Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
144/11.3GBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: RECURSO
CONTAGEM DE PRAZO
CONTINUIDADE DOS PRAZOS
PROCESSOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 09/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 28.ºDA LEI N.º 112/2009, DE 16/09; 103º, Nº 2 E 104.º, NºS 1 E 2, DO C. P. PENAL; 144.º, N.º 1, DO C. P. CIVIL; E 12.º DA LEI N.º 3/99, DE 13/01
Sumário: Os processos crime de violência doméstica têm a natureza procedimental urgente, correndo os respetivos prazos processuais em período de férias judiciais, pelo que o prazo legal de recurso se conta continuamente.
Decisão Texto Integral: 1 – A..., (arguido, melhor id.º nos autos, máxime a fls. 206), inconformado com a decisão judicial – documentada na sentença junta a fls. 211/230 – que, na sequência de pertinente julgamento, o condenou pela comissão dum crime de violência doméstica, [p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a), do C. Penal], à reacção penal de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na respectiva execução por idêntico período, bem como ao pagamento à respectiva vítima, B..., da importância pecuniária de € 1.579,55 (mil quinhentos e setenta e nove euros e cinquenta e cinco cêntimos), a título ressarcitivo de danos não patrimoniais e patrimoniais – respectivamente € 1.000,00 (mil euros) e € 579,55 (quinhentos e setenta e nove euros e cinquenta e cinco cêntimos –, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde 06/01/2012 e até integral pagamento, dela interpôs o recurso ora analisando – validamente pela peça junta a fls. 278/317 e 318/357 (telecópia e correspondente original)[1], cujos dizeres nesta sede se têm por reproduzidos) –, de cuja motivação extraiu o seguinte – pretenso – quadro-conclusivo e decorrentes pretensões (vd. fls. 352/357):
«[…]
A. Com o presente recurso sobre os vícios da douta sentença recorrida, reapreciação da prova gravada, bem como sobre matéria de Direito, no tocante ao não preenchimento dos requisitos objectivos para a punição, subsunção jurídica dos factos e dosimetria penal, não se pretende colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostra investida a Ilustre julgadora, mas tão-somente exercer o direito de "manifestação de posição contrária" ou "discordância de opinião", traduzido no direito de recorrer, consagrado na alínea i) do n.º 1 do art. 61º CPP e no n.º 1 da CRP;
B. O pedido de indemnização cível deduzido nos autos é extemporâneo, uma vez que deu entrada para além dos 20 dias a contar da notificação de dedução de acusação, razão pela qual deveria o Tribunal a quo ter-se pronunciado sobre tal facto, conhecido da extemporaneidade e em consequência absolver o demandado;
C. Padece a douta sentença do vício de omissão de pronúncia face à conduta e culpa inequívoca e manifesta da alegada vítima e visão de conjunto (global) relativamente ao circunstancialismo de prática dos factos, essencial para a correcta subsunção jurídica dos factos, maxime ao nível do ilícito subjectivo, uma vez que a mesma cometeu previamente um crime de ofensa à integridade física qualificada e posteriormente outro na forma tentada, ambos na pessoa do seu filho, um crime de violação de domicilio e ainda igualmente cometeu um crime de violência doméstica na pessoa do arguido, atentas as lesões psíquicas que tal discussão extremamente sonora (com gritos e pontapés em portas), ofensas verbais e físicas (murros e pontapés enquanto o arguido a procurava colocar fora de casa) lhe provocou, não se resumindo unicamente a violência doméstica à saúde física!
D. Resulta assim, além de uma ausência de fundamentação, denegação de investigação, desconsideração e cindibilidade da prova, radicada numa entorse aos princípios garantísticos, radicados nas ideias de fair trial e audiatur et altera pars, nemo potest inauditu damnari, atento o recorte constitucional e legal em matéria processual penal, devendo ainda o Tribunal ter aquilatado da possibilidade de atenuação especial da pena em razão da provocação injusta levada a cabo pela vítima;
E. Mostra-se incorrectamente valorada a prova maxime ao nível do preenchimento do tipo legal, ressaltando ausência de factos, a justificar reenvio para novo julgamento, que permitam aquilatar do que terá sucedido no hiato temporal de quase 5 horas após a vítima ter abandonado o local, sendo que do exame de avaliação de dano corporal em processo penal, tendo por base o esquema de Legrand du Saulle, a escrita não bate com a pena nem a bota com a perdigota;
F. De igual forma se constata não verificado o preenchimento do tipo de ilícito subjectivo tendo o arguido agido unicamente em legítima defesa ou quando muito num direito de necessidade ou estado de necessidade desculpante, visando retirar a presença incómoda da vítima de sua casa, para salvaguardar a sua saúde psíquica, a integridade física do seu filho e a estabilidade/intimidade/privacidade/paz e sossego inerente ao seu domicilio, que se mostravam não só ameaçados como já efectivamente lesados pela conduta ilícita da ofendida que teimava em não adoptar postura condigna e conforme ao Direito não obstante múltiplos apelos do arguido, filho e testemunha Carina;
G. Dando-se ora por reproduzidas, por razões de economia processual, as passagens indicadas supra, relativas aos depoimentos do arguido, vítima e testemunhas … e C... , temos que a prática dos factos se deu I) em reacção a condutas ilícitas da ofendida, consubstanciadora da prática de quatro crimes, II) para salvaguarda de direitos e interesses legalmente protegidos, próprios e do filho, III) apenas por forma a que fosse colocado cobro a tal actuação ilícita da mesma após esgotada a via do diálogo a que o arguido deu primazia e IV) sem consciência de provocação de lesões e muito menos com a gravidade que no final vieram ser apresentadas, sendo certo que ao abandonar o local a vítima as não ostentava, nem perdeu os sentidos!
H. Tem-se por inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da especialidade a interpretação segundo a qual se verifica preenchimento do tipo de ilícito objectivo de crime de violência doméstica unicamente quando está em causa um facto isolado, sem qualquer nota de pluralidade, devendo interpretar-se a norma legal cum grano salis, não tomando por sinónimos os vocábulos "pluralidade" e "reiteração", por forma a evitar uma duplicação penal, maxime ao nível do crime de ofensa à integridade física qualificada quando praticada contra cônjuge ou ex-cônjuge;
I. Ao interpretar-se a norma legal subjacente à punição do crime de violência doméstica como se mostra feito pelo Tribunal a quo toma-se a árvore pela floresta, passando a ser completamente despicienda e estéril a previsão do crime de ofensa à integridade física qualificada na pessoa de cônjuge ou ex-cônjuge plasmada no art. 145º n.os 1 e 2 por referência ao art. 132° nº 2 b) CP, não se assegurando a coexistência e compatibilização das normas penais em termos de sistema e levando a que o legislador não possa gozar da presunção de justeza vertida no n.º 3 do art. 9° CC, ficando-se com duas normas exactamente com o mesmo recorte legal mas com molduras de punição diferenciadas;
J. Para mais quando a moldura penal de tal crime é mais benigna e quando se não mostra existente um funcionamento automático dos exemplos-padrão que sempre têm de ser lidos e aferidos à luz da cláusula geral de especial perversidade ou censurabilidade, que o Tribunal a quo afastou sem necessidade de considerar para a punição pelo crime de violência doméstica que sempre deveria representar, em razão da majoração penal, um plus de censurabilidade;
K. Da mesma forma que se tem por inconstitucional, desde logo por violação do princípio da igualdade, o entendimento segundo o qual se possa ter por praticado o crime de violência doméstica sem a ocorrência de especial desvalor para com a dignidade de pessoa humana ou acto de crueldade, bastando-se o mesmo com a prática de um único acto lesivo de ofensa à integridade física e com funcionamento automático da questão da existência anterior de vínculo conjugal já dissolvido;
L. Entende-se que estando em causa a protecção da família bem como especial coexistência do ponto de vista da harmonia do lar conjugal, nunca poderá haver crime de violência doméstica sempre e quando se não verifique à data de prática dos factos pelo menos um de dois requisitos objectivos: coexistência ou coabitação de agente e vítima e/ou existência de vínculo conjugal ou para-familiar (união de facto ou economia comum por exemplo), sob pena de se desvirtuar toda e qualquer finalidade e âmbito da reacção penal que passaria a contar não com carência de tutela penal mas superavit;
