Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
377/07.7TACNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: CRIME DE INJÚRIAS
ELEMENTO SUBJECTIVO
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 13º,14º E 181º N.º 1 DO CÓDIGO PENAL
Sumário: 1. O crime de injúrias, como crime de mera actividade e doloso que é, tem como elementos constitutivos, objectivamente, a acção adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à honra ou consideração de outrem, e, subjectivamente, o dolo, constituído pelo conhecimento dos elementos objectivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los - cfr. art. 13º e 14º do CP.
2. Quanto ao elemento subjectivo deste tipo de crime, cimentou-se agora a orientação de que basta o dolo genérico, em qualquer uma das suas formas (cfr. art. 14.º do CP), para integrar o elemento subjectivo da infracção, i. é., não se exige especial propósito de ofender (animus injuriandi vel diffamandi), bastando a consciência por parte do agente de que a sua conduta é susceptível de produzir ofensa da honra e considerações alheias. Não é, portanto, exigível qualquer dolo dito específico ou especial.
3. O dolo, ou elemento volitivo da acção desvalorativa e do acto injusto, não se evidencia ou manifesta senão através dos actos exteriores ou factos demonstrativos de que o agente pretendeu e quis com a execução de uma determinada factologia atingir um fim ou resultado lesivo da honra e consideração de alguém.
4. Não se torna necessário que o agente apregoe ou deixe anunciada a sua vontade de ofender alguém, mas tão só que dos factos que praticou resultou, objectivamente, que subjectivamente quem agiu do modo evidenciado não poderia, de acordo com padrões de normalidade e à compreensão da maioria das pessoas, querer outra coisa que não doestar aquela concreta pessoa.
Decisão Texto Integral: Acordam, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

I. – Relatório.

Em dissensão com o julgado prolatado no processo supra referenciado em que, na procedência da acusação particular – cfr. fls. 42 e 43 – acompanhada pelo Ministério Público – cfr. fls. 48 – e do pedido de indemnização cível – cfr. fls. 44 a 46 – condenou o arguido J…, com os sinais constantes de fls. 48:

“como autor material de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º n.º 1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €: 5,00;

como  autor material de um crime continuado de difamação, p. e p. pelo art.º 180º n.º 1 e 30º do Código Penal, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de €: 5,00”; e em cúmulo jurídico das penas aplicadas na pena única de “160 dias de multa, à taxa diária de €:5,00, o que perfaz €: 800,00”; e no julgamento parcialmente “ [d]o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente contra o arguido e, em consequência, condená-la no pagamento à assistente da quantia de  €: 700,00 (setecentos euros)”, absolvendo-o em tudo quanto excedesse a condenação, recorre o arguido tendo despedido a motivação com o quadro conclusivo que a seguir se deixa transcrito:

“I - foram incorrectamente julgados os pontos 1.1. a) b) c) e) f) e h) da douta sentença;

II – o arguido não confessou que estivera duas vezes em casa das testemunhas M... e I..., conforme resulta do seu depoimento.

III – Não resultou suficientemente provado que o arguido tenha proferido as expressões difamatórias de que vinha acusado, dado que as discrepâncias verificadas entre os depoimentos das testemunhas M... e I... são de tal modo graves, bem como não são testemunhas isentas, factos esses suficientes para colocarem em causa todo o seu depoimento.

IV – Não resultou provado em julgamento que o arguido tivesse consciência da genérica perigosidade da lesão do direito à honra no momento em que enviou a mensagem, razão pelo qual não poderá ser dado como provada a prática pelo arguido do crime de injúria de que vinha acusado.

V – Da prova produzida em julgamento, designadamente do testemunho do arguido e das testemunhas M... e I..., e em relação a ambos os crimes, resultou no mínimo uma dúvida razoável, tendo assim sido violado o principio de presunção de inocência consagrado constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

VI – deverá assim e de acordo com as antecedentes conclusões, ser a douta sentença proferida pelo tribunal a quo ser substituída por outra que absolva o arguido dos crimes pelos quais foi condenado”.

Na resposta que produziu a assistente C... propugna pela manutenção do julgado para o que dispõe a sequente síntese conclusiva.

“1. - A douta sentença recorrida julgou convenientemente os pontos 1.1 a)b)c)e) e h).

2. - A confissão do Arguido e a demais prova produzida nos Autos foi livremente apreciada pelo tribunal, do que resultou a decisão condenatória proferida.

3· - Ficou suficientemente provado e demonstrado nos Autos que os Arguido praticou os factos pelos quais veio acusado.

4· - As testemunhas I... e M..., pese embora tenham instaurado um processo crime contra o Arguido pela pratica de outros factos ocorridos noutro contexto de tempo e lugar, prestaram o seu depoimento com isenção e imparcialidade, tendo prestado um depoimento consistente e credível que não deixou ao tribunal a quo quaisquer duvidas.

5· - As divergências apontadas no recurso interposto resultam da normal subjectividade inerente a cada pessoa e do decurso de tempo ocorrido que apaga alguns traços da memória.

6. - O Arguido teve e tem plena consciência da gravidade das expressões por si proferidas no sms que enviou à Assistente, sendo sua deliberada intenção ofender a honra e consideração da assistente, objectivo este que logrou alcançar. Facto este por demais evidente a quem quer que seja e inteiramente perceptível ao tribunal, sendo a justificação dada pelo Arguido sobre esta matéria um mal remediado “tapar de olhos”.

