Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
23/09. 4GASBG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: APREENSÕES
RESTITUIÇÃO
ARMA E CARTA DE CAÇADOR
RECURSO
MOMENTO SUBIDA
Data do Acordão: 12/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS178º E 186º CPP
Sumário: 1. É de subida imediata o recurso da decisão que indeferiu a entrega da arma e carta de caçador apreendidas.
2. Em processo penal, a apreensão de objectos tem natureza preventiva, constitui meio de obtenção de prova e tem uma função cautelar.
3. Encontrando-se os autos em fase de investigação, a manutenção da apreensão justifica-se atendendo a que pode haver necessidade de realizar exame à arma, além de que pode vir a ser declarada perdida enquanto instrumento do crime.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

A..., arguido nos autos, veio interpor recurso do despacho judicial, de fls. 79/84, que indeferiu a requerida entrega da arma e carta de caçador que se encontram apreendidas.

São as seguintes as conclusões ([1]) da motivação de recurso:

1) Conforme resulta dos autos, o Arguido/Recorrente, através de requerimento de fls. 68, veio requerer a entrega da arma e carta de caçador, apreendidas nos presentes autos;

2) Por despacho de fls., foi decidido o seguinte: “Face a todo o exposto, decide-se indeferir o requerido pelo Arguido”;

3) Fundamenta a Meritíssima Juiz, no seu Despacho que “a apreensão deve ser mantida para garantir a futura e eventual declaração de perda a favor do Estado...”;

4) Conforme resulta dos autos, foram os mesmos remetidos para o Ministério Público, prosseguindo no âmbito da denominada fase processual de inquérito, finda a qual, se se vierem a recolher indícios suficientes, conduzirá necessariamente à dedução de uma acusação, com uma apresentação formal e estrutural diferente das que ocorrem no âmbito de processos sob a forma especial sumária;

5) Não pode a Meritíssima juiz fazer juízos de probabilidade ou possibilidade, de que deve ser mantida a apreensão efectuada, para garantir a futura e eventual declaração de perda a favor do Estado;

6) Encontrando-se o processo em fase de investigação, e não sendo possível concluir ainda pela desnecessidade da manutenção da apreensão dos objectos que legalmente podem vir a ser declarados perdidos a favor do Estado, não faz sentido manter-se a apreensão dos mesmos;

7) Devendo os mesmos ser restituídos ao Arguido - artigo 186°, n.º 1 do Código Processo Penal;

8) Refere o douto Despacho de fls., que, “os objectos foram apreendidos por se encontrarem na posse do Arguido nas circunstâncias melhor descritas no auto de notícia, nos termos do disposto no artigo 178º, n.º 1 do Código Processo Penal...”. (sublinhado nosso);

9) Analisando o auto de notícia, facilmente se verifica, que não se sabe que factos são imputáveis ao Arguido;

10) Constitui assim tal auto, uma ofensa grave do princípio da acusação e põem em causa a estrutura acusatória do nosso sistema penal;

11) Nunca poderiam os objectos ter sido apreendidos, pelas circunstâncias melhor descritas no auto de notícia, uma vez que, tais circunstâncias ainda estão por apurar;

12) Considerando que o auto de notícia não observa os requisitos exigidos no artigo 283°, n.º 3 do CPP, deve o mesmo ser considerado nulo;

13) Dispõe o n.º 1, do artigo 178° do CPP, “São apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço, ou recompensa, bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova;

14) Atendendo a que, e conforme decorre do processo, dele nada resulta que dos factos indiciados, bem como dos objectos apreendidos, que os mesmos serviram ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, visto que ao arguido não lhe foi ainda imputado qualquer acto ilícito que constitua crime;

15) Só se pode julgar e decidir dentro dos limites que são fixados por uma acusação devidamente fundamentada;

16) A actividade cognitória do Tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação;

17) Não resulta dos autos que os objectos apreendidos ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos;

18) Também dos autos, não resulta que os objectos apreendidos serviram ou tivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito, visto que ainda se encontram por apurar as circunstâncias do caso em apreço;

19) Não podendo assim ser mantida a apreensão dos objectos em causa;

