Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/16.8T8PBL-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROVA POR DOCUMENTOS
DEVER DO JUIZ
Data do Acordão: 11/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 607º, NºS 3 E 4 DO NCPC.
Sumário: 1. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC de 2013).

2. Os documentos não são factos, mas simples meios de prova dos factos alegados.

3. Em cumprimento do disposto no art.º 607º, n.ºs 3, 1ª parte e 4, do CPC, deverá o juiz indicar expressamente os factos provados pelos documentos, não bastando “dar como reproduzidos” os documentos ou realizar uma simples “cópia e colagem” do seu teor.

4. Não se demonstrando que a conta caucionada “ficou totalmente saldada em 2010” e que “o BES soube em 2010 positivamente da renúncia do executado/embargante do cargo de administrador, mas permitiu a utilização da mesma conta sem lho comunicar”, caem dois dos fundamentos aptos a sustentar que o banco exequente/embargado, ao apresentar à execução livrança avalizada em 21.6.2007 e com vencimento em 30.10.2015, dada em garantia do correspondente contrato de financiamento, excedera “manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (art.º 334º do CC).

Decisão Texto Integral:         








        Sumário do acórdão:

1. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC de 2013).

2. Os documentos não são factos, mas simples meios de prova dos factos alegados.

3. Em cumprimento do disposto no art.º 607º, n.ºs 3, 1ª parte e 4, do CPC, deverá o juiz indicar expressamente os factos provados pelos documentos, não bastando “dar como reproduzidos” os documentos ou realizar uma simples “cópia e colagem” do seu teor.

4. Não se demonstrando que a conta caucionada “ficou totalmente saldada em 2010” e que “o BES soube em 2010 positivamente da renúncia do executado/embargante do cargo de administrador, mas permitiu a utilização da mesma conta sem lho comunicar”, caem dois dos fundamentos aptos a sustentar que o banco exequente/embargado, ao apresentar à execução livrança avalizada em 21.6.2007 e com vencimento em 30.10.2015, dada em garantia do correspondente contrato de financiamento, excedera “manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (art.º 334º do CC).

                

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Em 02.3.2016, J... deduziu oposição por embargos à execução que lhe é movida por Banco A..., S.A.[1], pedindo que os presentes embargos sejam julgados procedentes.

Alegou, em síntese: a livrança dada à execução foi preenchida abusivamente pela exequente, uma vez que não o poderia ter sido na medida em que apenas estava autorizado a preencher o Banco B..., S.A.; a garantia dada pelo aval cessou no termo do prazo fixado no contrato - 90 dias -, não estabelecendo o contrato que as garantias acompanham a renovação do empréstimo; nunca lhe foi explicado que o aval se pudesse prolongar para além do prazo do empréstimo, e a sociedade devedora chegou a pagar totalmente a conta caucionada em 2010; renunciou ao cargo de administrador da sociedade devedora em 2008, facto registado em 2009; a exequente/embargada sabia que o executado/embargante já não era administrador da sociedade e ainda assim preencheu a livrança (em 30.10.2015[2]), sendo que voltou a permitir a utilização do saldo da conta caucionada (depois de pago o montante devido) sem comunicar ao opoente/avalista e numa altura em que este já não era administrador da sociedade; a exequente/embargada actua em abuso de direito.

A exequente/embargada contestou, referindo, além do mais: é parte legítima na execução, face à transferência de ativos operada do B...; a livrança foi subscrita para garantia do incumprimento das obrigações assumidas no contrato celebrado com a sociedade A..., S. A., sendo o crédito reutilizável como ficou a constar do contrato, para além dos 90 (noventa) dias fixados; é irrelevante a renúncia ao cargo de administrador na medida em que tal não extingue o aval prestado. Concluiu pela improcedência dos embargos.

Proferido saneador-sentença, objeto de recurso, a Relação determinou o prosseguimento dos autos para realização de audiência prévia, nos termos e para os efeitos do art.º 591º do Código de Processo Civil (CPC).

Observado o assim determinado, foi então proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de (i)legimitidade ativa, firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 03.5.2021, julgou improcedentes, por não provados, os presentes embargos à execução.

 Inconformado, o executado/embargante apelou formulando as seguintes conclusões:

...[3]

Não houve resposta.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa conhecer e/ou reapreciar, principalmente: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito, em particular, quanto à problemática do preenchimento abusivo da livrança dada à execução e do abuso de direito por parte da exequente (cuja modificação dependerá, principalmente, do eventual atendimento daquela impugnação).