7. - Não pairou no espírito do tribunal quaisquer duvidas quanto à pratica dos factos pelo Arguido, pelo que como tal foi condenado, pelo que bem decidiu e bem julgou o douto tribunal a quo ao proferir sentença final condenatória, não tendo existido qualquer violação do principio “in dúbio pró reo” ·

8. - Sentença final condenatória que deverá este tribunal manter, assim se fazendo a esperada JUSTIÇA.

Não deixou o Ministério Público, junto do tribunal a quo, de responder tendo a posição ficado extractada na síntese que a seguir se transcreve. 

“1) O recurso da matéria de facto não visa a reapreciação de toda a prova produzida, como se de um novo julgamento se tratasse, mas apenas a detecção ou correcção de particulares erros de julgamento concretamente especificados pelo recorrente;

2) Nem tem como objectivo sindicar a convicção do tribunal recorrido, enquanto juízo racional formado pela credibilidade ou não das testemunhas, ou pela maior credibilidade de umas em relação a outras, colhida da imediação e oralidade, que nenhuma reapreciação subsequente pode questionar.

3) A livre apreciação da prova visa precisamente garantir essa independência decisória, legitimada pela fundamentação da decisão.

4) Só se a convicção do julgador se sustenta em provas proibidas ou as conclusões que extrai são contrárias às regras da experiência comum é possível questionar o sentido da decisão, e nenhuma dessas circunstâncias se verificou no caso dos autos.

5) Ainda que o ponto 1.1.c) da matéria de facto não possa dar-se como provado, nada se altera no sentido da decisão recorrida.

6) O princípio in dubio por reo constitui um princípio de prova e não um critério de interpretação da lei, que só actua quando o tribunal não logrou formar a sua convicção e, perante o non liquet, a decisão terá de ser favorável ao arguido.

7) Tendo o Tribunal, na sua decisão, demonstrado inequivocamente qual foi a sua convicção, não há que convocar o princípio in dubio pro reo.

8) As expressões utilizadas pelo arguido no SMS enviado à assistente são perfeitamente aptas a lesar a honra e a consideração da visada, pois no contexto ou meio social e cultural em referência, “andar pelos pinhais” é entendido como prática de prostituição.

9) Para a integração do tipo legal objectivo basta a mera insinuação, não sendo necessário a imputação directa de factos, enquanto o tipo subjectivo se preenche com a consciência de que as expressões utilizadas são aptas à lesão do bem jurídico protegido pela norma.

1O) Resulta da prova produzida, em conjugação com as regras da experiência que o arguido não pode deixar de ter tido essa consciência e essa vontade.”

Nesta instância, o distinto Procurador-geral Adjunto – cfr. fls. 234 e 235 – sufraga a posição advogada pelo Ministério Público na comarca.

Estando sedimentada a ideia de que o tema decidendum do recurso deve ser delimitado pelas conclusões do recurso[1] têm-se como pertinentes para a apreciação da pretensão do recorrente as sequentes questões:

- Reexame da decisão da matéria de facto.  

- Violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo.

II. – Fundamentação.

II.A. – De facto.

Para a decisão que prolatou escorou-se o tribunal a quo na facticidade que a seguir se deixa extractada.

“a) - No dia 23 ou 24 de Abril de 2007, cerca das 17,30 horas, no interior da residência de I..., sita no lugar de Arrancada, comarca de Cantanhede arguido, referindo-se à assistente disse perante I... e marido M... ... as seguintes expressões: “Ela é urna desequilibrada’’; “É uma pessoa com um passado que não devia ter tido” “uma vaca que anda para aí”.

b) - No dia 17 de Maio de 2007, cerca das 17:30, na casa dos referidos I... e marido, M... ..., enquanto com estes conversava, o arguido afirmou de novo, por diversas vezes e de forma insistente, referindo-se à assistente, o seguinte: “A C...é uma desequilibrada” – “Vocês não sabem quem é a C…, mas ela sempre foi uma miséria” – “ É urna vaca que anda para aí’ – “Ela vai estar lá dentro {de casa) e vai ser só homens a entrar e a sair”. 

c) - Em ambas as ocasiões, referidas em a) e em b), o arguido dirigiu-se a casa das testemunhas I... e M... a pedido da referida I..., a fim de conversarem acerca da relação entre o arguido e a assistente. *

d) - O arguido no dia 3 de Agosto de 2007, pelas 16:27:25 horas, enviou através do seu telemóvel n.º 351965385588 para o telemóvel da denunciante com o n.º 96.8951572, uma mensagem com o seguinte teor: “Não me referi a nada disso mas sei que e um facto que vai ser consumado porque conhesote bem quanto a mim pois tenho varías companhias para pasiar e não ando escondido de ningem pelos pinhaís se quiseres pasiar também comigo so dises quando mas agora e preciso que te deixem”.

e) - Ao agir do modo descrito, o arguido quis insultar e denegrir a assistente, como efectivamente sucedeu.

f) - O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as expressões não eram verdadeiras e que a suas condutas eram proibidas e punidas por lei

g) - A Assistente e o arguido viveram em união de facto durante cerca de seis anos, tendo terminado tal relação em 2007, da qual nasceu um filho, menor.

