciam suficientemente os autos que no passado dia ..., cerca das 17.15h, na Rua ..., ..., ..., quando o ofendido se encontrava na soleira da sua porta a aguardar a entrega do seu filho menor CC pela mão da sua mãe DD, esta surgiu acompanhada pelo filho de ambos e pelo arguido. Mal o veiculo que transportava aqueles parou alguns metros depois da casa de ofendido, o arguido saiu do mesmo acompanhado do menor e logo em voz alta dirigiu-se ao denunciante dizendo: "Você é um mau pai, não deu educação ao seu filho, não sabe dar educação ao seu filho mas eu dou”. "Toda a gente há-de saber o que o senhor e, vou espalhar panfletos aqui e em ..., que o senhor é mau pai, vai ver." Estas expressões foram proferidas de viva voz, em alto e bom som para quem o quisesse e pudesse ouvir, em plena via pública, nomeadamente para as pessoas que naquele momento se encontravam naquele local. Tais expressões, gravemente lesivas da honra, consideração e respeito da pessoa do ofendido, além de objectivamente ofensivas, pretendiam atingir voluntariamente a pessoa deste. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e mesmo assim não se absteve de a praticar. Pelo exposto cometeu um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, do Cód. Penal.
* III – Fundamentação de Direito a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995). b) A duas principais questões a apreciar nesta instância de recurso, prendem-se em saber (i) se sentença padece de vício de nulidade insanável por não ter sido rejeitada a acusação particular, e (ii) se as expressões proferidas são susceptiveis de se subsumir na prática de crime de injúrias, defendendo o recorrente que as mesmas não assumem relevância penal. c) Relativamente à primeira questão, defende então o recorrente que a acusação particular deveria ter sido rejeitada, por esta peça processual não integrar todos os elementos subjectivos. Neste campo, Ex Procurador do Ministério Público junto a este Tribunal da Relação, citando o Ac TRE de 10-12-2009 (processo n.º 17/07.4GBORQ.E1) defende que não se encontrando prevista no art. 119º do CPP, a nulidade de acusação é sanável, pelo que se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 311º nº1 ou no art. 338º nº1, ambos do C.P.P., sendo que no caso o arguido deduziu a alegada nulidade da acusação apenas na audiência de discussão e julgamento logo depois de esgotado o prazo de dez dias, contados sobre a data da notificação da acusação, que o art.º 105º.1 do CPP lhe concedia para o efeito, estando assim vedado suscitar tal vício. Diga.se que esta questão divide a jurisprudência, já que por exemplo o Ac. do TRC de 22-5-2013 (proc n.º 368/07.8TALRA.C1), defende que, face ao aditamento do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais. Não cuidaremos neste aresto de apreciar esta questão, uma vez que ainda que se considerasse que a nulidade da acusação não poderia ser invocada, por se mostrar sanada – como defende o Ministério Público junto a este Tribunal da Relação e alguma jurisprudência – atendendo à natureza do vício imputado à sentença – a falta factos que permitam integrar os elementos subjectivos do tipo – sempre seria em sede de sentença julgada improcedente a acusação, com a consequente absolvição do arguido. d) Vejamos então se os factos constantes da sentença contêm os elementos subjectivos do tipo que o recorrente aponta como omissos. Recorde-se que na sua conclusão C) o recorrente considera que a acusação particular (e consequentemente a sentença) nada refere “quanto ao dolo, tipo de dolo, quantificação ou qualificação dos elementos volitivos do tipo de culpa”. Lida a acusação particular, lê-se que (…) 4 - Tais expressões (…) pretendiam atingir voluntariamente a pessoa deste (…), e em 5 que “O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e mesmo assim não se absteve de a praticar” (factos esses considerados provados na decisão recorrida, sob os mesmos n.ºs 4 e 5.).