M. In casu, agente e vítima mostravam-se divorciados (o que nos termos da lei é factor de cessação de vínculo familiar, por o divórcio ser fonte da mesma!) há quase 10 anos e desde então residiam em locais distintos, substancialmente distantes, e sem qualquer manutenção de vínculo ou convivência entre si, não se mostrando violados os bens jurídicos ou interesses plúrimos que a incriminação visou acautelar e proteger, não sendo assim justificada a convocação de tal norma legal, inexistindo suporte legal para a douta condenação;
N. Enferma a douta sentença de contradição entre a fundamentação e a decisão, quando refere tal facto a fls. 9 in fine, dado que se o casamento é fonte de constituição de vínculo familiar, o certo é que o divórcio o quebra de forma inequívoca, não havendo assim in casu tal bem jurídico a preservar e salvaguardar, não se justificando a convocação de tal crime!
O. Atendendo a que do preceito legal em causa não ressalta qualquer cláusula geral de salvaguarda face a eventuais situações não justificativas de tal condenação, tem-se tal preceito por inconstitucional por violação dos arts. 13°, 18° n.os 2 e 3, 30° n.º 4, 32° n.os 1 e 5 e 202° n.º 2, 204° e 205° CRP, sendo que, da mesma forma e por identidade de razões que se tem tal preceito por inconstitucional sempre e quando interpretado no sentido de não se ter de avaliar e ponderar em conjunto todo o circunstancialismo de prática dos factos, culpa da ofendida e personalidade do agente, trabalho a cargo do Tribunal no âmbito do princípio do inquisitório e poderes que lhe assistem, podendo ser coadjuvado por outras entidades, nos termos do n.º 3 do art. 202° CRP, para efeito de avaliação de especial censurabilidade que justifique tal punição a título de crime;
P. Em razão de ausência de preenchimento de integral dos elementos do tipo objectivo (questão do hiato temporal não explicitado das lesões e interpretação pensante e cum grano salis da norma legal) e subjectivo (desde logo as alegadas causas de exclusão da ilicitude e culpa!) de ilícito deverá o arguido ser absolvido ou dispensado de pena atenta a mera retorsão e lesões recíprocas, dado que toda a situação provocou, como se tem por notório, lesões psíquicas no arguido para além dos murros e pontapés desferidos pela vítima;
Q. A efectiva factualidade provada não consubstancia a colocação da pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal, não se verificando a perpetração de qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do ex-cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária, sendo antes fruto de actos menos próprios da mesma e concorrência de culpas;
R. Ad cautelam sempre se refere que a pena aplicada mostra-se exagerada e violadora dos princípios da igualdade, proporcionalidade e da culpa, bem como dos arts. 40°, n.º 1 e as alíneas do n.º 2 do art. 71° ambos CP, maxime quando ao grau de ilicitude, execução e consequências dos factos [a)], a intensidade do dolo [b)] fins ou motivos que determinaram o pretenso crime [c)] e condições pessoais do agente [d)] e juízo de prognose [f)] a justificar atenuação especial, em sentido estrito, tendo de ser tido tal circunstancialismo em conta para a determinação da medida da pena, atenuando-a, e assim possibilitando a substituição por pena de multa, uma vez que ficará abaixo de um ano...
S. Caso assim não entendam V/ Exas. sempre a pena aplicada se tem por excessiva afigurando--se como plena e validamente conforme aos princípios e requisitos legais a sua fixação em 15 meses, sem prejuízo de substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade, com respeito pelas condições de saúde do arguido.
Tendo em conta as concretas passagens probatórias, em termos de recorte dos depoimentos oralmente prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, deixadas supra, as quais ora se dão por reproduzidas em nome do princípio da economia processual, têm-se como:
Factos incorrectamente julgados: os factos 3 (parte final), 4 (em termos de imputabilidade da conduta e lesões decorrentes da mesma bem como a falácia de perda dos sentidos!) 5 (relativamente ao n.º de dias para cura, substancialmente inferior a 30 tal como a ofendida havia confessado ao referir apenas dois dias!), 6 e 7 (inexistência de dolo de produção de lesões e unicamente retorsão e legítima defesa face ao filho menor e privacidade/intimidade/paz e sossego inerente ao domicílio violado pela vítima!), 14 (em correlação com o ponto 5) e 15 dos factos provados, que deverão ser tidos por não provados.
Deverá ainda ser levado ao elenco de factos provados os factos 5, 6, 7, 8, 9, 10 (excepto na parte de "a bater-lhe", o que apenas fez no exterior das residência e ameaçou fazer já dentro da mesma!), 11, 12, 13, 14, 15 e 16, incorrectamente dados por não provados.
Factos a considerar em sede de reapreciação da prova gravada: relativos ao circunstancialismo de prática dos factos, a justificar a não punibilidade (tendo por incorrectamente julgado o facto relativo à prática de um crime!) ou, no limite, a atenuação especial, facilmente descortináveis nas passagens supra indicadas, como seja, ter-se tratado de um acto isolado, após provocação e recusa injustificada da ofendida em colocar termo à sua conduta ilícita, consubstanciadora da prática de quatro crimes (dois de ofensas à integridade física na pessoa do seu filho, sendo um consumado no exterior da habitação e tentado no seu interior bem como violação de domicílio e violência doméstica, a haver coerência), uma vez frustrada a prévia resolução pacífica, tentada pelo arguido, pela via do diálogo.
Normas jurídicas violadas: maxime arts. 13°, 14°, 31°, 32°, 34°, 35°, 40°, 58°, 71° nos 1 e 2 a) a f), 72° nos 1 e 2 b), 73°, 143° n.º 3e 152° CP; arts. 77º, 127° e 379° nº 1 b) e c) CPP; arts. 1°, 2°, 3° n.º 3, 8° n.º 1 e 2, 12° n.º 1, 13° n.º 1, 17°, 18° n.os 2 e 3, 110.º n.º 1, 202° n.os 1 e 2 e 204° CRP; art. 514° n.º 1 CPC; arts. 9° n.os 1 a 3, 298° n.º 2, 333°, 570°, 1576°, 1577° e 1788° CC.
Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime livre apreciação da prova, in dubio pro reo, da culpa, igualdade, proporcionalidade, subsidiariedade e ultima ratio do Direito penal bem como finalidades inerentes aos fins das penas.
Destarte, […] requer-se […] a procedência do presente recurso e a consequente revogação do douta sentença recorrida, atentos os vícios de que a mesma padece, como seja, omissão de pronúncia, erro notório na apreciação da prova, errada interpretação de normas legais e violação de princípios constitucionais, devendo o arguido ser absolvido em nome de um direito processual e penal que se queira justo, atento o não preenchimento integral do tipo de ilícito;
Mais se requer que em razão da reapreciação da prova gravada se venha a revogar a douta sentença recorrida relativamente a parte considerável dos factos dados como provados, corrigido o erro de julgamento face aos não provados bem como aditados demais factos relativos ao concreto circunstancialismo da sua prática:
Deverá ainda, na hipótese de não absolvição em razão da causa de exclusão da ilicitude e culpa, ser declarada a inconstitucionalidade da previsão legal para situações como a dos autos, de ausência de vínculo conjugal, contacto ou coabitação entre agente e vítima há sensivelmente dez anos, inexistindo assim qualquer necessidade especial protecção do vínculo familiar ou da harmonia do lar conjugal, as finalidades da punição;
Ad cautelam, no caso de improcedência recursória do supra exposto, dever-se-á dar primazia ao instituto da atenuação especial da pena, em razão do circunstancialismo a dar como provado e novos factos a considerar e valorar, atinentes à execução do alegado crime, culpa manifesta e ostensiva da vítima que adoptou um comportamento além de censurável, multi-criminoso bem como personalidade do arguido, os quais atenuam sobremaneira as exigências de prevenção especial, devendo a pena ser atenuada em obediência aos princípios da igualdade, proporcionalidade, culpa e finalidades da punição.
Em decorrência da absolvição na parte criminal bem como da extemporaneidade do mesmo ser o demandado absolvido do pedido de indemnização cível formulado.
[…]»