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

...

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

O embargante/apelante começa por afirmar que “na sentença recorrida fazem-se umas colagens que não se podem aceitar e que desrespeita as normas de elaboração de sentença, violando os art.ºs 607º e 608º do CPC”.

O recorrente tem razão, porquanto a Mm.ª Juíza a quo não deu o devido cumprimento ao disposto, nomeadamente, no art.º 607º, n.ºs 3, 1ª parte [“Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados (...)”] e 4 [“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (...)”] do CPC.

Na verdade, os citados normativos sobre a elaboração da sentença não foram devidamente observados quanto à factualidade a que se alude em II. 1. 6), 7), 8), 11) e 12), supra, sabendo-se que “os documentos não são factos, mas simples meios de prova dos factos alegados”, razão pela qual, na fixação da matéria de facto, sempre importará indicar expressamente os factos provados pelos documentos, não bastando “dar como reproduzidos” os documentos ou realizar uma simples “cópia e colagem” do seu teor.

Ademais, se, eventualmente, a alegação dos factos tiver sido feita com remissão para os documentos, deverá o juiz seleccionar os factos incluídos ou decorrentes de tais documentos que importem à decisão da causa, e, se assim não suceder, nada obstará a que, em sede de recurso, essa tarefa seja assumida pela Relação que também conhece da matéria de facto[4], explicitando ou concretizando o teor de tais documentos que releve para a dilucidação da lide e a decisão do recurso.

Resta proceder em conformidade com a mencionada orientação.[5]

4. a) O embargante/recorrente insurge-se, ainda, e principalmente, contra a decisão sobre a matéria de facto, ciente de que a sua eventual modificação poderá levar a um diferente desfecho dos autos.

Com esse desiderato pugna para que seja dado como não provado o ponto de facto 11) e que o ponto 9) da matéria de facto provada tenha a resposta diversa que apresenta; diz ainda que, contrariamente ao que erradamente se fez constar em II. 2. a), supra, como não provado, se deverá dar como provado o que indica nos (novos) pontos de facto - “13), 14), 15) de 16)” - (cf., a “conclusão 2ª”, ponto I., supra).

Baseia-se, para o efeito, apenas, na prova documental junta aos autos.

Daí, importa averiguar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto àquela factualidade.

b) Esta Relação procedeu à audição integral da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental.

c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[6], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que se verifique se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[7], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

d) Consignou-se na motivação da decisão sobre a matéria de facto, designadamente:

«Para a formação da convicção do Tribunal atendeu-se à conjugação da globalidade dos documentos juntos aos autos, não impugnados pelas partes, designadamente, o título executivo junto aos autos de execução principais, certidão de registo comercial da A..., S. A., de fls. 15 a 17, contrato de financiamento n.º ..., mais legível a fls. 177 a 179 verso, extractos bancários de fls. 181 verso fls. 210 a 235 e extracto de conta da A... de fls. 13 e 14, missivas de fls. 12, 13, de fls.181 a 202. / Da análise do extracto de conta da A..., S. A., concatenada com os extractos bancários supra descritos, concluímos que no ano de 2010 a conta caucionada[8] relativa ao contrato supra descrita apresentou por duas vezes saldo “0”, em 01.01.2010 e em 31.12.2010, sendo que o mesmo sucedeu, inclusive, em anos posteriores, o que foi explicado escorreitamente pela testemunha J..., bancário, a prestar serviço no Centro de Empresas da embargada, em Leiria, segundo o qual o limite de financiamento – 500.000€ - permanece sempre válido, sendo objecto de sucessivas renovações enquanto não for denunciado, pelo que a A... era livre de o utilizar como bem entendesse ao longo do tempo, sendo normal que durante esse período apresentasse saldos zero. / A factualidade não apurada resultou da ausência de prova que a permitisse sustentar, tanto mais que, a testemunha supra anuiu que nunca teve conhecimento que tenha sido comunicado ao embargado a saída do embargante do cargo de administrador da empresa. Mais sustentou ainda que se tal tivesse sucedido isso certamente obrigava a nova negociação, liquidação ou entrada de novo avalista, o que não aconteceu. E na verdade, do que se extraiu deste depoimento é que era precisamente esta testemunha quem, na área comercial, tinha na sua carteira de clientes a A..., S. A., anuindo que com quem estabelecia contacto era com o co-executado J... (...)»

e) Perante a descrita análise crítica da prova, que se afigura correta, vejamos, no entanto, alguns excertos elucidativos do referido depoimento:

...

f) Relevando o que decorre da mencionada prova pessoal - conjugada com a prova documental junta aos autos (que se analisará, nomeadamente, ao apreciar e decidir os concretos pontos da impugnação em apreço) -, vejamos então:

1 - Segundo o recorrente “deve ser alterada a redação do ponto 9 dos factos dados por assentes, pois, a cessação de funções como administrador do embargante ocorreu não por renúncia, mas, outrossim, por ter caducado o mandato em 2008”.

