Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
220/07.7GCACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
PODER DE CORRECÇÃO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
EXEMPLOS-PADRÃO
Data do Acordão: 12/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO T.J. DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 143.º, N.º 1 146.º, N.º 1, EX VI, DO 132.º, N.º 1 E 2 DO C.P..
Sumário: I. - A qualificação da ofensa à integridade física, tributária qualificação do homicídio no C. Penal, é efectuada através da combinação de uma cláusula genérica de agravação, prevista no nº 1 do art. 132º – a especial censurabilidade ou perversidade do agente ou seja, um especial tipo de culpa – com a técnica dos exemplos-padrão ou exemplos típicos, enunciados no nº 2 do mesmo artigo. Os exemplos-padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral que, por sua vez, corrige o conteúdo objectivo daqueles.
II. – A verificação, no caso concreto, de um ou mais exemplos-padrão não significa, necessariamente, a realização do especial tipo de culpa e consequente qualificação do homicídio ou qualificação da ofensa à integridade física, da mesma forma que, a não verificação de um qualquer exemplo-padrão não impede a qualificação, desde logo porque o uso, no nº 2 do art. 132º, da expressão “entre outras” indica que não estamos perante um elenco taxativo. Mas o que se exige é a verificação no caso concreto, de elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos ou seja, que embora não expressamente previstos na lei, correspondam ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão
III. - A especial censurabilidade – e é o conceito de censurabilidade que fundamenta a concepção normativa da culpa – prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente.
Decisão Texto Integral: 9

I. RELATÓRIO.
No 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Alcobaça, o arguido …, com os demais sinais nos autos, foi submetido a julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular, pronunciado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do C. Penal, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 146º, nº 1, do C. Penal, e pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, nº 1, do C. Penal (redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro).
Pela ofendida …, por si e em representação de sua filha menor, …, foi deduzido pedido de indemnização contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento às demandantes das quantias de € 1.000 e € 2.000, respectivamente, pelos danos não patrimoniais sofridos.
A ofendida … desistiu da queixa, desistência que foi aceite pelo arguido, e que foi homologada por decisão proferida em acta, tendo os autos prosseguido para conhecimento do crime de ofensa à integridade física qualificada que tem por ofendida a menor ….
A ofendida … desistiu da instância relativamente ao pedido de indemnização civil por si apresentado, desistência que foi igualmente homologada por sentença oportunamente proferida.
Em audiência foi comunicada ao arguido uma alteração da qualificação jurídica relativamente do imputado crime de ofensa à integridade física qualificado para o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do C. Penal.
A ofendida … declarou então desistir da queixa apresentada em representação de sua filha, desistência que o arguido aceitou, bem como declarou desistir da instância relativamente ao correspectivo pedido de indemnização civil.
Por decisão oportunamente proferida, foi homologada a desistência da instância do pedido de indemnização civil.
Por sentença de 30 de Junho de 2008, foi o arguido absolvido da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 146º, nºs 1 e 2, com referência ao art. 132º, nº 2, b), todos do C. Penal (na redacção em vigor na data da prática dos factos), e foi homologada a desistência da queixa apresentada pela ofendida …, em representação de sua filha menor, …, relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do C. Penal, resultante da convolação do imputado crime de ofensa à integridade física qualificada, e determinado o arquivamento dos autos.
Inconformado com a sentença, dela recorre o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da respectiva motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1 – O acto do arguido revela especial censurabilidade ou perversidade;
2 – Ao não considerar a especial censurabilidade ou perversidade, violou a douta sentença recorrida as disposições dos artigos 143º, 146º, nºs 1 e 2 e 132º, nº 2, alíneas a) e b), todos do C. Penal;
3 – Com efeito as referidas normas deverão ser apreciadas segundo o caso concreto, com base na factualidade provada e com base na atitude não conforme com os valores fundamentais defendidos pelo ordenamento jurídico-penal e atendendo ao desvalor social derivado da violação de um dever ético de especial respeito pelos descendentes e pela fragilidade física da menor em apreço.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deverá o recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença e substituindo-a por outra que condene o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1 e 146º, nºs 1 e 2, do Código Penal (na redacção anterior à Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro) conjugados com o artº 132º, nº 2, do mesmo Código.