20) Não podendo tais objectos ser considerados "meios de prova";

21) É nula a apreensão feita nos presentes autos, devendo os objectos apreendidos ser restituídos ao Arguido, com todas as consequências legais daí resultantes;

22) Terá o Despacho recorrido de ser Revogado, com todas as consequências legais daí resultantes;

23) Acresce que, o Despacho recorrido viola o disposto no artigo 410° n.º 2 alíneas a).b) e c);

24) A motivação da Meritíssima Juiz foi uma mera “exclusão de partes" - ANALOGIA ou INVENÇÃO;

25) Despacho recorrido é nulo nos termos do artigo 379° do Código do Processo Penal;

26) Dizer-se como se diz no Despacho recorrido, é o mesmo que nada se dizer, pois fartamente se verifica que pelos elementos constantes do processo, a decisão teria de ser outra;

27) Tem forçosamente o Despacho recorrido de ser Revogado com todas as consequências legais, por erro de apreciação das provas juntas aos autos;

28) E, além disso, nos termos do artigo 97º do C.P.P., "Os actos decisórios são sempre fundamentados”;

29) O Despacho recorrido, sofre também do vício da falta de fundamentação, dado que, conforme já se disse, ao não enumerar e indicar as provas que serviram de base à decisão;

30) O Despacho recorrido viola todos os princípios de prova consagrados tanto no C.P.P., como na Constituição da República Portuguesa;

31) Não existem dúvidas que o Despacho recorrido viola o disposto no artigo 410° do C.P.P. e que esse Venerando Tribunal pode apreciar as questões postas em crise, nos termos do n.º 2 desta disposição processual/legal;

32) Deixando a Meritíssima Juiz de se pronunciar sobre estas questões que devia apreciar, nomeadamente as já alegadas nesta peça processual, ou apreciando-as superficialmente, e com bastantes lacunas, como acima já se disse;

33) Tanto mais, que as partes precisam de serem elucidadas sobre os motivos da decisão;

34) Sobretudo a parte vencida tem direito, como escreveu o Prof. Alberto dos Reis: "de saber porque razão a sentença lhe é desfavorável; e tem mesmo necessidade de saber, quando a sentença admite recurso, para poder impugnar o fundamento ou fundamentos perante o tribunal superior". Anot. V, pág. 139;

35) Não basta pois que a Meritíssima Juiz decida as questões postas em "crise";

36) E indispensável que produzam as razões em que se apoia o seu veredicto;

37) "Uma decisão sem fundamento, equivale a uma conclusão sem premissas, é uma peça sem base"  - da mesma obra citada.

38) Lendo, atentamente, o Despacho recorrido, nesta parte, ou noutra parte qualquer, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo do indeferimento da pretensão do Reclamante;

39) O Despacho recorrido viola o disposto no artigo 208° da C.R.P., uma vez que segundo esta disposição Constitucional, "As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na Lei";

40) O Despacho recorrido, viola também o disposto no artigo 207° da C.R.P., uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem "os princípios nela consignados";

41) Viola também o Despacho recorrido o disposto no artigo 205° da C.R.P., nomeadamente o n.º 2, uma vez que: "Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos … e dirimir os conflitos de interesses públicos e provados";

42) Isto é, o (Tribunal) Meritíssimo Juiz com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos da Recorrente, e não fundamentou exaustivamente a sua decisão;

43) Dado que FUNDAMENTAR-SE, não é só alegarem-se factos que depois pela análise dos elementos constantes dos autos, têm alguma relação directa com a decisão final – assim, não se pode dizer que existe fundamentação;

44) Dúvidas não existem de que a apreensão efectuada aos objectos é ilegal e inconstitucional, violando-se também o disposto no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa;

45) Dado que esta norma constitucional dispõe: "Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei";

46) Dúvidas não existem de que assim, o Recorrente não foi tratado de forma igual a outros cidadãos perante a lei;

47) Acresce que o Despacho recorrido viola o disposto nos artigos 374° e 375° do C.P.P.;

48) O Despacho recorrido é nulo, por interpretação e aplicação deficiente das normas legais citadas, conforme já acima se disse e provou;

49) Pelo que, V. Exa. certamente REVOGARÁ o Despacho recorrido, ordenado a entrega dos objectos apreendidos ao Arguido/Recorrente, por ser de LEI, DIRETO E JUSTIÇA;

50) O Despacho recorrido viola:

- Artigos 97º, 374°, 375°, 379° e 410° do C.P.P.;

     - Artigos 13°, 205°, 207° e 208° da C.R.P..