Ora, salvo o devido respeito por entendimento contrário, foi o embargante quem alegou que “saiu com renúncia ao cargo de administrador em 2008 (...) registada em 2009” (cf. os art.ºs 55º e 56º da petição de embargos/fls. 8 verso, posição que não se vê alterada no arrazoado de aperfeiçoamento, v. g., sob o art.º 12º/fls. 33 verso); assim, também, no “parecer” junto aos autos/fls. 108.

É certo que na certidão de fls. 15 não consta o registo de tal “renúncia”, mas o embargante porventura saberá por que razão não trouxe aos autos a perspectiva que agora defende (ignorando-se se pretendeu dar conta, sobretudo, da “situação de facto” naquele concreto período da sua intervenção na actividade da “A...”).

Por último, nenhuma outra prova se produziu nos autos a respeito desta problemática.

Assim, não se justificará a pretendida modificação na redacção do ponto 9) - «O executado/embargante cessou as suas funções do cargo de administrador da sociedade “A..., S. A.”, no termo do mandato, em 2008, tendo sido registados novos administradores em 23.6.2009.» -, que, diga-se, por si só, nada de relevante traria para outro desfecho da lide.

2 -  Refere, depois, o embargante que a decisão dos factos não provados - Que «a) O embargado tivesse conhecimento do descrito em 9) dos Factos provados ou que lhe tenha sido dado esse conhecimento pelo embargante.» - também se encontra errada e tem de ser alterada, porquanto “sobre o embargante assiste a presunção a seu favor decorrente do Registo Comercial”, atentas as disposições conjugadas dos art.ºs 344º, n.º 1 CC[9] e 1º, n.º 1 do Código do Registo Comercial (CRC)[10], pelo que a embargada “tinha que ter conhecimento da renúncia, sendo-lhe este facto oponível”, conforme o preceituado nos art.ºs 3º, n.º 1, m) e 14º, do CRC[11], “sendo todos estes artigos violados na decisão recorrida”.

Não obstante o que resulta em sentido contrário da mencionada prova pessoal, atendida pela Mm.ª Juíza a quo, afigura-se, uma vez mais, que apenas podemos considerar o que consta do registo comercial (máxime, do documento de fls. 15), mas não, e nesta sede, retirar a “ilação” aventada pelo embargante/recorrente, mormente que «13 - O executado/embargante cessou as suas funções do cargo de administrador da sociedade “A..., S. A.”, no termo do mandato, em 2008, tendo sido registados novos administradores em 23.6.2009, facto que o banco era conhecedor.».

Acresce que nenhuma outra prova se produziu nos autos (e em audiência de julgamento) sobre esta matéria, que, ao fim e ao cabo, se identifica ou confunde com a do antecedente ponto da impugnação, com igual (ir)relevância.

3 - Considera ainda o embargante/recorrente que “depois da conta ter sido paga”, quando “já não era administrador”, “não lhe foi comunicado qualquer renovação do crédito ou da alteração das condições contratuais” e que “nunca, apesar das suas insistências, lhe foi comunicado o que tinha acontecido”, sendo que, nomeadamente, “deu o seu aval enquanto administrador da sociedade e que desde a altura em que renunciou ao cargo de administrador nunca mais teve qualquer contacto com a empresa e nunca mais participou em qualquer tomada de decisão”, e bem assim que “depois de a conta ter ficado totalmente saldada não lhe foi dito que o crédito voltou a ser utilizado numa altura em que já não era administrador da sociedade”, além de que “o BES soube em 2010 da sua saída do cargo de administrador e permitiu a utilização da conta caucionada sem o comunicar ao avalista”.