DO pedido de indemnização civil:

h) - A assistente sentiu consternação e ofensa.

i) - i) A assistente pagou €: 192,00 de taxa de justiça nos presentes autos.

i) - A assistente viu-se ainda obrigada a efectuar diversas deslocações a Cantanhede ao tribuna] e á sua mandatária por força do presente processo, à qual terá de pagar honorários circunstâncias pessoais do arguido:

j) - O arguido não tem antecedentes criminais.

M) - Trabalha por conta própria na construção civil e aufere cerca de €: 500,00 por mês de vencimento.

Vivem em casa própria.

Tem dois filhos, que se encontram a viver com as respectivas mães, e está obrigado a pagar a cada um, de alimentos, a quantia de €:100,00

É dono de um veículo de marca Toyota, modelo Corolla, com 3 anos e de um veículo de marca Citroen, modelo AX, com mais de 10 anos.     

1.2. Factos não provados:

Com relevo para a decisão da causa, nenhum facto se provou para além dos que nessa qualidade se descreveram.

Não se provou designadamente que:

a assistente há já algum tempo que era vitima de injurias e maus tratos por parte do arguido, situação esta que vivida entre portas e que se veio a tomar publica com a separação do casal.

O arguido é pessoa de muito difícil trato e dotado de um temperamento irascível e altamente problemático, que tudo tem feito para prejudicar, perseguir e maltratar a assistente e todos quantos com ela se relacionam e protegem das suas investidas. 

A assistente é e sempre foi pessoa muito seria e honrada, sendo muito considerada meio onde vive e por todos quantos cora ela privam, sentindo grande mágoa por ter conhecido o arguido e sofrido tudo quanto ele a fez e faz sofrer;

a assistente passou a ver os seus dias ensombrados e a sua tranquilidade perdida, tal o grau de incomodo causado pelo Arguido.

a assistente gastou €: 70,00 em deslocações.

os honorários da advogada custarão quantia não inferior a €: 750,00.

a assistente trabalha diariamente em Cantanhede

            1.3. Motivação:

            Para dar como provados os factos supra descritos, o Tribunal valorou diversos elementos probatórios, devidamente correlacionados, concretamente e desde logo, as declarações prestadas em audiência de julgamento pela assistente, que de modo credível e particularmente impressivo, em virtude da emotividade com que foi prestado, relatou em Tribunal as circunstâncias em que recebeu a mensagem de telemóvel do arguido. Assim, disse que antes de ter recebido a mensagem havia recebido um telefonema do arguido que, por engano, foi atendido por um primo da assistente, que com esta se encontrava numa festa, tendo de seguida passado o telefone à assistente, a quem o arguido fez referência ao facto do telefone ter sido atendido por um homem e desligou. A assistente enviou então uma mensagem ao arguido dizendo-lhe que quem atendera o telefone havia sido o primo, e não um eventual namorado dela, tendo o arguido respondido com a mensagem em causa. Reconheceu o número de telefone do arguido como tendo sido o emissor da mensagem.

            O arguido, de resto, reconheceu ter enviado à arguida a mensagem de telemóvel em causa nos autos, dizendo no entanto que aquilo que pretendia dizer era tão só que ele andava a passear sem se esconder de ninguém, não tendo querido insinuar o que quer que fosse. 

            Decisivos para fundar a convicção do Tribunal acerca dos factos provados foram os depoimentos das testemunhas I... e M..., que se julgaram credíveis, quer pelo modo como foram prestados, quer pela sua coerência. Relataram estas testemunhas as razões pelas quais solicitaram ao arguido M... que os visitasse, para com ele conversarem a respeito da relação deste com a assistente e o modo como este à assistente se referiu durante a conversa que mantiveram, tendo confirmado que o arguido proferiu as expressões constantes nos factos provados. Mais explicaram a segunda visita do arguido e mais uma vez reproduziram as expressões proferidas pelo arguido em relação à assistente. Há que notar que estes depoimentos foram entre si coincidentes nos aspectos mais relevantes sendo que eventuais divergências entre eles se prendem com pormenores e são facilmente explicáveis pelo decurso do tempo e pelo próprio funcionamento dos mecanismos de memória.

            Disseram ainda estas testemunhas que estavam presentes na festa em que a assistente recebeu a mensagem de telemóvel e prestaram um depoimento coincidente com esta no que concerne ao contexto da mensagem.

            O arguido, por sua vez, reconheceu ter estado em casa das testemunhas I... e M... nos dias em causa, negando contudo ter proferido as expressões que lhe são imputadas.

            Acresce que a assistente C…, a quem as referidas testemunhas relataram as conversas mantidas com o arguido, confirmou as circunstâncias em que estas ocorreram e as expressões que o arguido proferiu.

            Tais depoimentos, correlacionados, e considerando a credibilidade que se lhes reconheceu, afastaram a credibilidade que ao depoimento do arguido se pudesse reconhecer.

            As testemunhas F... e G..., filhos da assistente, para além daquilo que a mãe e as testemunhas I... e M... lhes contaram, nada sabem dos factos, já que a eles não assistiram mas declararam ambos convincentemente ( e sobretudo a testemunha José) que a mãe ficou muito magoada com as expressões e a mensagem em causa.