*

A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido apresentou resposta, defendendo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se o despacho judicial nos seus precisos termos.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto, como questão prévia, suscitou a questão do regime de subida de recurso, por entender que o regime adequado ao caso “sub-judice” será o de subida diferida – regra relativa aos recursos de despachos interlocutórios – uma vez que (e ao contrário do que terá sido o entendimento do tribunal recorrido) a retenção do recurso o não torna absolutamente inútil.

Emitiu, assim, parecer no sentido de que:

a) deve alterar-se o regime de subida do presente recurso, determinando-se que passe a subir com o que vier a ser interposto da decisão que ponha termo à causa, nos termos dos artigos 406º, n.º 1 e 407º, n.º 3 do CPP,
b) não deverá consequentemente conhecer-se, por ora, do seu objecto.
Os autos tiveram os vistos legais.


***


II – FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido (por transcrição):

Veio o arguido A..., melhor Identificado nos presentes autos de inquérito, através do requerimento constante a fls. 68, requerer a entrega da arma e carta de caçador, apreendidas nos presentes autos.

O Ministério Público pronunciou-se acerca do requerido, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 73 e 74 alegando, em síntese, que conforme decorre do teor do auto de apreensão constante a fls. 10, foram apreendidos por se encontrarem na posse do arguido nas circunstâncias melhor descritas no auto de notícia, nos termos do disposto no art. 178°, n.º 1, do Código de Processo Penal e art. 128° do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 201/2005, de 24 de Novembro, para além dos demais objectos aí melhor identificados, uma arma de caça, marca "F.N" com o n.º 74J11353, de canos sobrepostos, calibre 12 e um livrete n.º F 37723, emitido em 09/05/2000.

Atento o disposto nos referidos preceitos legais, devidamente conjugado com o disposto nos artigos 123°; 3°, n.º 2 do referido Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 201/2005 de 24 de Novembro e artigos 6º, n.º 1, al. b); 30° e 35°, nº s 1 a 4, da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro bem como a fase de investigação em que se encontram os presentes autos e a necessidade de se averiguar da necessidade ou não de a referida arma ser submetida a exame, entendemos que continua a ser necessária a manutenção da apreensão dos referidos objectos para efeitos de prova e em consequência, deverá ser indeferido, por ora o requerido.

No que respeita à carta de caçador a mesma foi nos termos do disposto no art. 127°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 201/2005, de 24 de Novembro, remetida à Autoridade Florestal Nacional - DGRF (cfr. fls. 3).

Cumpre, então, apreciar e decidir:

Nos termos do disposto no art. 178°, n.º 6 do C.P.P., os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida, sendo correspondentemente aplicável o disposto no n.º 5 do art. 68° do mesmo diploma legal.

Sufragando, na íntegra, os considerandos expendidos a respeito deste normativo no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.12.2005, in C.J., XXX, 5, 143, diremos que, também em nosso entender, esta disposição do n.º 6, que foi introduzida pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto, não é consentânea com a direcção do inquérito pelo Ministério Público. O legislador teve em mente a propriedade de bens perecíveis e de fácil deterioração, cuja apreensão pode tornar-se uma medida de facto definitiva com o decurso do tempo e a consequente inutilização prática do bem. Mas se o propósito do legislador foi o de proteger a propriedade, fê-lo de modo que contraria a distribuição de poderes na fase de inquérito e tornando o Juiz de Instrução uma Instância de "recurso" do Ministério Público, dominus desta fase processual.

Posto isto, e tendo em conta os interesses que no caso dos autos se levantam, impõe-se efectuar um juízo de ponderação dos mesmos, a saber: a entrega da arma e carta de caçador ao seu legítimo proprietário/portador e o interesse probatório da continuidade da sua apreensão à ordem dos presentes autos, atempadamente validada por despacho de fls. 19.