Conclui que deve ser acrescentado aos factos dados por assentes e alterados que «14 - Desde a cessação de funções do embargante como administrador na A..., S. A., e desde que foram registados no Registo Comercial os novos corpos sociais, não houve comunicações do B... e Banco... embargado ao embargante de renovação da conta caucionada, montantes e respetivas alterações de condições ou de novas contas», o que decorrerá dos elementos constantes dos autos [extrato da conta caucionada desde 01.01.2010 até 31.3.2015, inexistência de comunicações expedidas pelo B... ao avalista da renovação da conta caucionada, montantes e respetivas alterações de condições – cf. os documentos juntos aos autos com o requerimento da embargada expedido a 07.4.2020 e o nele referido / fls. 176 e seguintes].

Uma vez mais, o recorrente cinge-se à prova documental e ignora o contributo da prova testemunhal.

Ainda que se admita a apontada falta de comunicação da embargada ao embargante, no período em causa, também se poderá concluir que o embargante terá tido idêntica actuação perante aquela, pelo que, em derradeira análise, importará saber, sobretudo, o conteúdo da relação contratual das partes, do contrato de financiamento celebrado e as circunstâncias do preenchimento da livrança dada à execução, e se as alegadas omissões contendem com a existência e o conteúdo daquela relação, daquele contrato e da dita livrança.

Por conseguinte, a existência ou inexistência de comunicações entre as partes deveria ter, necessariamente, uma particular ou concreta relevância para a compreensão do caso sub judice, o que não se verificará, na medida em se trata de problemática aparentemente desligada do que deve ser ponderado e analisado.

4 - O recorrente diz que, aos factos dados por assentes e alterados, deve ser acrescentado: «15 - A conta com o n.º ..., referente ao financiamento a que a livrança diz respeito, com o n.º ..., foi novamente paga pela A..., S. A. no dia 01.5.2014. / 16 - Datado de 01.5.2014 A..., S. A. fez uma nova conta no B... com o n.º ..., onde A..., S. A. fez um novo empréstimo numa nova conta, com um novo n.º, conta essa da qual o recorrente não faz parte e não avalizou esta operação.»

Salvo o devido respeito por opinião em contrário, afigura-se que o recorrente infere o que não encontra adequado suporte, designadamente, que “a conta com o n.º ..., referente ao financiamento a que a livrança diz respeito, com o n.º ..., foi novamente paga pela A..., S. A. no dia 01.5.2014e que a “A...”, na mesma data, “fez uma nova conta no B... com o n.º ...” referente a um novo empréstimo”.

Continuando a ignorar o que resulta da prova testemunhal e a sua (eventual) análise crítica[12], afigura-se que o que poderá aparentar alguma discrepância ou incongruência aos olhos do embargante, terá a ver, tão somente, com as operações contabilísticas (internas) levadas a cabo pela embargada, sem que tenham ocorrido modificações a nível contratual e nos valores envolvidos, ou sequer qualquer alteração à relação contratual que vinculava o embargante.

E quanto ao documento não assinado reproduzido a fls. 180 e mencionado em II. 1. 11), supra, podendo-se concluir pela sua existência tal como aí ficou vertido, é irrecusável que o mesmo nada adianta e em nada altera o questionado contrato de financiamento destinado ao “Apoio de Tesouraria”, além do mais, porque, como bem refere o embargante, se tratou de uma “alteração ao contrato” que produziria os seus efeitos “a partir da data da sua assinatura pelas partes” - como se previa na parte final do clausulado -, assinatura que não se demonstra ter ocorrido. Daí, não releva!

Voltando aos “extractos das contas”, somos levados a concluir que os valores disponibilizados pelo Banco terão sido depositados na conta de depósitos à ordem n.º ..., da “A...”, pelo menos, na fase inicial do contrato de financiamento (cf. a “condição particular 5.” / fls. 20/177 verso[13]); as duas diferentes numerações da “conta caucionada” da “A...” - não de qualquer outra entidade - verificaram-se no final de Abril/2014 quando se alterou a denominação dessa conta de “Conta Empréstimo Tesouraria Trim” para “Conta Empréstimo-Conta Corrente” (cf., principalmente, os documentos de fls. 224 - anverso e verso), apresentando-se, ao que tudo indica, não obstante a operada renumeração e a dita alteração na denominação, como “a conta” associada a um mesmo contrato de financiamento (em vigor) e com as vicissitudes próprias duma conta-caucionada para a assinalada finalidade, como a testemunha  J... não deixou de explicitar [cf., v. g., II. 4. e), supra].