e) Resta apreciar a segunda questão, cabendo então avaliar se se as expressões proferidas são susceptíveis de se subsumir na prática de crime de injúrias, defendendo o recorrente que as mesmas não assumem relevância penal. Como referem Leal-Henriques e Simas Santos (Cód. Penal anotado, anotação ao artigo 181º), “A injúria não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação. A injúria é mais do que isso, e quando se pune um acto injurioso não se visa a protecção da susceptibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da sua dignidade, da sua honra e consideração”. No acórdão da Relação de Guimarães de 22-01-2018, proferido no processo n.º 154/15.1GAPCR.G1 (www.dgsi.pt) pode ler-se que «O tipo legal previsto no art. 181º do C. Penal (crime de injúria), assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº 1 da CRP), sendo indispensável à formulação do juízo sobre a tipicidade a contextualização das expressões proferidas, de modo apreciar se, nas circunstâncias em que o foram, atingiram a pessoa visada, quer no valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer na própria reputação ou consideração exterior, no patamar mínimo exigível de carga ofensiva abaixo do qual não se justifica a tutela penal, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, imanentes ao estado de direito». E no Ac. do TRL, de 12/09/2019, (processo n.º 288/18.0T9LRS.L1-9) “No crime de injúrias, o direito penal não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidade do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidade morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros, sendo ainda de frisar que na avaliação do preenchimento do tipo de crime de injúria não basta a consideração das palavras e expressões proferidas: é preciso situá-las no enquadramento preciso em que foram ditas. f) No caso, a única expressão considerada injuriosa pela decisão recorrida, é o arguido dirigir-se ao assistente dizendo “Você é um mau pai”, a qual a decisão recorrida, de forma algo lacónica e conclusiva considerou como “gravemente lesivas da honra, consideração e respeito da pessoa do ofendido, além de objectivamente ofensivas (…). g) Como acima se escreveu, é necessário considerar o contexto em que foi proferida essa expressão: O arguido é companheiro da mãe do menor, cujo pai biológico é o assistente, tendo a referida expressão sido foi proferida no momento da entrega do menor por parte da mãe e do arguido, ao pai biológico e aqui assistente. Como resulta da decisão recorrida na altura existia entre o arguido e a mãe do menor, por um lado, e o assistente por outro, uma grande disputa pelo filho daquela e deste, agravado por uma tensão pré-existente entre arguido e assistente, como sucede muitas vezes em que os pais de uma determinada criança se se separam e constituem novos núcleos familiares. Note-se para ilustrar este contexto, que também o aqui arguido deduziu acusação particular contra o aqui assistente, imputando-lhe a prática de um crime de injúrias, a qual não foi apreciada em julgamento uma vez essa acusação foi indeferida, por da mesma não constarem todos os elementos típicos do crime de injúria. Por outro lado, a expressão “Você é um mau pai” é conclusiva, no sentido que não é apoiada em nenhum facto concreto imputado ao assistente; por exemplo não se disse que era mau pai porque batia a criança, ou abusava dela, circunstâncias em que essas expressões poderiam ser consideradas como claramente ofensivas; é um mero juízo de valor, desgarrado de qualquer factualidade concreta. Acresce ainda, que tudo sugere que a afirmação de que o assistente era um mau pai, parece surgir numa tentativa de defesa da criança e dos seus interesses, com a qual o arguido terá criado laços emocionais. Considere-se ainda, que o conceito de bom ou mau pai, assume diversas dimensões de pessoa para pessoa, não sendo sequer unívoco para as ciências da educação; assim, por exemplo, para alguns, um bom pai pode ser aquele que pauta a educação do filho com maior severidade ou rigor, enquanto para outros o bom pai será aquele que prefere uma educação mais liberal, concedendo maior autonomia ao menor. O mesmo é dizer que fossem quais fossem os motivos que conduziram ao arguido a apelidar o assistente como “mau pai” (como se disse, tal não resulta dos factos), outra pessoa poderia avaliar, com base nesses mesmas circunstâncias, o assistente como “bom pai”, ao contrário por exemplo do que aconteceria se tivesse chamado “chulo”, uma vez que objectivamente, com ela se imputa um comportamento e um modo de vida que constitui crime.