A acrescer às premissas que ora introduzimos importa trazer à colação o regime específico constante dos artigos 128° e ss. do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 201/2005, de 24 de Novembro, onde se dispõe que os agentes de autoridade sempre que presenciarem a prática de um facto punível, o que indiciariamente se verifica in casu, procedem à apreensão da carta de caçador do infractor, o que, também, sucedeu no caso vertente, ou da licença de caça para não residentes, quando for caso disso, e procedem à emissão da respectiva guia nos termos da Portaria n.º 1239/93, de 04 de Dezembro.

Nos termos do art. 9° desta portaria, quando a carta de caçador seja apreendida por virtude da prática de infracção será emitido recibo do modelo anexo, comprovativo da apreensão ou entrega, o qual substituirá a referida carta durante o tempo nele indicado para todos os efeitos legais, exceptuados os que nele forem expressamente ressalvados

Os agentes de autoridade procedem, ainda, à apreensão de todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados à prática de infracção de caça, ou que constituam seu produto, e de todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local da infracção e quaisquer outros susceptíveis de servir de prova.

Podem ser provisoriamente apreendidos pelas autoridades policiais ou administrativas competentes os objectos que serviram ou estavam destinados a servir a prática de infracção de caça e quaisquer outros que forem susceptíveis de servir de prova.

Os objectos são restituídos logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeitos de prova, a menos que possam declarados perdidos.

Por seu turno estabelece o art. 35° da Lei da Caça (Lei 173/99, de 21 de Setembro) que a condenação por qualquer crime ou contra-ordenação previstos naquele diploma pode implicar a interdição do direito de caçar e a perda dos instrumentos e produtos da Infracção a favor do Estado sendo que a perda dos instrumentos da infracção envolve a perda das armas e dos veículos que serviram à prática daquela.

Como é sabido, ao lado dos exames, das revistas e buscas, e das escutas telefónicas, as apreensões (artigos 178º a 186º do Código de Processo Penal) constituem "Meios de obtenção de prova" - titulo III do Livro III ("Da Prova"), isto é, instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Lisboa/S.Paulo, vol, II, 3aed., pág. 209).

Nesta conformidade, "são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova" (artigo 178°, n.º 1).

Esta função instrumental da apreensão implica que logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito (artigo 186°, n.º 1).

Mas, os objectos susceptíveis de confisco (artigos 109° e seguintes do Código Penal) só serão restituídos, e nesse caso logo que transite em julgado a sentença, se nesta (artigo 374°, n.º 3 alínea c) não tiverem sido declarados a favor do Estado (artigo 186°, n.º 2) - ctr. Ac. do STJ de 13-2-2003, proc. 158/0- 5a, relator Carmona da Mota in www.pgdlisboa.pt.,

Por isso que se possa concluir, conforme decidido in Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.12.2006 referente ao processo n.º 1837/06-1, relatado pelo Exmo Sr. Desembargador Cruz Bucho e que passaremos a seguir de perto, que à semelhança do que já sucedia no âmbito do anterior Código de Processo Penal (cfr., v.g. Ary Elias da Costa. Linhas Gerais de Instrução Preparatória em Processo Penal, Coimbra, 1960, pags. 62-63) a apreensão, embora se destine essencialmente a conservar provas reais, visa também garantir a efectivação da privação definitiva do bem (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, cit., pág. 217 e o Ac. da Rel. do Porto e 31-1-1990, BMJ n.º 393, pág. 655, este último citado na douta resposta do Ministério Público junto do tribunal recorrido ).

Nos termos do n.º 1 do artigo 109° do Código Penal, "São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico (…) quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso (...) oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos."

Uma vez que a investigação ainda se encontra numa fase inicial e embrionária, não é possível concluir pela desnecessidade da manutenção da apreensão dos objectos que legalmente podem vir a ser declarados perdidos a favor do Estado (cfr. para casos paralelos os Acórdãos da Relação do Porto de 09.02.2005, referente ao proc. n.º 0443342 e de 30.03.2005, proc. n.º 04456632, ambos relatados pelo Des. Dias Cabral in www.dgsi.pt).