            Concluindo: o que se pretende ver acrescentado ao acervo fáctico provado não existe ou não tem qualquer importância.

            5 - Pelo que se deixou exposto, o ponto 11 dos factos provados acaba por não ter qualquer importância/influência/validade para o litígio, ainda que o aí consignado seja conforme à realidade documentada nos autos, sem prejuízo, é certo, do aludido esclarecimento que decorre da parte final do documento de fls. 180.

            g) Relativamente à prova documental, afigura-se que a Mm.ª Juíza a quo deu à mesma a devida relevância, pese embora a inadequada/errada “metodologia” indicada em II. 3., supra.

6. Como se adiantou [cf. II. 4. e), ab initio, supra], a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, elaborada pela Mm.º Juíza a quo, afigura-se correta.

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal e documental apenas podemos dizer que a factualidade dada como provada (e não provada) respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[14], a Mm.ª Juíza não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[15]

            A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            Improcede, assim, a pretensão do apelante de ver modificada a decisão de facto.

7. A questão do recurso não é isenta de dificuldades.

No acórdão proferido nos autos, a 24.9.2019, considerou-se que importava apurar, nomeadamente, se: «a conta caucionada ficou totalmente saldada em 2010 e se, depois disso - quando o recorrente já não era administrador - não lhe foi comunicado qualquer renovação do crédito ou da alteração das condições contratuais; o recorrente deu o seu aval enquanto administrador da sociedade e que desde a altura em que renunciou ao cargo de administrador nunca mais teve qualquer contacto com a empresa e nunca mais participou em qualquer tomada de decisão; o B... soube em 2010 da sua saída do cargo de administrador e permitiu a utilização da conta caucionada sem o comunicar ao recorrente/avalista

Ponderou-se, também, que perante as especificidades do caso, não se podia afastar a seguinte “interrogação” inserida nas “alegações” de recurso: «pode surgir, para quem não interveio na reutilização de um crédito, totalmente pago, uma obrigação nova que o vincule com efeitos para o futuro e sem limite de prazo se os intervenientes nesta reutilização sabiam positivamente que não existia causa nenhuma que justificasse esta vinculação e que se aproveitaram para o efeito de uma posição jurídico-formal antiga e ilegitimamente mantida»?

O embargante/recorrente não logrou ver alterada a decisão sobre a matéria de facto e, como se vê, não demonstrou a factualidade alegada que poderia enquadrar tais hipóteses.

8. Escreveu-se na decisão sob censura, nomeadamente:

- «(...) quem assina uma livrança na qualidade de respetivo subscritor obriga-se a pagá-la ao seu portador na data do seu vencimento garantindo a execução ou cumprimento da promessa de pagamento que a mesma contém (artigos 75º, 78º e 28º da LULL). (...) Nos termos do artigo 32º da LULL “o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”

- «(...) In casu, os factos assentes evidenciam que a livrança dada à execução não se encontrava completamente preenchida quando foi entregue à exequente. Porém, apurou-se que a livrança em causa foi entregue à exequente pela sociedade executada, encontrando-se subscrita pelos avalistas como garantia do bom cumprimento do contrato de financiamento descrito nos Pontos 4) e 6) dos Factos provados. / Acresce que nos termos do acordo celebrado, a exequente ficou autorizada a completar o preenchimento da livrança em causa, preenchimento esse que, efectivamente, completou.»

 - «(...) a assinatura em branco faz presumir a vontade de fazer seu o texto que na livrança vier a ser inscrito, presunção que beneficia o apresentante do título, cabendo ao demandado o ónus da prova de que o preenchimento do título não foi feito em conformidade com o ajustado (...), ou seja, o ónus da prova do preenchimento abusivo recai sobre o executado/embargante por se tratar de facto impeditivo do direito do exequente (artigo 342º, n.º 2, do CC; Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) de 14.5.1996, publicado no DR II Série, n.º 154, de 11/7/1996, a pág. 9345 a 9347).»

- «(...) No caso, a factualidade apurada autoriza a conclusão de que a livrança foi preenchida de harmonia com o acordado em face do teor do contrato descrito no Ponto 4) e 6) dos Factos provados e cláusula 19º dela integrante, que consubstancia a convenção de preenchimento, e encontra ainda correspondência nos termos da relação fundamental que determinou a sua subscrição.[16] Ou seja, a exequente colocou na livrança exequenda o valor correspondente às obrigações em dívida, assim, consequentemente, não pode reputar-se de abusivo tal preenchimento.»