2 – O Ministério Público – em 1.ª instância e nesta Relação – pronunciou-se pela inconsequência argumentativa e pela resultante improcedência recursória, (vide respectivas peças processuais – de resposta e parecer –, a fls. 365/369 e 380/384, cujos dizeres nesta sede se têm identicamente por reproduzidos).

3 – O id.º arguido-recorrente exerceu a faculdade conferida pelo n.º 2 do art.º 417.º do CPP, reiterando a tese recursória, (vd. fls. 387/394-397/404).

3 – Realizados os pertinentes actos/formalidades legais, e mantendo-se a regularidade da instância, nada obsta à legal prossecução processual.


II – FUNDAMENTAÇÃO

II.A


Tanto quanto se logra percepcionar da confusa, prolixa e juridicamente imprecisa fundamentação recursória, mormente do referente quadro-conclusivo – consabidamente circunscritor do objecto, âmbito e suporte do atinente inconformismo –, emerge da respectiva economia a nuclear demanda pelo id.º recorrente à Relação da verificação/análise da afirmada desconformidade legal do sindicado acto decisório, nas vertentes concernentes:

1 – À cognoscibilidade do pedido cível-indemnizatório, em razão da afirmada extemporaneidade da respectiva dedução;

2 – À ponderabilidade da pretensa justificação ou exculpação do assacado acto comportamental do próprio sujeito-arguido;

3 – Subsidiariamente:

3.1 – Ao ajuizamento da factualidade que, tida por assente, ficou descrita sob os pontos-de-facto ns. 3 (parte final), 4 (imputabilidade da conduta e lesões dela decorrentes), 5 (período de cura), 6, 7, 14 e 15, bem como à que, havida por indemonstrada, foi enunciada sob os itens 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16, do respectivo segmento;

3.2 – À tipificação jurídico-comportamental;

3.3 – À definição da respectiva reacção penal.  