Mesmo que se perfilhe uma posição mais rigorista sobre a questão, sustentando-se ser necessária a formulação a este respeito de um juízo de probabilidade e não de mera possibilidade, o que no caso se afigura difícil já que se não antevê como provável que os objectos apreendidos ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos [cfr. v.g os Acs do STJ de 19-12-1990 (BMJ n.º 392, pág. 237), 8-2-1995 (BMJ n.º 444. pág. 178) e de 21-10-1998 (BMJ n.º 480, pág. 56)], nem mesmo assim, poderíamos defender a entrega dos mesmos ao seu legitimo proprietário/detentor, aqui arguido.

É que, como avisadamente adverte o Conselheiro Maia Gonçalves, quanto a algumas categorias de instrumentos ou produtos das infracções a lei estabelece um regime específico ou particularidades de regulamentação (Código Penal Anotado, 15a ed , Coimbra 2005. pág. 395), o que como supra expusemos sucede no caso dos autos.

Como se colhe dos preceitos supra transcritos, neste domínio especial dos crimes de caça, cuja prática está imputada ao arguida, a perda dos instrumentos não está condicionada à perigosidade ou ao risco de poderem ser utilizados para a prática de novos crimes, ao contrário do que sucede no âmbito do artigo 109° do Código Penal.

Por isso que, também por esta via, a apreensão deva ser mantida para, garantir a futura e eventual declaração de perda a favor do Estado e, bem assim, do cumprimento da sanção acessória do direito de caçar, nos termos previstos nos normativos supra citados.

Face a todo o exposto, decide-se indeferir o requerido pelo arguido. Notifique.

Após, devolva os autos aos serviços do Ministério Público.


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Questão Prévia

No despacho que admitiu o presente recurso, e relativamente ao regime de subida, determinou a Mmª Juiz que o mesmo «subisse em separado, imediatamente e com efeito meramente devolutivo (artigos 406º, n.º 2, 407º, n.º 1 e 408º, a contrario, todos do CPP».

Neste tribunal, o Exmº PGA emitiu parecer no sentido de que “deve alterar-se o regime de subida do presente recurso, determinando-se que passe a subir com o que vier a ser interposto da decisão que ponha termo à causa, nos termos dos artigos 406º, n.º 1 e 407º, n.º 3 do CPP”, porquanto nos recursos de despachos interlocutórios a regra é a da subida diferida, uma vez que a retenção do recurso o não torna absolutamente inútil.

Quanto ao “momento da subida” do recurso, estabelece o artigo 407º do CPP que, para além das situações previstas no n.º 2 (não se enquadrando a situação dos autos em nenhuma destas), sobem imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis (n.º 1).

Com a cláusula geral do n.º 1 pretende-se evitar que o diferimento da subida inutilize por completo as potencialidades da impugnação.

A retenção do recurso só o tornará absolutamente inútil quando a sua decisão, ainda que favorável ao recorrente, já lhe não puder aproveitar, isto é, quando, seja qual for a solução que lhe vier a ser dada pelo tribunal superior, ele é já absolutamente inútil no seu reflexo sobre o processo – Ac. da RP, de 20-9-95, in www.dgsi.pt.

In casu, foi efectuada uma apreensão cautelar e, com o presente recurso, pretende o recorrente discutir a manutenção da apreensão, e a disponibilidade da coisa durante a pendência do processo.

Caso a subida fosse diferida, e o recurso apenas subisse com o eventual recurso da decisão que venha a pôr termo à causa, a ser procedente a pretensão do recorrente, haveria uma parte da duração da apreensão que já não se poderia repetir. Ou seja, caso seja provido o recurso, a duração da apreensão é diferente, consoante o regime de subida do recurso (se imediata ou diferida).

Assim sendo, entendemos que foi correctamente fixado o regime de subida imediata do recurso.

 


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APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, são as seguintes as questões suscitadas:

- o despacho recorrido padece dos vícios a que alude o n.º 2 do artigo 410º do CPP;

- a nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação;

- a nulidade da apreensão, dado o auto de notícia não observar os requisitos exigidos no artigo 283º, n.º 3 do CPP.