- «(...) Ademais, contrariamente ao sustentado pelo embargante, o contrato previu a possibilidade de renovação do contrato ou a reutilização do crédito, sem necessidade de interpelação ou comunicação ao executado/embargante, e sem condicionar tal renovação a qualquer requisito - Cláusula 5ª das condições gerais do contrato.»[17]

- «Acresce (...) que analisando o contrato constatamos ainda que a livrança serviu de garantia ao crédito inicial e às suas reutilizações/renovações - cláusula 17ª sob a epígrafe “garantias/Disposições Comuns”. / Todas estas cláusulas constam do referido contrato, que foi assinado pelo embargante, não constando em nenhum lugar que este apenas o assina em virtude da sua qualidade de administrador da sociedade subscritora e enquanto mantiver essa qualidade.»

- «(...) o facto dado como provado de que executado/embargante ter renunciado ao cargo de administrador em 2008, registada em 2009, não o desresponsabiliza da sua obrigação de avalista, uma vez que o aval é uma garantia pessoal desassociada da qualidade de administrador. / Com efeito, neste conspecto também não nos podemos olvidar o teor do AUJ de 11.12.2012, segundo o qual “Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada.” / E, neste particular, conspecto nem sequer se provou que o avalista/embargante tenha dado conhecimento de tal facto ao embargado ou que este tivesse esse conhecimento e continuado a agir como nada fosse. Consequentemente, inexiste matéria de facto subsumível ao instituto do abuso do direito – art.º 334º do CC.»

9. A descrita argumentação e o decidido não merece censura.

10. Ao contrário do sustentado pelo recorrente, afigura-se que não se poderá concluir que a embargada veio a utilizar “as garantias, aval dado a uma livrança, de um empréstimo que foi pago na totalidade, que transita de uma conta para outra”, ou que “com base no aval prestado agiu com abuso do direito por ter violado o princípio da confiança, agido em ofensa aos bons costumes e procedido de má fé”.[18]

A resposta encontra na 1ª instância, que se confirma, cremos que respeita o desiderato duma aplicação do direito normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto[19], não se indiciando que a embargada tenha actuado desrespeitando os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito (art.º 334º do CC); exerceu adequadamente um direito que lhe assistia por força das obrigações do contrato de financiamento e das garantias correspondentes.

Não se demonstrando que a conta caucionada “ficou totalmente saldada em 2010” e que “o B... soube em 2010 positivamente da renúncia do executado/embargante do cargo de administrador, mas permitiu a utilização da mesma conta sem lho comunicar”, caem dois dos fundamentos aptos a sustentar que o banco exequente/embargado, ao apresentar à execução livrança avalizada em 21.6.2007 e com vencimento em 30.10.2015, dada em garantia do correspondente contrato de financiamento, excedera “manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (art.º 334º do CC).[20]

11. O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.° 4/2013 de 11.12.2012 (Revista 5903/09.4TVLSB.L1.L1.S1)[21], fixou a jurisprudência no sentido de que “tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada”.[22]

Não ocorrendo uma válida desvinculação do avalista administrador que deixou de integrar o Conselho de Administração da sociedade (na situação em análise, nem se alegou e demonstrou pacto nesse sentido), seria de aplicar, com as devidas adaptações, a dita jurisprudência uniformizada.

Ademais, nos casos em que é defensável a desvinculação unilateral do aval[23], o ex-sócio/administrador apenas deixará de responder pelas dívidas ulteriores à respectiva desvinculação, sendo que a data relevante para o efeito corresponderá à data de recepção por parte do credor da declaração a solicitar a referida desvinculação (art.º 224° do CC), continuando, deste modo, a garantir a restituição das quantias correspondentes a financiamentos já recebidos pela sociedade naquela data.[24]

12. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo embargante/apelante.


23.11.2021


[1] Instaurada em 28.12.2015.
[2] Cf. o documento reproduzido a fls. 142 do processo físico.

[3] Juntou, ao abrigo do art.º 651º do CPC, parecer emitido pelo Exm.º Senhor Professor Doutor HEINRICH EWALD HÖRSTER.
[4] Vide, entre outros, A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 4ª edição, Almedina, pág. 149 e “nota 242” e os acórdãos da RC de 21.9.1993, in CJ, XVIII, 4, 37 e do STJ de 01.02.1995 e 22.4.1997, in CJ-STJ, III, 1, 264 e V, 2, 60, respectivamente.
   Cf., ainda, o acórdão do STJ de 07.11.2019-processo 6414/16.7T8VIS.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[5] Como consta, por exemplo, das “notas 4 a 7”, supra.