II.B


Para cabal compreensibilidade e dilucidação de tal problemática, importa, desde já, reter a essencialidade do juízo factual tido por adquirido pelo Ex.mo julgador, assim como a explicitação da respectiva base de sustentação, (também por reprodução, com realces do relator):
«[…]
Mostram-se provados com relevância para a decisão da causa os seguintes factos:
1. O arguido A... e a ofendida B... casaram um com o outro no dia … 1990 e divorciaram-se em … 2001, tendo um filho em comum,
2. No dia  … de 2011, cerca das … , a ofendida dirigiu-se à residência onde vivem o arguido e seu filho, sita na Rua ….
3. Na sequência de uma discussão entre a ofendida e o filho, o arguido interveio, agarrou a ofendida pelo braço esquerdo e projectou-a contra umas escadas de cimento existentes no exterior da residência.
4. Na sequência da conduta do arguido, a ofendida perdeu os sentidos e sofreu na face uma ferida contusa frontal direita, com 2,5 cm, com edema, suturada com 3 pontos; uma equimose arroxeada horizontal na face lateral direita, no abdómen, medindo 5 cm x 2 cm; uma equimose arroxeada-esverdeada no terço médio do braço ao superior do antebraço direito, pela face dorsal, com 17 cm x 10 cm, com dor à pressão no epicôndilo-epicondilite; e uma equimose arroxeada-amarelada no terço superior da face medial do braço esquerdo, com 11 cm x 7 cm, contendo escoriação com 2 cm x 0,5 cm.
5. Tais lesões determinaram para a ofendida 30 dias para cura, com afectação da capacidade de trabalho geral e capacidade de trabalho profissional por idêntico período.
6. O arguido agiu com o propósito concretizado de maltratar a ofendida B... , sua ex-mulher e mãe de seu filho, molestando-a fisicamente, bem sabendo que os actos que praticou eram idóneos a causar, como causaram, um estado de sofrimento e medo na ofendida.
7. O arguido agiu de modo consciente, livre e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
8. A demandante teve que efectuar uma deslocação ao Gabinete Médico-Legal da Figueira da Foz, no dia 23 de Março de 2011.
9. Deslocou-se ainda ao mesmo Gabinete, no dia 30 de Março de 2011, tendo importado tal deslocação o pagamento de 56 € pelo serviço de táxi.
10. Deslocou-se também duas vezes ao Posto da G.N.R. de Pombal, uma delas a 5 de Abril de 2011.
11.Deslocou-se também ao Centro de Saúde da Redinha para extracção dos pontos.
12. A demandante civil despendeu ainda com as taxas moderadoras relativas ao episódio de urgência no Hospital Distrital de Pombal, no dia 19 de Março de 2011, as quantias de 8,60 € e de 51 €.
13. Despendeu ainda a quantia de 7,30 € a título de medicamentos.
14. Tendo deixado de auferir a quantia de 431,65 € pelos 30 dias em que esteve afectada na sua capacidade de trabalho, sua única fonte de rendimento.
15. A demandante sentiu ainda e sente-se humilhada, envergonhada, triste e deprimida em consequência da conduta do arguido.
16. O arguido encontrava-se no interior da sua casa, no 1.º andar, quando ouviu gritos vindos do exterior da casa, os quais identificou serem da sua ex-mulher B... Costa.
17. Entretanto, o seu filho (também filho da ofendida) que estava no exterior da casa, entrou em casa, fechou a porta e dirigindo-se ao arguido pediu-lhe que não deixasse entrar a ofendida.
18. O arguido ouviu a ofendida a continuar a gritar do exterior, a chamar pelo filho C....
19. O arguido ainda se manteve alguns minutos no andar de cima, em virtude de se sentir nervoso, mas acabou por descer.
20. O arguido é pessoa nervosa, toma medicação para a depressão e é seguido em consultas médicas por tais motivos.
21. É divorciado e reside em casa de um irmão com o seu filho C... .
22. Trabalhador da construção civil, encontra-se reformado por invalidez há cerca de 6/7 anos, auferindo uma pensão de invalidez de cerca de 303 €.
23. Tem como habilitações literárias o 6.º ano de escolaridade.
24. O arguido não tem antecedentes criminais.
[…]
Por sua vez, não se mostraram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1. A deslocação da demandante civil B... ao Gabinete Médico-Legal da Figueira da Foz, no dia 23 de Março de 2011, importou no pagamento de 25,40 € de combustível.
2. As deslocações da demandante civil ao Posto da G.N.R. e ao Centro de Saúde da Redinha importaram, cada uma, o pagamento de 10 € em combustível.
3. A demandante teme todos os dias pela sua integridade física.
4. O arguido A... estava no interior da sua casa com a sua (na altura) namorada e com a filha desta.
5. O arguido ouviu murros na porta, até que a ofendida abriu a porta (trata-se de uma porta cujo puxador é de rodar).
6. Ao entrar, a ofendida continuava aos gritos a chamar o seu filho C..., dizendo “seu filho da puta”.
7. Foi então que o filho C... desceu e lhe disse: “só falo contigo se for com calma”.
8. Quando o arguido desceu do 1.º andar da sua casa, viu a ofendida a correr atrás do filho C... para lhe bater, encontrando-se entre ambos uma colega da ofendida, que a vinha acompanhar, a tentar sempre afastar a ofendida do filho.
9. Foi então que o arguido lhes disse: “falem a bem e baixo, mas lá fora”, ao que a ofendida se voltou para o arguido e chamou-o de “ordinário”.
10. A ofendida continuou sempre a correr atrás do filho e a bater-lhe, sempre aos gritos e a insultar o filho.
11. A colega que acompanhava a ofendida, virando-se para o arguido e apontando para a ofendida fez o gesto com a mão de que a ofendida estava bêbeda e disse-lhe “desculpe”, tendo saído e o arguido fechado a porta.
12. Depois que fechou a porta de casa, o arguido não voltou a ver a ofendida, não sabendo nem sabe o que aconteceu depois de fechar a porta.
13. O arguido não projectou a ofendida contra as escadas ou contra qualquer outra coisa quando a deixou na rua.
14. O arguido não quis fazer mal à ofendida.
15. Quando fechou a porta, o arguido viu a ofendida de pé e bem, embora alcoolizada, cheirando bastante a álcool e completamente transtornada, sempre a gritar.
16. Os factos em discussão nos autos deixaram o arguido muito instável emocionalmente, tendo mesmo tido um episódio de ansiedade por esse motivo que o levou ao hospital de urgência.
[…]
O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, desde logo nas declarações do arguido A..., o qual reconheceu como possíveis as circunstâncias de tempo descritas na acusação, explicou o local onde se encontrava quando ouviu gritos da ofendida B..., admitindo ter descido do 1.º andar da sua residência e de ter agarrado a ofendida por um braço para a pôr fora de casa.
No mais, negou ter arremessado a mesma contra as escadas exteriores da residência, prestando nesta parte declarações com relativo cuidado, denotando preocupação na escolha das palavras para reconstituir o sucedido, não transparecendo suficiente segurança. Denotou também falta de convicção quando instado a explicar os motivos pelos quais teriam sobrevindos à ofendida os concretos ferimentos constantes da acusação.
Diferentemente, a lesada B... prestou declarações de forma mais expedita e desembaraçada, dando desde logo conhecimento do dia em que se deslocou ao local onde residem o arguido e C..., filho de ambos, admitindo sem quaisquer pruridos a existência de uma discussão entre ela e seu filho, a qual enquadrou com suficiente minúcia, contribuindo para o apuramento dos correspondentes factos.