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A-

Sustenta o recorrente que o despacho recorrido viola o disposto no artigo 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP.

Ora, os vícios invocados pelo recorrente só podem ser apreciados pelo tribunal ad quem na medida em que a decisão recorrida seja uma sentença/acórdão.

Nos termos do citado artigo 410º só os vícios da sentença podem ser fundamento do recurso.

Em conformidade, tratando-se a decisão recorrida de mero despacho, impõe-se a rejeição do recurso, nesta parte, por manifesta improcedência.


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B-

Alega o recorrente que o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação.

Nos termos do que dispõe o artigo 97º, n.º 1, al. b) e n.º 5 do C.P.P., os actos decisórios dos juízes tomam a forma de “despachos” quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora dos casos previstos para as sentenças e são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

Diz ainda o artigo 205.º, n.º 1, da C.R.P., que enformou o citado artigo 97º, n.º 5, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

Segundo Tolda Pinto, in “A Tramitação Processual Penal”, 2.ª Ed., pág. 206 segs. “a fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a) – Uma de ordem endoprocessual – que visa impor ao juiz um momento de verificação e controle crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) – Outra, de ordem extraprocessual – que procura, acima de tudo, tornar possível um controle externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão.

(…) Relativamente àquela, uma vez que se liga directamente com o princípio consagrado no art.º 32.º, n.º 1, da Constituição, a fundamentação das decisões judiciais justifica-se, desde logo, na medida em que funciona como garantia de racionalidade, imparcialidade e ponderação da própria decisão judicial. A motivação da decisão judicial funciona aqui como elemento de controle interno necessário do princípio da livre convicção do juiz em matéria probatória”.

Depois, citando ainda Eduardo Correia, in Revista do Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, diz que “a motivação da decisão é também imprescindível, entre outras razões, para favorecer o auto-controle dos juízes, designadamente, obrigando-os a analisar, à luz da razão, as impressões recolhidas no decurso da produção da prova, bem como para estimular a recolha jurisprudencial de regras objectivas de experiência e o respeito pela lógica e pelas leis da psicologia judiciária na apreciação das mesmas”.

Em suma, conclui, dizendo que a fundamentação de facto e de direito, da decisão judicial visa, desde logo, garantir uma mais adequada ponderação da prova produzida, bem como do direito aplicável”.

Justifica ainda a necessidade de fundamentação pela garantia assim dada à ponderação dos argumentos da defesa, do mesmo modo que constitui um elemento imprescindível ao exercício efectivo do direito ao recurso.

Ora, contrariamente ao alegado pelo recorrente, resulta claro da motivação do recurso que face ao teor do despacho recorrido tomou conhecimento das razões por que foi indeferida a sua pretensão. Acontece, é que o recorrente discordou da fundamentação do despacho, e daí a presente impugnação.

Convém salientar que o despacho recorrido é proferido na sequência do requerimento do arguido, de fls. 68, onde apenas consta: “vem, em virtude do despacho de fls., requerer a entrega da arma e carta de caçador, apreendidas nos presentes autos.” Requerimento este, sem qualquer fundamento do pedido.

Estava o arguido a referir-se ao despacho de fls. 56/57 que determinou que os autos fossem remetidos ao MP para tramitação sob a forma comum.

Analisando a tramitação do autos, verificamos que foi requerido o julgamento do arguido, em processo sumário, pela prática dos factos constantes do auto de notícia, susceptíveis de integrarem um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, n.º 1, al. b) e 30º, n.º 1 da Lei n.º 173/99, de 21.09 e 3º e anexo I, do DL n.º 201/2005, de 24.09, e na contra-ordenação p. e p. pelos artigos 65º, n.º 1, al. f) e 137º, n.º 1, al. q) e n.º 2, al. a) do DL n.º 201/2005 (por não se fazer acompanhar de bilhete de Identidade durante o exercício da caça).

Declarada aberta a audiência, o arguido requereu prazo para preparar a defesa, o que foi deferido, tendo sido designada nova data para realização da mesma.