[6] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[7] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[8] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[9] Que reza o seguinte: «As regras dos artigos anteriores invertem-se, quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine
[10] Preceituando: «O registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico

[11] Dispondo, o primeiro normativo, que «Estão sujeitos a registo os seguintes factos relativos às sociedades comerciais e sociedades civis sob forma comercial: (...) A designação e cessação de funções, por qualquer causa que não seja o decurso do tempo, dos membros dos órgãos de administração e de fiscalização das sociedades, bem como do secretário da sociedade; (...)» e, o segundo, nomeadamente, que «Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo (n.º 1)» e que «O disposto no presente artigo não prejudica o estabelecido no Código das Sociedades Comerciais e na legislação aplicável às sociedades anónimas europeias (n.º 4).»
[12] Cf., de entre vários, o acórdão da RP de 17.3.2014-processo 3785/11.5TBVFR.P1, relatado pelo aqui 1º adjunto, publicado no “site” da dgsi.
[13] Cf. “nota 4”, ab initio, supra.
[14] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[15] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[16] Cf., v. g., “nota 4”, supra.
[17] Idem.

[18] Sendo bem evidentes as diferenças relativamente ao caso analisado pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 12.11.2013-processo 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1 [com o seguinte sumário: «(...) IV - Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o banco que acciona uma livrança, que os executados avalizaram em branco, oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na altura do afastamento (...), a conta caucionada de que a sociedade era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente (...), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito (...)./ V - Perante estes dados de facto, verifica-se que os executados podiam fundadamente confiar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o banco não accionaria o aval que prestaram: é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelo exequente, na exacta medida em que trai a confiança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa objectivamente reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo.»], publicado no “site” da dgsi.
[19] Vide António Pinto Monteiro, Interpretação e o protagonismo da doutrina, in RLJ, 145º, pág. 71.
[20] Veja-se que no Parecer junto aos autos também se considerou que se provado, nomeadamente, que a “conta caucionada ficou totalmente saldada em 2010” e que “o BES soube em 2010 positivamente da renúncia do executado/embargante do cargo de administrador mas permitiu a utilização da mesma conta sem lho comunicar”, então, sim, poder-se-ia concluir que “o executante/embargado agiu – como sucessor do BES – não só em abuso do direito mas manifestamente de má fé e em ofensa dos bons costumes.” (cf. pág. 16 do dito Parecer)
[21] Publicado no DR, 1ª Série, de 21.01.2013 e no “site” da dgsi.

[22] Em contraposição estavam os acórdãos do STJ de 02.12.2008-processo 08A3600, como acórdão fundamento e de 10.5.2011-processo 5903/09.34TVLSB.L1.S1, como acórdão recorrido, publicados no “site” da dgsi.

[23] Parte significativa da doutrina e alguma jurisprudência considera razoável admitir em certas circunstâncias a possibilidade de desvinculação unilateral do ex-sócio ao acordo de preenchimento (uma vez que não faz sentido que fique eternamente vinculado a um aval que prestou num determinado momento da vida profissional), por denúncia, sendo que esta é uma faculdade ´ad libitum`, podendo ocorrer por razões de oportunidade ou de provado interesse do contraente que a declara - cf., por exemplo, o acórdão da RP de 27.02.2014-processo n.º 3871/12.4TBVFR-A.P1, publicado no “site” da dgsi.

[24] Vide, designadamente, Carolina Cunha, Letras e Livranças. Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime., Coimbra, Almedina, 2012, págs. 605 a 607 e 613; Manuel Januário Gomes, O (in) sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio de sociedade para garantia de crédito bancário revolving, Cadernos de Direito Privado, n.° 43, Julho-Setembro 2013, págs. 34 e seguintes e 40 e Maria Cristina CoutoA Desvinculação do Aval por parte de um Ex-Sócio, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Privatísticas, FDUP, Novembro de 2016/«sigarra.up.pt›fdup›».

   Sobre a matéria, ver ainda, por exemplo, o acórdão da RC de 11.02.2020-processo 360/18.7T8PBL-A.C1, do mesmo colectivo, publicado no “site” da dgsi.