Ademais, foi nos mesmos moldes expeditos e prontos que afiançou ter sido agarrada no braço esquerdo pelo arguido, ressalvando com inteira imparcialidade já só se recordar de ter recuperado posteriormente os sentidos no exterior da casa, junto às escadas de cimento ali existentes, enunciando sem hesitação as concretas partes do corpo que sentiu feridas, tendo o Tribunal, através das declarações assim prestadas, formado inicialmente a sua convicção quanto à concreta conduta do arguido, nos termos constantes da acusação.
Acresce, o que se revela decisivo, que a testemunha … , amiga da ofendida que a acompanhou ao sobredito local, prestou um depoimento inequivocamente sério, isento e descomprometido, corroborando o modo como o arguido agarrou sua ex-mulher e adiantando a forma como a projectou contra as escadas existentes no exterior da habitação.
A tudo fez tal testemunha alusão mediante um depoimento espontâneo, sequencial, não vacilando nas sucessivas respostas às perguntas com que foi confrontada, demonstrando inequívoca segurança e reforçando a convicção do Tribunal quanto à forma como o arguido perpetrou a agressão, bem como às lesões daí sobrevindas, posto que as viu, tendo levado nesse mesmo dia a ofendida ao hospital.
Aliás, a versão dos acontecimentos assim dada a conhecer pela lesada e por esta testemunha encontram-se em conformidade com as lesões descritas nos relatórios juntos aos autos a fls. 12 a 13 e 19 a 20, tudo permitindo o apuramento da matéria de facto descrita na acusação, tendo ainda tais relatórios servido para a concretização mais pormenorizada dos ferimentos, sua localização, extensão e para o período de incapacidade para o trabalho sofrido pela ofendida, resultando igualmente corroborado do documento de fls. 71 o atendimento hospitalar prestado à ofendida no dia em apreço, assim como a necessidade de sutura de uma das feridas. 
Dada tal comprovada conduta do arguido e subsequentes ferimentos, não hesitou o Tribunal quanto ao apuramento dos factos relativos à intencionalidade com que actuou.
Por outro lado, a testemunha  … negou peremptoriamente que a ofendida tivesse feito menção de agredir seu filho e que o tivesse insultado, bem como ao arguido, tendo a credibilidade do seu depoimento levado a que tais factos alegados pelo arguido na sua contestação, a par da invocada embriaguez da ofendida, tivessem sido transpostos para a matéria de facto não provada.
Além do mais, fez referência sem aparente exagero ao estado anímico em que ficou a ofendida, tendo também dado a conhecer a deslocação por esta efectuada ao hospital e a actividade profissional que a mesma exercia à data, auxiliando no apuramento de tal factualidade.
Por sua vez, também a testemunha  … revelou objectividade e espontaneidade no seu depoimento, assim dando a conhecer o serviço de táxi prestado à ofendida, para transporte da mesma ao Gabinete Médico-Legal da Figueira da Foz, o que, devidamente conjugado com o documento de fls. 111, logrou ver-se demonstrado, tal como o custo de tal serviço.
Diferentemente, o depoimento da testemunha … , mãe do arguido, não se nos afigurou suficientemente credível, em termos de auxiliar o Tribunal no apuramento da matéria de facto em análise.
Efectivamente, apesar de reconhecer não ter visto qualquer agressão por se encontrar em local que impedia que tal sucedesse, não deixou de fazer juízos depreciativos sobre a conduta da ofendida, perdendo com isso objectividade e imparcialidade, tendo a muito custo e mesmo assim com notório embaraço feito referência ao “pingo de sangue” que esta ostentava na ocasião, tendo prestado um depoimento comprometido e porventura distante da realidade, tendo a referida testemunha sentido até necessidade de dizer, em mais do que uma ocasião, que não estava “a mentir”.
Também a testemunha C..., filho do arguido e da ofendida, não demonstrou verdadeira isenção, já para não falar da sua incapacidade natural para manter um discurso escorreito, linear, coerente e suficientemente elaborado, a que decerto não será alheia a sua tenra idade e alguma predisposição física aparentemente incapacitante. Abstraindo de tudo isso, foi notório o modo como bloqueou no seu depoimento de todas as vezes em que teve necessidade de aludir ao contacto físico ocorrido entre seu pai e a ofendida – a qual entrou na residência após lhe ter aberto a porta –, tendo sido evidente a sua preocupação em não prejudicar o seu progenitor, bem patente na frequência como recorreu a expressões como “um bocado de força”, “tentou só pô-la para fora”, “tentou só que ela saísse”, chegando ao ponto de enunciar que o arguido “empurrou um bocadinho” a ofendida sua mãe. Por tudo isso, não foi merecedor de um juízo de credibilidade.
Devidamente conjugados com as declarações da ofendida e das duas primeiras identificadas testemunhas, baseou-se o Tribunal, para além dos já referenciados, nos autos de fls. 2 e 35 e documento de fls. 112 (exclusivamente quanto às deslocações efectuadas pela ofendida ao Posto da G.N.R.), nos relatórios de fls. 12 a 13 e 19 a 20 e documentos de fls. 108 e 110 (quanto às circunstâncias de tempo e número de vezes em que a mesma se deslocou ao Gabinete Médico-Legal da Figueira da Foz), nos assentos de nascimento de fls. 61 a 63, 76 a 78 (no qual se encontram certificadas as datas do casamento e do divórcio entre o arguido e a ofendida) e 79 a 81 (referente a C...), assim como nos documentos de fls. 70 a 71 (quanto à assistência hospitalar prestada à ofendida), 113 e 114 (no que respeita aos valores despendidos pela demandante com a assistência hospitalar que lhe foi prestada), 115 (relativamente ao valor despendido com medicamentos, dada a data do documento e a natureza dos produtos ali descritos), 116 e 117 (no que respeita à quantia que a lesada deixou de auferir pela incapacidade para o trabalho), 118 (cópias de fotografias que ilustram as marcas e ferimentos apresentados pela ofendida) e 119 (o qual atesta a deslocação a Centro de Saúde para extracção de pontos).
Já o documento de fls. 109, por si só, dada a sua força probatória inerente à de mero documento particular, desacompanhado de qualquer outro meio de prova, foi insuficiente para levar ao apuramento do facto nele mencionado, nos moldes alegados pela demandante civil, o mesmo tendo sucedido quanto às concretas despesas invocadas pelas deslocações ao Posto da G.N.R. e ao Centro de Saúde.
Relativamente à situação económica, familiar, profissional e de doença do arguido (aqui tendo relevado igualmente o documento de fls. 150 a 151, ainda que sem o alegado nexo de causalidade com os factos vertidos na acusação, conforme sustentado na acusação) relevaram as suas próprias declarações, prestadas nesta parte com maior naturalidade.
Baseou-se ainda o Tribunal no C.R.C. do arguido junto aos autos no que respeita aos seus antecedentes criminais.
Finalmente, os restantes factos dados como não provados, ainda não aflorados, resultaram da circunstância de sobre os mesmos não ter sido produzida qualquer prova em audiência de julgamento, não lhes tendo sido feita menção.
[…]»