Valoraram-se igualmente as regras da experiência e do normal acontecer quanto ao sofrimento da arguida perante as expressões proferidas.

            Quanto às circunstâncias pessoais e económicas do arguido considerou-se o teor do depoimento deste.
                        No que respeita aos antecedentes criminais, valorou-se o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.
                        Há que notar que as testemunhas arroladas pelo arguido que foram inquiridas abonaram do carácter deste, considerando-o incapaz de praticar os factos em causa nos autos.

            Quanto aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que, nessa qualidade, se descreveram.

            Muitos dos factos constantes do pedido de indemnização civil e da contestação ao pedido de indemnização civil não foram dados como provados nem como não provados por se tratar de matéria conclusiva, ou de Direito ou por se ter entendido que eram manifestamente irrelevantes para a decisão da causa, considerando a factualidade respeitantes aos crimes de que o arguido vem acusado e as conhecidas limitações estabelecidas ao pedido de indemnização civil deduzido em processo penal. 

II.B. – De Direito.

II.B.1. – Reexame da decisão da matéria de facto.  

Antes de procedermos à análise especificada dos factos que o recorrente reputa haverem sido mal julgados convém reter alguns ensinamentos rectores do modo de apreciar e valorar a prova com que se pretende dar como “provado” um determinado enunciado fáctico.

Michelle Taruffo opera uma distinção entre dois modelos fundamentais de prova: a prova como “argomento persuasivo”, directo a convencer o órgão que julga os factos quanto à oportunidade de assumir como atendível uma certa versão dos factos relevantes par a decisão; e a prova comostrumento dimonstrativo” destinado ao conhecimento “científico” da verdade dos factos relevantes para a decisão” (tradução nossa). [[2]/[3]]

Desta distinção é possível extrair duas constatações: a primeira que estabelece um modelo de prova directamente vinculado à participação da parte na actividade jurisdicional, em face à sua garantia de poder influenciar a formação do convencimento judicial; do segundo modelo destacado pode ser identificada a tendência actual de tomar o órgão judicante cada vez mais activo na busca do esclarecimento necessário acerca dos factos relevantes à decisão, uma acepção, vale dizer, claramente vinculada à noção de procedimento probatório.    

Considerando que os factos são acontecimentos que, no instante imediatamente posterior à sua ocorrência, deixam de existir, dado que depois do acontecer o que resta são apenas dados, comprovações, registos desta sua ocorrência, que irão formar, na grande maioria das vezes, toda a prova possível de ser produzida, ou seja, aquilo que chega ao conhecimento do juiz não é o facto em si, mas um registo do seu acontecimento, que se apresenta – quase sempre – contaminado por deformações oriundas dos sentidos, dos valores e de processos psíquicos daqueles que com ele têm contacto. “Afirmar que un enunciado fáctico está probado, ou que constituye una prueba, significa que ha sido verificada, que su verdad ha sido comprobada; de manera que la expresión “probar un hecho” no es mas que una elipsis, una forma de decir probar la hipótesis de que los hechos han sucedido”.

 Na lição de Jürgen Habermas, para quem a “verdade” não se descobre, mas que se constrói através da argumentação, a verdade sobre um facto é um conceito dialéctico, construído com base na argumentação desenvolvida pelos sujeitos do processo. A perspectiva actual da verdade, não se encontra no objecto, nem mesmo no sujeito, mas naquilo que os sujeitos produzem a partir de certos elementos comuns (linguagem). Agora, o sujeito deve interagir com os demais sujeitos, a fim de atingir um consenso sobre o que possa significar conhecer o objecto e dominar o objecto; não é mais a subjectividade que importa, mas sim a intersubjectividade.

Nas palavras de Enrico Altavilla, a realidade tem sempre, portanto, um valor subjectivo, e por conseguinte, relativo, porque é uma projecção do mundo exterior que chega ao nosso eu, deformado por nossos sentidos e por todos os processos psíquicos. Para Marinoni e Arenhart, a reconstrução de um fato ocorrido no passado sempre vem influenciada por aspectos subjectivos das pessoas que assistiram ao mesmo, ou ainda do juiz, que há de valorar a evidência concreta. Há sempre uma interpretação formulada sobre tal facto – ou sobre a prova directa dele derivada – que altera o seu real conteúdo, acrescentando-lhe um toque pessoal que distorce a realidade. Mais do que isso, o julgador (ou o historiador, ou, enfim, quem quer que deva tentar reconstruir fatos do passado) jamais poderá excluir, terminantemente, a possibilidade de que as coisas possam ter-se passado de outra forma.

Na busca da verdade, e em passo aligeirado, os autores soem erigir duas ou três teorias para encontrar a lograr uma compatibilidade cognitiva entre a enunciação fáctica e a realidade: [[4]]

“a) Teorias semânticas de la verdad como correspondência: la verdad de un enunciado consiste en su adecuación a la realidad (o estado de cosas) a que se refiere, en su correspondencia com los hechos;

b) Teorias sintácticas de la verdad como coherencia: la verdad de un enunciado consiste en su pertenencia a un conjunto coherente de de enunciados.

c) Teorias pragmatistas de la verdad: la verdad de un enunciado se concibe en términos de “aceptabilidad justificada”. Un enunciado es verdadero si está justificado creer que es verdadero porque sirve a algún fin (versión “instrumentalista”) o porque es aceptado(versión “consensualista”). En suma, un enunciado no está justificado porque sea verdadero, sino que es verdadero porque está justificado; o, más exactamente, porque el critério para aceptarIo como verdadero (el critério de verificación) está justificado”.

