Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
529/08.2TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PRINCIPIO DA CULPA
Data do Acordão: 03/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE TOMAR – 2.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 8.º, N.º1, DO DECRETO-LEI N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO
Sumário: I. - Um dos princípios basilares do direito contra-ordenacional é o princípio da culpa.
II. - Para que exista culpabilidade do agente no cometimento do facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou negligência, consistindo o dolo «no propósito de praticar o facto descrito na lei contra-ordenacional» e a negligência na «falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei».
Decisão Texto Integral: I – Relatório
1. Por decisão da Câmara Municipal de T... foi aplicada ao arguido …, melhor identificado nos autos, a coima de € 3.500, no âmbito do processo de contra-ordenação nº 129/2003, por violação do disposto nos artigos 4.º, n.º 1 e n.º2, al. c) e 98.º, n.º1, al. a), do DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro.
Inconformado, o arguido interpôs impugnação judicial da decisão administrativa de aplicação de coima, que veio a ser julgada improcedente.
2. O arguido, de novo inconformado, interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1- A mera substituição de um telhado e da esteira, parcialmente destruídos por um incêndio, com a substituição das madeiras de suporte por vigas de pré-esforçado e lage em cimento, não se enquadra na definição de obras de alteração vertida na alínea e) do artigo 2.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, constante do DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro, antes devendo subsumir-se ao conceito de obras de conservação, expresso na alínea f) do mencionado artigo, disposições que, por isso, foram erradamente interpretadas e aplicadas na douta sentença recorrida.
2- Contribui para este entendimento o facto de o projecto apresentado à Câmara Municipal de T..., entidade arguente, ter sido indeferido expressamente por falta das infra-estruturas básicas e pela ausência de condições para que aquelas possam ser asseguradas, que não pelos factos que motivaram a aplicação da coima.
3- A não se entender deste modo, sempre a coima aplicada o foi em montante exagerado atendendo ao hipotético grau de ilicitude, à prática dos factos com mera culpa e às demais circunstância do caso.
4- O reduzido grau de ilicitude resulta do facto de apenas se ter substituído o telhado e a esteira usando materiais diferentes da madeira, mas mantendo integralmente a traça.
5- Nada nos autos permite a conclusão vertida na douta sentença de que o arguido agiu com dolo, sendo bem mais credível a conclusão de que terá agido com mera culpa por se não ter assegurado, por escrito, da necessidade ou desnecessidade da licença.
6- Desconsiderou ainda o Meritíssimo Juiz a quo o facto de o arguido ser primário.
7- Deve pois a douta sentença ser revogada por outra que revogue a coima aplicada ao arguido, ou, assim não se entendendo, ser o montante reduzido para o mínimo legal.
3. O Ministério Público junto da 1.ª instância não respondeu.
4. Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal da Relação, tendo a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
5. Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Decorre do preceituado nos artigos 66.º e 75.º, n.º1, do Regime Geral das Contra-Ordenações (R.G.C.O.), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro), que em matéria de recurso de decisões relativas a processos por contra-ordenações, a 2.ª instância funciona como tribunal de revista e como última instância, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º do C.P.P., por força do disposto nos artigos 41.º, n.º1 e 74.º, n.º4, do R.G.C.O., já que os preceitos reguladores do processo criminal constituem direito subsidiário do processo contra-ordenacional.
A questão que importa apreciar e decidir no presente recurso, tendo em vista o teor das conclusões que delimitam o seu âmbito, consiste em saber:
- se o arguido cometeu a infracção contra-ordenacional pela qual foi condenado;
- se, tendo-a cometido, a coima deverá ser reduzida ao mínimo.
2. Decisão recorrida
2.1. A matéria de facto que foi considerada provada na decisão recorrida é a seguinte:
1. Em 14.07.2003, no local sito em Moinho da Costa, freguesia de Junceira, concelho de T..., verificou-se que o arguido reconstrói a sua habitação, colocando laje de esteira e a cobertura em pré-esforçado;
2. Que, nessas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido não era titular de alvará de licença de construção para executar a obra;
3. Que, em 16.01.2004, o arguido apresentou projecto «de reconstrução da cobertura de uma habitação unifamiliar», sito em Moinho da Costa, descrito na Conservatória do Registo Predial de T... sob o n°00454/101280, e inscrito a favor do arguido desde 11.05.1999;
4. Que o prédio onde a obra se localiza se encontra em zona adjacente à zona de protecção da Barragem do Carril e para, efeitos de Plano Director Municipal, se situa em classe de espaço florestal;
5. Que, por deliberação camarária de 08.11.2004, o executivo camarário deliberou indeferir a pretensão por falta de infra-estruturas básicas e pela ausência de condições para que aquelas possam ser asseguradas;
6. Que o processo de licenciamento foi indeferido em definitivo, decisão comunicada ao arguido em l6.11.2004;
7. A habitação é de idade centenária;
8. Há mais de 10 anos ocorreu um incêndio que destruiu a cobertura (telhado) da habitação, construída em madeira;
9. O arguido declarou auferir a quantia mensal € 1100 a título de retribuição;
10. Vive com a sua mulher, professora, em casa própria, sita em Lisboa, pagando a prestação bancária mensal de € 1.000;
11. É dono de uma habitação sita nas proximidades da Barragem do Carril (onde foram realizados os trabalhos em questão);
12. Possui viatura automóvel própria;
13. Não lhe são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais do mesmo género.
2.2. Foram considerados não provados os seguintes factos:
-a) O arguido apenas realizou obras de conservação da habitação;
b) As referidas obras não implicavam a alteração do edifício.