h) Tudo ponderado, não nos parece que a expressão “Você é mau pai”, logre atingir um patamar mínimo de dignidade ético-penal que justifique o desencadear de uma reacção do Estado mediante a aplicação de uma pena. A referida expressão proferida é seguramente desagradável e até incomodativa, mas foi proferida enquanto juízo de valor, conclusivamente, de forma isolada (isto é, sem qualquer explicação para a conclusão que contém), no assinalado contexto de família alargada (na perspectiva do menor), em que frequentemente, e até quase naturalmente, surgem tensões e discordâncias sobre a melhor forma de educar uma criança; aquela expressão pode ser enquadrável numa acesa e desagradável discussão sobe a melhor forma de educar uma criança, disputa mantida entre o pai biológico e o companheiro da mãe, com a qual o arguido partilhará, ao menos parcialmente a responsabilidade pela educação da criança. A referida expressão revela desarmonia, diferendo, falta de civilidade, e no limite até alguma agressividade, mas não atinge o patamar da imputação gratuita de um comportamento parental desonroso para com o assistente. Recorde-se que o artigo 181º do Cód. Penal tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre; ainda que o assistente tenha ficado compreensivelmente incomodado e magoado relativamente à forma como o arguido se lhe dirigiu, não podemos concluir - especialmente face ao assinalado contexto “familiar” - que a honra da assistente foi atingida com a produção das mesmas expressões.
i) A nossa jurisprudência tem de forma consistente defendido o princípio da intervenção mínima do direito penal de forma a afastar a punibilidade de expressões que, numa primeira leitura, qualquer pessoa apelidaria de insultuosas: As expressões “mal formado civicamente” (Ac. do TRC, de 16/5/2012, proc. n.º 1985/10.4TACBR.C1), “vocês são uns palhaços, não sei como o povo vos escolheu” (Ac. do TRG, de 17/2/2014, proc. n.º 1500/10.0GBGMR.G1), «invejosa» e «comilona» (Ac. da RG, de 23/2/2015, proc. n.º 218/12.3TAPRG.G1), “sacana” (Ac. da RC, de 23/5/2012, proc. n.º 241/10.2GAANS.C1), ou "bêbedo" Ac. do TRP, de 20/4/2016, proc. n.º 1171/13.1GAMAI.P1), face ao contexto em que foram proferidas, não foram consideradas como assumindo um carácter suficientemente ofensivo da honra e consideração que permita a sua censura penal. Algumas das expressões assinaladas, apreciadas por aqueles arestos, poderão dividir opiniões, mas serve a presente resenha para ilustrar que as palavras em causa nos presentes autos está ainda longe de penetrar naquele círculo de inviolabilidade dos direitos de personalidade e que poderia desencadear uma reacção penal.; A expressão “Você é um mau pai” poderá até ser materialmente injusta, e seguramente revela o arguido como tendo uma personalidade desrespeitosa, mal-educada, pouco cortês, mas não ultrapassa o patamar de simples expressões azedas, acintosas, trocadas entre dois interessados na boa educação de uma criança, não chegando ao conteúdo ofensivo da honra e consideração do assistente que justificaria a reacção penal; a referida expressão ainda se mantém dentro de um padrão de normalidade familiar/social. j) O recurso deve assim proceder. A assinalada atipicidade penal arrasta consigo a condenação no pedido de indemnização civil em que o arguido também tinha sido condenado.
* IV- Dispositivo Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente o recurso interposto por AA, e consequentemente absolvê-lo da prática de um crime de injúria, previsto e punido pelos artigos 181º nº 1 do Código Penal, absolvendo-o ainda da condenação no pagamento ao demandante civil da quantia de € 250,00.
Sem custas.
Coimbra, 18 de Maio de 2022
João Novais (Relator)
José Eduardo Martins (Adjunto)
Alberto Mira (Presidente da Secção)
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