Para Nicolas Rescher, partidário da teoria da coerência “la “verdad genuína” sólo está garantizada por la coherencia ideal (esta es, por la coherencia óptima com una base de datos perfecta que no poseemos, y no con aquella outra algo menos que óptima a la que efectivamente podemos acceder), no tenemos seguridad incondicional acerca de la corrección efectiva de nuestras investigaciones guiadas por el objetivo de la coherencia; tampoco tenemos una garantia sin reservas de que essas investigaciones nos proporcionen “Ia verdad genuína” que perseguimos cuando nos ocupamos de investigaciones empíricas. (…)

Nuestro “conocimiento” en tales casos no es más que nuestra mejor aproximación a la verdad de las cosas. Ya que no podemos ocupar el punto de vista del ojo de Dios, sólo tenemos acceso a los hechos del mundo a través de una investigaci6n (potencialmente errada) de la realidad. (…)

En la vida real, siempre por debajo de lo ideal, la verdad supuesta queda ciertamente separada de la verdad indubitable por una brecha evidencial. Pero, dada una criteriologia adecuada de la verdad, esta brecha se cierra en crrcunstancias ideales. El requisito de continuidad refleja el hecho de que la investigación persigue la verdad, el que la empresa cientifica tiene como objetivo y aspiración final alcanzar la verdad genuína.

EI hecho de que lo que consigamos en nuestra práctica del coherentismo cientlfico no sea verdad genuína, sino unicamente nuestra mejor aproximación a ella, refleja la circunstancia de que debemos afanarnos en la búsqueda deI conocimiento rodeados de las ásperas realidades y complejidades de un mundo imperfecto. Hemos de ser conscientes siempre de la brecha entre lo real y lo ideal; también cuando debatimos la verdad de nuestras tesis cientlficas. [[5]]

Por diversas razões, que não virão ao caso explanar, somos partidários da teoria cognoscitivista da correspondência advogada pela autora supra citada [[6]] dado ser, em nosso juízo, aquela que melhor permite uma endógena operatividade cognoscente de adequação e coerência na aferição da realidade ao enunciado fáctico que emerge da descrição contida numa exposição factual que ao julgador é fornecida para apreciar e valorar.

O julgador deve, pois, mais do que esgrelhar na consciência das testemunhas procurar encontrar uma correspondência entre aquilo que lhe foi dado para provar – enunciado fáctico – para dessumir a solução de direito do caso e a realidade – verdade – que poderá estar subjacente a esse enunciado, sendo certo que a “verdade” que encontrará mais não será que a melhor aproximação possível com a realidade ocorrida no mundo dos factos.

O julgador deve, por imposição legal, justificar ou tentar demonstrar, argumentando, que a solução encontrada é aquela que mais se aproxima da realidade ocorrida. Mas já não será permitido, fora de um processo (endoprocessual) argumentativo coerente e adequado, justificar opções probatórias assumidas resultantes de impressões e convicções intimistas ou preconcebidas. Se não é vedado, ante é inevitável e se constitui como requisito infranqueável, que o julgador, no seu múnus de apreciação da prova, transporte para a sua actividade cognitiva o cabedal de conhecimentos e a especial mundividência de que se encontra armado e que constituem o cadinho da sua experiência técnica e do arsenal jurídico imprescindível ao acto de julgar, já não será, no entanto, ajustado que julgue segundo impressões ou juízos particulares ao arrepio ou contra aquilo que os elementos de prova evidenciam. Não pode o julgador, porque lhe “pareceu” ou ficou com a impressão que determinado grupo de testemunhas orientou a prova de determinada maneira, julgar contra o que objectivamente foi dito e confirmado por esse conjunto de pessoas sob pena de abjurar o princípio da livre apreciação da prova (motivada). O julgador não pode deixar de se movimentar no âmbito da actividade probatória que lhe é dado experienciar e conhecer devendo do que dela resulta extrair a solução de facto que melhor corresponde à realidade trazida ao seu conhecimento. Ao perspectivar, mediar ou avaliar a objectividade dos elementos de prova com os tons do seu subjectivismo o julgador introduz factores de perturbação no sentido de previsibilidade que uma actividade probatória cingida induz e acrisola em qualquer dos destinatários da decisão (motivada) que lhe incumbe proferir e que eles irão receber.

As realidades com que se configura um suposto de facto legal podem ser decompostas em três tipos: factos externos, factos internos ou psicológicos e conceitos que hão-de ser preenchidos pelo juiz mediante juízos de valor. Os factos externos são acontecimentos que se produzem na realidade sensível, seja com intervenção humana seja sem a intervenção humana.