II.C


APRECIANDO:


§ 1.º – Cognoscibilidade do pedido cível:

Reconhece-se a pertinência do referente reparo recursivo.

De facto, como bem se observa na peça recursória, em razão da natureza procedimental urgente atinente ao tipo-de-ilícito de violência doméstica cuja indagação/responsabilização lhe subjaz, por força da dimensão normativa decorrente da conjugada interpretação dos dispositivos ínsitos sob os arts. 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, 103.º, n.º 2, e 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (C.P.P.), todos os respectivos prazos processuais haverão de correr em período de férias judiciais.

Por conseguinte, tendo-se operado/efectivado em 28/07/2011 a notificação da cidadã – virtual lesada – B... da possibilidade e oportunidade de dedução de pretensão indemnizatória contra o sujeito-acusado, em conformidade com o preceituado no n.º 2 do art.º 77.º do C. P. Penal, (vd. fls. 87 e 97), o termo final do respectivo prazo legal, de 20 (vinte) dias, localizou-se, incontornavelmente, em 17 de Agosto de 2011, quarta-feira, pelo que, aquando da apresentação em juízo da referente peça, em 31/08/2011, (vd. fls. 100/107), já se lhe encontrava precludido/extinto o correspondente direito, (cfr. ainda arts. 104.º, n.º 1, do CPP, 144.º, n.º 1, e 145.º, n.º 3, do C. P. Civil, e 12.º da Lei n.º 3/99, de 13/01).

Impor-se-ia, pois, ao julgador declarar tal efeito jurídico e abster-se, dessarte, do conhecimento do mérito da – extemporânea – pretensão ressarcitiva, (cfr. arts. 494.º, proémio, e 495.º, do C. P. Civil, aplicáveis por força do art.º 4.º do CPP).

Porque assim não procedeu, inquinou, inexoravelmente, a correspondente vertente da questionada sentença pelo vício de nulidade prevenido no n.º 1, al. c), do art.º 379.º do C. P. Penal, cuja existência ora inevitavelmente se reconhece.

 

§ 2.º – Ponderabilidade justificativa/exculpativa:

Basta uma leitura perfunctória da analisanda sentença, mormente dos segmentos supra transcritos, para de imediato se inferir do infundado da crítica de pretensa demissão ajuizativa de eventuais causas jurídico-justificativas ou exculpativas da imputada violência do próprio arguido/recorrente para com o seu ex-cônjuge, posto que tudo o por si a propósito alegado na contestação mereceu a pertinente atenção do julgador, absolutamente irrelevando à perfectibilidade/validade jurídico-processual do concreto acto decisório (sentença) a discordância do próprio sujeito quanto ao sentido do respectivo julgamento demonstrativo.

Improcede, naturalmente, a arguida nulidade por pretensa/concernente omissão de pronúncia, [prevenida na al. c) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP].

 § 3.º – Juízo fáctico:

1 – Como é do presumível conhecimento de qualquer jurista[2], o instituto recursório, enquanto procedimento de estrito controlo da observância da pertinente legalidade – vigente no ordenamento jurídico nacional – na realização/produção do acto de julgar e decidir doutro órgão judiciário, verdadeira ferramenta jurídico-processual exclusivamente vocacionada à expurgação/correcção de concretos e relevantes vícios jurídico-silogísticos e/ou de específicas ilegalidades de que, porventura, enferme o sindicado acto decisório de competente julgador, sobre que incida – remédio para importantes e concernentes males técnico-jurídicos –, não comportando qualquer finalidade ou virtualidade de conveniente busca e quiçá arbitrária sobreposição/substituição de divergentes sensibilidades sobre a questão em litígio[3], e, logo, de desautorização do órgão julgador[4], confere ao respectivo sujeito-interessado a incumbência da efectiva materialização, no segmento motivacional do próprio recurso e, resumidamente, no referente quadro-conclusivo, do ónus de específica e precisa inventariação dos defeitos técnico-jurídico-decisórios cuja reparação impetre, bem como dos meios e/ou bases legais necessariamente condicionantes/determinativos da propugnada solução[5], sempre com escrupulosa/rigorosa observância das apertadas regras formais postuladas pelos ns. 1, 2, 3 e 4, máxime, do art.º 412.º do C. P. Penal (naturalmente das que forem aplicáveis, em função do objecto recursório).

2 – Tendo presentes tais inelutáveis postulados, impor-se-ia ao id.º arguido-recorrente a concludente demonstração da objectiva irrazoabilidade jurídico-processual da apreensibilidade e consequente asseveração e/ou, doutra sorte, do irreconhecimento pelo Ex.mo julgador da questionada/destacada factualidade, (vd. supra, II.A, item 3.1, pág. 8), em cuja pretensa ilegalidade funda, afinal, a nuclearidade da sua processual dissidência.

Demandar-se-lhe-ia, pois, o escrupuloso cumprimento da apertada disciplina jurídico-processual estabelecida pelos ns. 1, 3, als. a) e b), e 4, do dito dispositivo 412.º do CPP, máxime pela precisa selecção e indicação de concretas passagens das gravações dos meios probatórios declarativo-testemunhais ao caso pertinentes cujo conteúdo porventura reunisse, por si próprio, aptidão jurídico-impositiva de resolução diversa da produzida, e cuja força informativa ou ilustrativa da realidade houvesse, suposta e inescapavelmente, sido ilegalmente relevada/desconsiderada ou valorada/desvalorizada.