(…)”.
O recorrido não respondeu ao recurso.
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual se pronunciou pela improcedência do recurso.
Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se a conduta do arguido, tal como foi fixada na matéria de facto provada da sentença em crise, preenche ou não, os elementos típicos do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 146º, nºs 1 e 2, com referência ao art. 132º, nº 2, todos do C. Penal.
Para a resolução desta questão importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:
A) Na sentença foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
1. No dia 27 de Maio de 2007, pelas 22.30 horas, …, na companhia de sua mãe, passeava pela Rua dos Casais de Tintos, Carvalhal, Turquel, levando pela mão a sua filha …, nascida a 17-04-2006.
2. A referida … é filha do arguido.
3. Naquele momento, o arguido, que ali passava de automóvel, parou-o e saiu do mesmo.
4. De seguida, foi em direcção à … e agarrou na menor …, começando a desferir-lhe bofetadas no rosto.
5. A … conseguiu agarrar novamente a menor e puxou-a para si.
6. Logo de imediato, o arguido agarrou na orelha esquerda da filha e apertou-lha com força, provocando-lhe uma equimose.
7. Com a sua conduta, o arguido produziu à menor … os ferimentos examinados a fls. 12 e 13, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos, nomeadamente "equimose do rebordo superior do pavilhão auricular esquerdo com 2,5 centímetros por 5 milímetros de coloração avermelhada e violácia'' e que foram a causa directa e necessária de 8 dias de doença.
8. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com a intenção concretizada de lesar a integridade física da sua filha menor e de lhe provocar dores e lesões.
9. Sabia o arguido que tal conduta não era permitida por lei.
10. O arguido trabalha como pedreiro, auferindo o vencimento mensal de € 500,00 (quinhentos euros).
11. Vive em casa própria e paga duas prestações mensais de € 100,00 (cem euros) e € 120,00 (cento e vinte euros).
12. Tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade.
13. O arguido não tem antecedentes criminais.
(…)”.
B) E foram considerados não provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
- que nas circunstâncias de tempo e local mencionadas em 1., M… levasse a sua filha ao colo;
- que não ignorasse o arguido que a conduta levou a efeito contra a sua filha era altamente censurável atendendo à idade da mesma;
- que na hora e no dia a que remontam os factos o arguido se encontrasse em casa do Sr. … e da Srª …, onde jantou na companhia do filho do casal, … e dos seus pais, tendo aí chegado por volta das 18 horas;
- que seja frequente o ora arguido passar os fins-de-semana em casa dos supra mencionados que também são os seus patrões, com quem estabelece uma relação de amizade;
- que concretamente neste dia o ora arguido tenha ido a casa dos seus patrões para combinar com o filho destes o encontro junto ao tribunal, no dia seguinte, para este testemunhar no âmbito do Processo 2204/06.3TBACB (Regulação do Poder Paternal), que corre os seus termos no 1º Juízo deste tribunal;
- que tenham iniciado o jantar pelas 21h30, tendo o arguido aí permanecido até à meia-noite, hora em que regressou a sua casa na companhia dos seus pais, tendo aí chegado, 10 minutos após a meia-noite;
- que o arguido não tenha passado pelo local onde ocorreram os factos.
(…)”.
Do preenchimento do tipo do crime de ofensa à integridade física qualificada
1. O arguido foi acusado e pronunciado pela prática, além do mais, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 146º, nº 1, ambos do C. Penal.
Por sentença proferida nos autos foi o arguido foi o arguido absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 146º, nºs 1 e 2, com referência ao art. 132º, nº 2, b), todos do C. Penal (na redacção em vigor na data da prática dos factos), e foi homologada a desistência da queixa apresentada relativamente ao convolado crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do C. Penal.