A prova que se produz num procedimento judicial destina-se a justificar, confirmar ou infirmar, um enunciado assertivo que havia sido formulado com base numa produção de prova de “contexto de descobrimento”. [[7]]

Destinando-se a prova a dar surgimento ou a operar uma representação histórica de um facto passado as reproduções que por intermédio dos distintos meios de prova – testemunhais, de percepção directa do julgador, v.g. Inspecção judicial, periciais ou outras – se possam operar contém sempre um vector de subjectivismo ou de apreciação pessoalística inerente às particulares impressões com que o ser humano é capaz de enquadrar um determinado fenómeno natural ou humano. É inevitável, pois, que na descrição de um acontecimento o que seja possível descrever não passe a maior parte das vezes de fragmentos ou percepções impressivas que se adquirem e firmam na mente de um determinado individuo e donde, por dedução, se sacam outros elementos que, no raciocínio desse individuo deverão completar o quadro ou a fita diacrónica e sequencial de factos reportados á situação intelectualmente representada, transformando peças soltas num mosaico a que se quis dar coerência lógica interna e que passa a constituir e a vigorar como explicação pessoal (necessária), para o sujeito “criador” como a sua “realidade” ou se quisermos a sua “certeza” de como ocorreu efectivamente o acontecido.   

A operação intelectual para fixação dos enunciados fácticos em que os pressupostos evidenciadores da ocorrência de um determinado acontecimento exterior se ancoram decorre, na maior parte dos juízos apreciativos da prova, da chamada prova indirecta, isto é, daquela prova que não assegura a “certeza” do facto observado. Do que a possibilidade de aquisição do conhecimento judicial tendente á fixação da matéria de facto resultará, a maior parte das vezes, de uma operação lógica indutiva. [[8]] Nestes casos a prova dos factos supõe que o juiz reconstrua uma hipótese sobre esses factos que seja explicativa das provas obtidas (ou mais exactamente dos enunciados probatórios).

A obtenção do conhecimento da verdade histórica ou processual dos enunciados fácticos a provar é gerada ou induzida, na maior parte das vezes, mediante presunções, as chamadas presunções hominis ou simples.

“Las presunciones hominis o presunciones simples son un conjunto de razonamientos o argumentaciones mediante las cuales, a partir de hechos conocidos, se concluye afinnando otros desconocidos. (WROBLEWSKI habla de este tipo de presunclones cuando se reconoce como demostrado un hecho que, según las regias de experiência, há existido porque también outro hecho há existido y se bana creditado mediante pruebas concluyentes).

Tradicionalmente, sin embargo, se viene exigiendo también que el indicio (el hecho conocido del que se parte para “presumir” outro desconocido) reuna una serie de requisitos sin los cuales eI procedimiento presuntivo careceria de capacidad probatória. […] EI primero y principal de estos requisitos es Ia certeza: el indicio o hecho conocido debe estar fehacientemente probado mediante los medios de prueba procesalmente admitidos, lo que excluiria como posibles indicios las meras “sospechas” o “intuiciones” del juez, que no se basan en ningún hecho probado, pero también aquellos hechos de los que sólo quepa predicar su probabilidad y no su certeza incuestionable; otro de los requisitos que, según una opinión clásica, debe reunir el indicio es la precisión o univocidad: el indicio es unívoco o preciso cuando conduce necesariamente al hecho desconocido; es, por el contrario, equívoco cuando puede ser debido a muchas causas, o ser causa de muchos efectos. Este requisito arrastra consigo la distinción entre indicios “necesarios” (los precisos o unívocos) y “contingentes” (los equívocos), que se proyecta sobre la teoria de la prueba exigiendo eliminar la equivocidad de los segundos para poder utilizarlos como elementos de prueba, por ejemplo, mediante el procedimiento de eliminación de hipótesis; e un tercero es el requisito de la pluralidad de indicios hace referencia a la necesidad de que la prueba de un hecho se funde en más de un indício. Además, este requisito suele acompañarse del de la concordância, queriéndose exigir com ello que los (plurales) indicios confluyan en una reconstrucción unitária del hecho al que se refieran. El requisito de la pluralidad de indicios parece lógico al menos por dos razones: primero, porque es una manera de evitar el riesgo de que en base a un único dato, que, como ya se ha dicho, es esencialmente equívoco, se establezca una conclusión errónea; segundo, porque el procedimiento indiciário o de prueba indirecta es inductivo, por lo que su resultado es de mera probabilidad, de manera que cuantos más indicios apoyen esse resultado más fiable será”. [[9]]   

Operado este excurso, ainda que breve, como a natureza do acto requer, convirá ainda, e porque o recorrente também para ele apela, tecer algumas considerações acerca do princípio in dubio pro reo.

Procurando delimitar o âmbito de aplicação do principio in dubio pro reo escreveu-se no acórdão de 10.01.2008; proferido no proc. nº 07P4198, in www.stj.pt que “Não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio in dubio pro reo exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu – «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997. Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, pág. 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, pág. 13)». E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação, não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).

V – Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127.º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».

VI – «A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que elida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).”
O princípio in dúbio pro reo, constitui um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido, traduzindo o correspectivo do princípio da culpa em direito penal, a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o Tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido (Ac STJ de 2/5/996 in CJ, ASTJ, Ano VI, 1º, pág, 177).
O recurso da matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os "pontos de facto" que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham "decisão diversa" da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal – (AcSTJ de 31-05-2007, proc. n.º 1412/07).
Na verdade, se a reapreciação da matéria de facto, não impõe uma avaliação global, exige-se que na sentença se delineie um juízo autónomo demonstrativo da compatibilidade probatória entre os factos provados e as provas que serviram de suporte à convicção.
Verifica-se que o Tribunal a quo se pronunciou expressamente, no processo de formação da convicção, quanto à credibilidade da prova e aos motivos porque decidiu de determinada maneira em detrimento ou menoscabo de qualquer outra não denotando ou aparentando qualquer hesitação ou instabilidade conviccional que possa suscitar no tribunal de recurso dúvidas quanto razoabilidade do decidido, para além de qualquer dúvida razoável, como é exigível em qualquer julgamento de um enunciado fáctico em que se condense um facto da vida real.    

Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”. [[10]]

O recorrente apega-se a divergências constatadas entre os depoimentos das testemunhas I... e M... ... para pôr em crise o conjunto de factos provados sob a epígrafes 1.1 a), b), c), e), f) e h).

Escutada a gravação atinente aos depoimentos das testemunhas I... e M... ... – por sinal bastante deficiente, tanto na audibilidade como no modo como está recortada e seccionada, mais parecendo um disco do que uma gravação inconcussa de um depoimento em julgamento, onde se torna necessário que não haja cortes no depoimento para se ter a noção de continuidade e dinamismo próprio de uma instância – constata-se que o recorrente, como já havia acontecido durante a audiência, e apega ao pormenor e ao circunstancial em vez de atinar com o miolo da questão que estava a ser objecto de julgamento. Por isso é que em vez de contestar e procurar abalar o depoimento – se fosse caso disso – das testemunhas, o recorrente elege questões laterais, como saber se o arguido tinha ficado sentado ou de pé, para tentar descredibilizar e inculcar a ideia de que com essas discrepâncias e contradições o tribunal não poderei ter acreditado nas versões que lhe haviam sido transmitidas por estas duas testemunhas relativamente às vezes que o arguido esteve em casa da testemunha I.... O facto é que, ouvidos os depoimentos das testemunhas – e do arguido, que pode dizer o que bem quiser – se constata que os depoimentos são concordantes quanto às vezes que o arguido esteve em casa deles – uma primeira por chamamento da testemunha I..., para tentar a conciliação e uma outra depois de haver sido mudada a fechadura da casa onde o casal habitava – e embora o depoimento da testemunha M... seja desgarrado, inconstante, airado e com hiatos de coerência diacrónica não se afasta, no essencial, do depoimento da testemunha I.... O arguido, tanto da primeira vez como da segunda vez que esteve com as testemunhas, em sua casa, apodou a assistente de “desequilibrada” e “vaca”, entre outras alusões desprimorosas para a sua honra e consideração.

Daí que a facticidade que consta da decisão concentre e acrisole o conjunto de elementos que foram levados a julgamento e que a Senhora Juiz dessumiu dos depoimentos que o tribunal – e nós – tivemos oportunidade de escutar.

Não merece censura a decisão que foi ditada pelo tribunal quanto à matéria de facto, pelo que devendo ser mantida, se afasta a violação de qualquer dos apregoados princípios, como se procurou demonstrar supra.                             

II.B.2. – Elemento subjectivo do crime de injúrias.

Ainda que de forma perfunctória, o recorrente refere que não tinha consciência de que a mensagem que enviou à assistente poderia ter um sentido e alcance injurioso. 

Procurando definir o conceito de honra, o penalista italiano Ferrando Mantovani, refere que se trata de um conceito não naturalístico, mas normativo, “fazendo-se a referência não a realidade da natureza, mas a valores sócio-culturais, inferíveis ou dessumíveis do nosso ordenamento jurídico ou extrajudiciário”. Das duas concepções que reputa fundamentais: “1) a concepção assim chamada factual (psicológica ou sócio-psicológica) da honra como sentimento de valor próprio ou de outrem; 2) a concepção, assim chamada normativa da honra como valor do sujeito”, o autor, desemboca num conceito de honra que faz radicar a honra como “bem personalistíco constitucionalmente orientado, isto é à luz do principio personalistíco desenhado e impresso na Constituição. Assim, a honra ancora o seu fundamento como direito inviolável do homem; trata-se de um atributo originário da pessoa humana como tal e enquanto tal, constituindo um valor intrínseco com a mesma força da própria dignidade da pessoa humana e, portanto, objectivamente tutelado; pertence inderrogavelmente a cada homem e sendo igual para todos, sem distinção de raça, sexo, religião, língua, de opinião politica, de condição pessoal e social: desde o inicio ao fim da vida; enquanto valor da pessoa humana é dado a manifestar-se e operar na conformidade com o conjunto dos valores constitucionalmente significativos e dos demais valores jurídicos ou sócio-culturais; assume-se funcionalmente como salvaguarda da dignidade da pessoa humana, vedando a qualquer sujeito, privado ou público, a expressão de um juízo de indignidade. [[11]

Em acórdão por nós relatado, datado de 28 de Setembro de 2005, publicado na CJ; nº185, Ano XXX; Tomo IV/2005, p. 45 a propósito dos conceitos de honra e consideração, tivemos o ensejo de escrever «a honra concerne às qualidades (morais, intelectuais, físicas, psíquicas, etc) caracterizadoras do valor da pessoa humana”. Cfr. Ferrando Mantovani, Diritto Penale, diritto contro la persona, CEDAM, Padova. Pág. 264. já a consideração de que uma pessoa é portadora se repercute no  conceito socialmente adquirido quanto ao estar dessa pessoa num determinado meio sócio-histórico.