         3 – Antes, porém, se realiza – aliás, tão-só da concernente discorrência na vertente motivacional (a fls. 326/332), posto que o quadro-conclusivo é a propósito materialmente omisso, em inescapável inobservância do rigor requerido pelos citados ns. 3, al. b), e 4, do CPP, naturalmente irrealizado pela operada remissão genérica para aqueloutra – que a sua atinente postura recursória se conforta na própria leitura pessoal (do seu Ex.mo advogado, bem-entendido) do sentido do conjunto probatório, por sobreposição à atinente interpretação do julgador, carecendo, como tal, de qualquer valor e idoneidade jurídico-modificativa do correlato juízo, que, como antes se adiantou, só seria passível de censura jurídica se e na medida em que se lhe observasse – do próprio texto da sentença, (cfr. proémio do n.º 2 do art.º 410.º do CPP) – qualquer evidente desvio silogístico, ou inequivocamente se reconhecesse que no respectivo processo formativo houvesse sido valorada específica prova proibida, (vide, máxime, art.º 125.º, em sentido inverso, do CPP), desacatada qualquer norma legal de vinculação a prova plena – documental ou confessória, [vide, máxime, arts. 169.º e 344.º, n.º 2, al. a), do CPP] – e/ou a perícia, (vide art.º 163.º do mesmo compêndio legal), ou às regras da experiência comum, (vide art.º 127.º do mesmo código), ou desrespeitado qualquer pertinente princípio constitucional ou legal, máxime de direito processual penal, o que, da cuidada análise da referente justificação (supra reproduzida), de todo se não alcança.

         Com estranha confusão sobre a disciplina jurídico-recursiva, perdeu-se por entonada e equívoca presunção de que lhe caberia o direito de alvitrar sobre o modo como o competente órgão julgador se deveria ou não deixar mais ou menos influenciar e convencer por um ou outro meio e/ou pormenor informativo por si próprio escolhido, e nos limites por si estabelecidos, e a tanto vincular o tribunal de recurso.

4 – Destarte, tendo presente que à Relação não compete substituir-se ao tribunal de 1.ª instância, recorrido, em nova ponderação do sentido do acervo probatório – como o id.º recorrente parece pressupor na sua tese argumentativa, e, porventura, coincidentemente com o seu próprio interesse (!) –, mas tão-só indagar da legalidade/validade do concreto/sindicado julgamento, pela avaliação da aptidão jurídica de específicas provas que, porventura, houvessem sido regularmente particularizadas como lógica e necessária/inevitavelmente condicionantes de conclusão divergente do censurado juízo, não se observando qualquer vício do processo da soberana formação da convicção do julgador (única processualmente válida), nos limites legais, quanto à definição da verdade histórica, prático-jurídica, concernente ao retalho-da-vida em avaliação – que, aliás, se mostra cabal e coerentemente explicado, em conformidade com o estatuído no n.º 2 do art.º 374.º do CPP, (vd. fls. 215/219), e, dessarte, bastantemente compreensível, aceitável e razoável –, nem se realizando que, no exercício do seu poder-dever de livre apreciação das provas não vinculadas e de respectiva susceptibilidade de decorrente convencimento – proporcionada pelos insubstituíveis princípios processuais da imediação e oralidade, conferida pelo normativo 127.º, (por referência ao preceituado no art.º 125.º, do C. P. Penal) – tivesse divergido do sentido probatório naturalmente integrado e coordenado por emergentes factores lógico-dedutivos, presuntivos, por si meios probatórios perfeitamente válidos, (cfr. arts. 125.º, do CPP, e 349.º e 351.º, do Código Civil) –, ou se houvesse confrontado com sérias/inabaláveis dúvidas sobre as referentes atitudes comportamentais que julgou consignar como reconhecidas, então, hipoteticamente, conducentes à observância do princípio processual (em matéria probatória) in dubio pro reo – corolário do constitucional de presunção de inocência, postulado pelo normativo 32.º, n.º 1, da CRP – e ao correlato juízo negativo, nenhuma razão juridicamente válida se antolha com aptidão modificativa do particularmente definido – e ora sindicado – julgado-factual, que, assim, sempre se haverá que ter por definitivamente fixado, nos precisos termos, [vide art.º 431.º, proémio, e al. b), do CPP, em sentido inverso].

§ 4.º – Tipificação jurídico-comportamental:

1 – Já se nos afigura acolhível a nuclearidade da crítica recursiva ao operado enquadramento jurídico-subsumptivo do reconhecido acto comportamental do próprio sujeito arguido-recorrente à figura-de-delito de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a), do C. Penal[6], posto que, como nos parece de mediano entendimento – com o devido respeito por divergentes opiniões –, os valores jurídicos por tal tipo-de-ilícito tutelados – integridade corporal; saúde física e/ou psíquica; liberdade pessoal e/ou de determinação sexual – sempre se haverão que estreitamente correlacionar com um concreto e actual (com referência à época da realização do acto ofensor/lesivo, bem-entendido) – ou temporalmente próximo – contexto de natureza familiar, assente em vínculo matrimonial ainda vigente ou mesmo já dissolvido, máxime por divórcio, em cujo âmbito, contudo, o sujeito agressor se assuma com preponderante e significativamente inelutável poder de sujeição física, psicológica ou sexual da pessoa visada – cônjuge ou ex-cônjuge, únicas categorias jurídicas, dentre as contempladas pelo referido dispositivo 152.º, ora relevantes –, em essencial razão de considerável e relativo ascendente físico-muscular, económico-financeiro e/ou afectivo/psicológico/emocional, potencialmente condicionante/compressor da referente dignidade (do sujeito passivo).

Torna-se, pois, essencial ao rigor jurídico-imputativo da respectiva infracção criminal a determinado agente delitivo a aquisição – sequente a idóneo/pertinente processo de respectiva alegação e correspondente demonstração – de quadro factual bastantemente ilustrativo de tais condicionalismos, ou seja, duma certa convivência entre duas pessoas em contexto familiar ainda activo (pulsante), quer ainda se encontrem unidas entre si pelo casamento ou já juridicamente separadas[7], e com ou sem coabitação; de significativa supremacia duma sobre a outra, assim correspondentemente/proporcionalmente subordinada, em razão de superioridade/dominação física, psicológica, emocional ou económico-financeira, máxime; de voluntária violentação (reiteradamente ou não) da primeira sobre a segunda, nos domínios da integridade corporal, sanitária, mental/psíquica, ou da liberdade de determinação pessoal ou sexual; da consequente compressão/afrontação da dignidade pessoal da sujeitada/vitimada, e da relação de causalidade adequada (de causa e efeito) entre tais diversos factores.

Como assim, inverificando-se a reunião de tais pressupostos, sempre evidentemente assumirão natural autonomia jurídico-criminal os concretos comportamentos ofensivos entre pessoas que tipicamente couberem nas respectivas figuras-de-delito.

É o que inescapavelmente acontece no caso sub judice, já que nenhuma relação de convivência e de ascendência-subordinação entre o sujeito-arguido A... e o seu ex-cônjuge B... se apurou (ou sequer alegou) entre a já remota dissolução do respectivo casamento, em 25/10/2001, e o episódio conflitual em avaliação, de 19/03/2011, (vd. pontos-de-facto ns. 1 e 2).