2.3. O tribunal fundamentou do seguinte modo a sua convicção:
O Tribunal formou a sua convicção, relativamente à factualidade descrita, nos elementos dos autos, designadamente, no auto de notícia de fls. 6, das fotografias de fls. 11, 12, 14, 15, 94 a 97 e 111.
Considerou-se também o documento de fls. 76, que constitui a memória descritiva apresentada pelo arguido (e subscrita pelo técnico responsável) no projecto de licenciamento que apresentou à CMT (e que foi objecto de indeferimento) onde consta expressamente que as obras a executar implicavam alteração a nível de estrutura, para que houvesse condições favoráveis à aplicação da nova cobertura, na medida em que a mesma seria constituída por uma estrutura em betão pré-esforçado.
Consideraram-se os depoimentos das testemunhas … e …, fiscais municipais, que presenciaram os factos, e procederam à elaboração do auto de notícia. A testemunha … esclareceu ainda que embora não tivessem havido quaisquer alterações externas nas paredes da habitação, o facto de a cobertura que existia em madeira ser substituída por uma cobertura em betão pré-esforçado (implicando também a construção de empenas) implicava uma alteração em termos de forças estruturais incidentes sobre a estrutura global (devido às diferenças de peso envolvidas).
Por sua vez o arguido declarou que a habitação tem mais de 200 anos e que efectuou as obras em causa para proteger a habitação (telhado) das consequências dos incêndios.
A situação económica do arguido resultou das suas declarações.
Os factos não provados resultaram da infirmação dos mesmos efectuada pela factualidade assente.
3. Apreciando
1. A decisão recorrida aplicou ao recorrente uma coima de € 3.500, por violação do disposto nos artigos 4.º, n.º 1 e n.º2, alínea c) e 98.º, n.º1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho.
2. Nos termos do referido artigo 4.º, n.º2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 177/2001, estão sujeitas a licença administrativa: «As obras de construção, de ampliação ou de alteração em área não abrangida por operação de loteamento ou plano de pormenor que contenha as menções referidas na alínea a), sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º»
Por sua vez, o artigo 2.º, aliena e), definia o conceito de “obras de alteração” como sendo «as obras de que resulte a modificação das características físicas de uma edificação existente ou sua fracção, designadamente a respectiva estrutura resistente, o número de fogos ou divisões interiores, ou a natureza e cor dos materiais de revestimento exterior, sem aumento da área de pavimento ou de implantação ou da cércea;»
E o artigo 98.º, n.º1, alínea a), punia como contra-ordenação «a) A realização de quaisquer operações urbanísticas sujeitas a prévio licenciamento ou autorização sem o respectivo alvará, excepto nos casos previstos nos artigos 81.º e 113.º».
Entretanto, o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação sofreu alterações, introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, que entrou em vigor no dia 3 de Março de 2008.
Face ao novo quadro legal, mais simplificado em relação ao anterior, as obras de alteração em área não abrangida por operação de loteamento continuam, em princípio, a depender de prévia licença. Estão isentas de licença, além de outras, as obras de conservação e as obras de alteração no interior de edifícios ou suas fracções, à excepção dos imóveis classificados ou em vias de classificação, que não impliquem modificações na estrutura de estabilidade, das cérceas, da forma das fachadas e da forma dos telhados. A realização da obra dependente de licença sem que a mesma haja sido obtida continua a constituir um ilícito contra-ordenacional.
3. No caso concreto, o recorrente pretende que a obra realizada não se integra na definição de “obra de alteração”.
Desde já adiantamos que, funcionando a Relação, em sede de recurso, como tribunal de revista, os factos a considerar são os que foram dados como provados pelo tribunal de 1.ª instância.
Está provado que recorrente procedia à colocação de uma laje de esteira e de uma cobertura em pré-esforçado num prédio edificado numa zona adjacente à zona de protecção da Barragem do Carril, que havia sido atingido por um incêndio dez anos antes daquela intervenção.
Ora, a nosso ver, tendo recorrente substituído uma cobertura (telhado) que existia anteriormente em madeira (e que ardeu) por uma nova cobertura (telhado), mas agora composta vigas ou vigotes em betão pré-esforçado é de concluir que tais obras introduzem alterações nas forças estruturais da habitação, pois a pressão exercida pelos diferentes tipos de matérias exige o acompanhamento e a aprovação técnica adequada, sob pena de poder colocar em causa a própria sustentabilidade da estrutura, o que significa que, de acordo com a definição legal, trata-se de uma obra de alteração e não de obras de conservação.
Assim, as obras executadas careciam da necessária licença, o que não aconteceu.
4. A decisão recorrida merece, porém um reparo.
Determina o artigo 8.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
Quer isto dizer que um dos princípios basilares do direito contra-ordenacional é o princípio da culpa.
E para que exista culpabilidade do agente no cometimento do facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou negligência, consistindo o dolo «no propósito de praticar o facto descrito na lei contra-ordenacional» e a negligência na «falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei» (Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral, 2007, 4.ª edição, p.139).
Ora, o tribunal recorrido, na indicação dos factos provados, nada diz quanto ao elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional: dolo ou negligência.
E, sem que nada conste nesse sentido na decisão da matéria de facto, fundamenta a determinação da medida concreta da coima dizendo que o «dolo é directo, de intensidade mediana, pois o arguido bem sabia da necessidade de licenciamento e mesmo assim infringiu-os propositadamente».
Assim, afigura-se-nos que a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito e que mal andou o tribunal recorrido ao lançar mão, para a determinação da medida da sanção, a factos que não constam do elenco da factualidade provada.
Tal insuficiência integra o vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º2, alínea b), determinando o reenvio para novo julgamento.
III – Dispositivo
Nestes termos, acordam em audiência os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em, com base no vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., por insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto nos artigos 426.º e 426.ºA, do mesmo diploma.