Apresentando-se como valores ou bens jurídicos de pendor primacialmente personalísticos não deixam, porém, de ser categorias socialmente referenciáveis porquanto atinam com outros valores da pessoa humana como a dignidade, o respeito, o decoro, a autonomia e identidade pessoal, a autorepresentação, etc. Por isso aquele autor, numa superação de conceitos de honra, como sentimento próprio ou normativo como valor do sujeito, propõe um sentido personalístico e classifica-o como “bem personalístico constitucionalmente orientado”. Tendo também entre nós ganho foros de direito fundamental – cfr. art. 26º da Const. da Rep. Port. – o direito ao bom nome, à imagem, à dignidade, à identidade pessoal, à reserva da vida privada e da intimidade, não pode a violação desses direitos deixar de ser censurada e punida jurídico-penalmente».

Assim, aquele que, tendo conhecimento do sentido e alcance do conteúdo de um facto, o apresenta contra alguém, sabendo que com a imputação feita é susceptível de o molestar na sua dignidade, estima e valoração pessoal é passível de preencher a ilicitude típica contida no artigo 181º do Código Penal

Este tipo de crime, como crime de mera actividade e doloso que é, tem como elementos constitutivos, objectivamente, a acção adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à honra ou consideração de outrem, e, subjectivamente, o dolo, constituído pelo conhecimento dos elementos objectivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los - cfr. art. 13º e 14º do CP. Ou seja, quanto ao elemento subjectivo deste tipo de crime, cimentou-se agora a orientação de que basta o dolo genérico, em qualquer uma das suas formas (cfr. art. 14.º do CP), para integrar o elemento subjectivo da infracção, i. é., não se exige especial propósito de ofender (animus injuriandi vel diffamandi), bastando a consciência por parte do agente de que a sua conduta é susceptível de produzir ofensa da honra e considerações alheias. Não é, portanto, exigível qualquer dolo dito específico ou especial. [[12]]

O dolo, ou elemento volitivo da acção desvalorativa e do acto injusto, não se evidencia ou manifesta senão através dos actos exteriores ou factos demonstrativos de que o agente pretendeu e quis com a execução de uma determinada factologia atingir um fim ou resultado lesivo da honra e consideração de alguém. Não se torna necessário que o agente apregoe ou deixe anunciada a sua vontade de ofender alguém, mas tão só que dos factos que praticou resultou, objectivamente, que subjectivamente quem agiu do modo evidenciado não poderia, de acordo com padrões de normalidade e à compreensão da maioria das pessoas, querer outra coisa que não doestar aquela concreta pessoa.     

O arguido ao ter enviado a mensagem com os dizeres que dela constam não poderia deixar de querer que esta se tivesse sentido atingida na sua honra e consideração pessoais.

Mostra-se verificado o elemento subjectivo do crime de injúrias pelo qual o arguido foi condenado.

III. – Decisão.

Na defluência do exposto decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, neste Tribunal da Relação de Coimbra, em:

- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido J... e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

- Condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em sete (7) Uc’s.

                                             Coimbra, 10 de Dezembro de 2008



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(Gabriel Catarino, relator)


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(Barreto do Carmo)

     

[1] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; WWW.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).

[2] No original […]diretto a convicere I’organo che giudica sui fatti dell’opportunità di assumem come attendibile uma certa versione dei fafti relevanti per la decisione; e a prova como strumento dimonstrativo, finalizzato aliá conoscenza “scientifica” della verità dei fatti rilevanti per la decisione
[3] Taruffo, Michelle, “Modelli di Prova e di Procedimento Probatorio”, in Revista di Diritto Processuale, vol. 45, pag. 420.
[4] Com proveito para um maior desenvolvimento deste tema pode consultar-se a obra de Marina Gascón Abellán, “Los Hechos en el Derecho – Bases Argumentales para la Prueba”, 2ª edición, Marcial Pons, Madrid, 2004, págs. 47 e segs.
[5] Nicolas Rescher, in “Verdad como coherencia Ideal”, in Juan António Nicolas e Maria José Frapolli “Teorias de la Verdade en el Siglo XX”, Editorial Tecnos, Madrid, 1997, pág. 500.
[6] Cfr. op. loc. cit. pág. 66 e segs.
[7] Cfr. Abellán, Marina Gascón, in op. loc. cit. pag. 83 e segs.
[8] Cfr. Gascón Abellán, Marina, in op. loc. cit. pag. 101 e segs.
[9] Gascón Abellán, Marina, in op. loc. Cit. pág. 151 a 156
[10] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.072007; proferido no processo nº 07P2279.
[11] Cfr. Ferrando Mantovani, Ferrando Mantovani, in “Diritto Penale. Parte Speciale, I, Deliti contro la Persona”, CEDAM, Milani, 1995, 260 a 263.
[12] Nesse sentido os acórdãos da RL de 18-5-88, in CJ, T3, p. 180, de 3-10-90, in CJ, T4, p. 171, e de 21-9-94, in CJ, T4, p. 231, da RE de 11-10-94, in BMJ 440.º/569, e da RP de 11-6-96, in BMJ 358.º/ 606 e de 24 –10-84, in CJ, T4, p. 251. Cfr., Figueiredo Dias, Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal Português, RLJ, 115, p. 106 e 133 e segs..