Na contestação que apresentou, o arguido requereu “a realização de exame biológico aos produtos constantes da acusação, de forma a certificar, se as características que tais produtos apresentam, corresponde ou não aos produtos apreendidos.

Porque a realização do requerido exame ía ultrapassar o prazo de 30 dias previsto no artigo 387º do CPP, foi então proferido o despacho de fls. 56/57. 

O despacho recorrido depois de enunciar a posição do MP sobre o requerimento do arguido, pronunciou-se sobre a apreensão da arma e da carta de caçador, e sobre a legislação que permitiu/determinou tal apreensão; sobre a apreensão enquanto meio de obtenção de prova; sobre a função instrumental da apreensão; tendo referido ainda doutrina e jurisprudência relativa a tais questões.

Ponderou ainda o despacho recorrido sobre os interesses em causa, concretamente, “a entrega da arma e carta de caçador ao seu legítimo proprietário/portador e o interesse probatório da continuidade da sua apreensão à ordem dos presentes autos, atempadamente validada por despacho de fls. 19.

Em função do exposto, entendemos que a decisão recorrida se encontra suficientemente fundamentada, de facto e de direito, não se mostrando violadas quaisquer normas legais e/ou constitucionais, designadamente, as invocadas pelo recorrente.


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C-

Mais alega o recorrente que o auto de notícia não observa os requisitos exigidos no artigo 283º, n.º 3 do CPP, devendo ser considerado nulo.

O auto de notícia é um documento que vale como documento autêntico quando levantado ou mandado levantar por autoridade pública (art. 363º, n.º 2 do CC) seja autoridade judiciária ou autoridade policial e, por isso, faz prova dos factos materiais dele constantes nos termos do art. 169º do CPP.

Chamado a pronunciar-se sobre a aludida uma norma do CE, o Tribunal Constitucional adoptou o posicionamento uniforme no sentido de que a fé em juízo dos autos de notícia reconduz-se a um especial valor probatório atribuído a certas comprovações materiais para os factos presenciados por certa autoridade pública. Pressuposto de tal entendimento é o de que tal fé em juízo não acarreta qualquer presunção de culpabilidade, nem envolve uma manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reo. Por outro lado tal especial valor probatório não afecta o direito de defesa do arguido e o seu exercício do contraditório – cfr. Ac. 7-2-1990.

Ora, contrariamente ao alegado, o auto de notícia que está na origem destes autos observa os requisitos exigidos pelo n.º 3 do artigo 283º do CPP. Basta uma simples leitura de fls. 2 e 3, pelo que nos dispensamos de transcrever o que ali consta.

Como bem observa a Magistrada do MP na sua resposta, «basta ler os pontos 16 a 47 da contestação apresentada pelo arguido quando os autos prosseguiam os seus termos sob a forma de processo especial sumário, para se comprovar que o arguido compreendeu que factos lhe estão a ser imputados e que disposições legais foram presumivelmente por si violadas.

Em processo penal, a apreensão de objectos tem natureza preventiva, constitui meio de obtenção de prova e tem uma função cautelar.

No caso vertente, a autoridade judiciária validou as apreensões efectuadas pelos órgãos de polícia criminal, dentro do prazo de 72 horas exigido pelo n.º 5 do artigo 178º do CPP (cfr. fls. 9/11 e despacho judicial de fls. 19).

Atendendo a que os autos se encontram ainda em fase de investigação, e face às diligências de prova requeridas pelo arguido, afigura-se-nos que a manutenção da apreensão se justifica atendendo a que, nomeadamente, pode haver necessidade de realizar exame à arma, além de que pode vir a ser declarada perdida enquanto instrumento do crime.

Nos termos expostos, nenhum reparo nos merece o despacho recorrido, improcedendo, na totalidade, a argumentação do recorrente.


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III - DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso, confirmando-se, consequentemente, o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.


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                                                       Coimbra,


  


[1] - Conclusões sem qualquer concisão, ao arrepio do disposto no n.º 1 do artigo 412º do CPP; conclusões que correspondem, na prática, a todo o texto da motivação. Porém, porque das mesmas se consegue identificar o objecto do recurso, não se determinou o cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 417º do mesmo Código.