Mal se compreende, pois – com o devido respeito –, que, volvidos cerca de dez anos do respectivo divórcio sem que nada se conheça do desenvolvimento relacional dos dois id.os cidadãos em tal lapso temporal, se ajuíze jurídico-criminalmente pelo modo como aconteceu!

Naturalmente que, por tal sorte, o jurídico-processualmente conhecido – e aparentemente episódico – acto comportamental ofensor do id.º sujeito-arguido para com a pessoa da cidadã B...– seu ex-cônjuge e mãe de seu filho C... , já de maioridade, [e não menor, como despropositadamente se afirma na peça recursória[8], posto que, havendo nascido em 18/06/1990, (vd. ponto-de-facto n.º 1), tinha já 20 anos à referenciada época de 19/03/2011!] –, devidamente analisado pelos respectivos contornos que o definido quadro factual revela e criteriosamente sopesado pelo ordenamento jurídico-criminal nacional, antes meramente representará do seu (arguido) pessoal e doloso (com dolo directo) cometimento dum crime de ofensa à integridade física, simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal[9], a que corresponde a moldura penal abstracta de 1 (um) mês a 3 (três) anos de prisão ou multa de 10 (dez) a 360 (trezentos e sessenta) dias, graduáveis à razão diária de € 5,00 a € 500,00, (cfr. ainda arts. 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º, 41.º, n.º 1, e 47.º, ns. 1 e 2, do C. Penal).

 2 – Tal requalificação jurídico-criminal assume-se, porém, como novidade jurídico-processual, pelo que, previamente a qualquer outra referente avaliação, máxime à ponderabilidade da pertinente reacção penal, se haverá que facultar ao id.º arguido a oportunidade de sobre ela (requalificação jurídica) se pronunciar, como postulado pelo comando normativo ínsito sob o n.º 3 do art.º 424.º do C. P. Penal.  


III – DISPOSITIVO


Por conseguinte, delibera-se:

1 – O reconhecimento da extemporaneidade da dedução/apresentação do pedido cível-indemnizatório – ínsito na peça junta a fls. 100/107 – formulado pela cidadã B... e a consequente anulação da vertente da sentença – documentada a fls. 211/230 – que dele conheceu.

2 – A absolvição do sujeito-arguido-demandado, A..., da respectiva instância, [inerente à referida pretensão cível-indemnizatória – cfr. arts. 494.º, proémio, 495.º, e 288.º, n.º 1, al. e), do C. P. Civil, aplicáveis por força do art.º 4.º do CPP].

3 – O irreconhecimento de qualquer outro vício de validade jurídico-processual da enunciada sentença.

4 – A confirmação do juízo factual nela definido.

5 – A requalificação do acto comportamental do id.º sujeito-arguido A..., nesse acto decisório factualmente descrito, no sentido do indiciário cometimento pela sua pessoa dum crime de ofensa à integridade física, simples, (p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal), na pessoa de B..., por contraponto ao que lhe fora assacado, de violência doméstica, [p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a), do C. Penal].

6 – A determinação da sua (arguido) notificação para, querendo, em 10 (dez) dias sobre tal questão se pronunciar, em conformidade com a estatuição normativa do art.º 424.º, n.º 3, do C. P. Penal.


***

Acórdão elaborado pelo relator, primeiro signatário, (cfr. art. 94.º, n.º 2, do C. P. Penal).

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Coimbra, 26/09/2012.

Os Juízes-desembargadores:

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(Abílio Ramalho, relator)

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(Luís Ramos)


[1] Sendo de desconsiderar, por inválida, a expedição por correio-electrónico (e-mail) do respectivo ficheiro, reproduzido e junto a fls. 239/277, por ter tal meio tecnológico sido já inescapavelmente eliminado do ordenamento jurídico nacional como modalidade de apresentação a juízo de actos processuais escritos das partes/sujeitos no âmbito do processo cível e criminal, pelo art.º 1.º do D.L. n.º 303/2007, de 24/08, que, havendo alterado a versão anteriormente conferida ao art.º 150.º do Código de Processo Civil pelo D.L. n.º 324/2003, de 27/12, pela substituição do modo de envio a juízo de actos processuais escritos por correio-electrónico, com aposição de assinatura electrónica avançada, pelo de transmissão electrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 138.º-A, (aditado pela Lei n.º 14/2006, de 26/04, e identicamente modificado pelo D.L. n.º 303/2007, de 24/08), ou seja, pela enunciada Portaria n.º 114/2008, de 06/02 (instituinte do denominado sistema informático CITIUS), também necessariamente operou a revogação tácita da Portaria n.º 642/2004, de 16/06 – acto regulamentar do Governo, hierarquicamente inferior ao decreto-lei que visa regulamentar, sendo dele mero complemento, a si necessariamente subalternizado, subordinado e vinculado, como claramente resulta das disposições ínsitas sob os ns. 1, 6 e 7 do art.º 112.º da Constituição Nacional –, daquela anterior versão regulamentadora, cuja razão-de-ser no particular deixou, por tal sorte, evidentemente de existir, como incontornavelmente postulado pelo n.º 2 do art.º 7.º do Código Civil. 
[2] Inclusive, como é óbvio, do próprio Ex.mo advogado/defensor signatário da peça recursória!
[3] Aliás, por natureza aleatórias, em razão, designadamente, da própria contingência da distribuição processual.
[4] Malgrado a errónea e generalizada convicção cuja manifestação ainda, estranha e perturbantemente, nesse sentido se continua a observar, particularmente em significativas peças processuais de recurso, como na ora sub judice!
[5] Sem prejuízo, naturalmente, do dever de oficioso conhecimento pelo tribunal superior dalgumas invalidades processuais, (cfr., máxime, Ac. n.º 7/95 – para fixação de jurisprudência –, do Plenário do STJ, de 19/10/1995, publicado no DR, I-A Série, de 28/12/1995).
[6] Artigo 152.º
Violência doméstica
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge […] é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
[7] Mormente por divórcio, situação mais comum, que, contudo, evidentemente não excluirá qualquer juridicamente concebível e relevante relacionamento entre pessoas separadas judicialmente de pessoas e bens, ou mesmo, porventura, entre quem cujo casamento haja sido entretanto anulado.
[8] Vide fls. 327.
[9] Artigo 143.º (Ofensa à integridade física simples)
1 – Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
[…]