E a questão a decidir no recurso é a de saber se, face aos factos provados está ou não preenchido o tipo do crime de ofensa à integridade física qualificada.
Vejamos pois, se assiste razão ao Digno Magistrado recorrente.
O tipo base do crime de ofensa à integridade física encontra-se previsto no art. 143º, nº 1, do C. Penal que dispõe:
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.
Trata-se de um crime material e de dano, que tutela a integridade física da pessoa humana, que tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:
- [Tipo objectivo] Que o agente pratique ofensas no corpo ou ofensa na saúde de outra pessoa (basta uma qualquer ofensa, independentemente da dor ou sofrimento causados, mas não pode ser insignificante, de acordo com critérios objectivos);
- [Tipo subjectivo] O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto (em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal).
Constando dos factos provados da sentença em crise que o arguido agarrou a menor …, sua filha, então com 13 meses e 10 dias, e começou a desferir-lhe bofetadas no rosto e que, tendo a mãe da menor conseguido puxá-la para si, tendo então o arguido agarrado na orelha esquerda da … e apertou-a com força, causando-lhe desta forma uma equimose do rebordo superior do pavilhão auricular esquerdo com 2,5 centímetros por 5 milímetros de coloração avermelhada e violácea, que demandou para a cura um período de oito dias de doença, preenchido se mostra o tipo objectivo do crime em questão.
E constando igualmente dos factos provados da sentença que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com a intenção concretizada de lesar a integridade física da filha menor, sabendo que tal conduta não era permitida pela lei, dúvidas não restarão também do preenchimento do tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física simples.
2. O art. 146º, do C. Penal, na redacção em vigor na data da prática dos factos ou seja, na redacção anterior à da lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, importou para o campo das ofensas corporais o fundamento da qualificação do homicídio ou seja, a ideia da especial censurabilidade ou perversidade do agente, bem como a técnica dos exemplos-padrão.
O funcionamento do art. 146º, do C. Penal pressupõe, como resulta da sua previsão, a verificação de uma ofensa à integridade física simples, de uma ofensa à integridade física grave, ou de uma ofensa à integridade física agravada pelo resultado, revelando a conduta do agente, atentas as concretas circunstâncias em que se desenrolou, uma especial censurabilidade ou perversidade.
A qualificação do homicídio no C. Penal e portanto, a qualificação da ofensa à integridade física que daquela é tributária, é efectuada através da combinação de uma cláusula genérica de agravação, prevista no nº 1 do art. 132º – a especial censurabilidade ou perversidade do agente ou seja, um especial tipo de culpa – com a técnica dos exemplos-padrão ou exemplos típicos, enunciados no nº 2 do mesmo artigo. Os exemplos-padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral que, por sua vez, corrige o conteúdo objectivo daqueles.
Assim, a verificação, no caso concreto, de um ou mais exemplos-padrão não significa, necessariamente, a realização do especial tipo de culpa e consequente qualificação do homicídio ou qualificação da ofensa à integridade física, da mesma forma que, a não verificação de um qualquer exemplo-padrão não impede a qualificação, desde logo porque o uso, no nº 2 do art. 132º, da expressão “entre outras” indica que não estamos perante um elenco taxativo. Mas o que se exige é a verificação no caso concreto, de elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos ou seja, que embora não expressamente previstos na lei, correspondam ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 26, Prof. Augusto Silva Dias, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2ª Ed., AAFDL, 2007, 25 e ss., e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, 73). Nestas condições, porque se mostra plenamente respeitado o princípio da legalidade, é admissível o homicídio qualificado atípico e, pelas mesmas razões, a ofensa à integridade física qualificada atípica.
Em síntese, as circunstâncias qualificativas do homicídio, comuns à ofensa à integridade física, não são de funcionamento automático, e o respectivo elenco é meramente exemplificativo.
Pode dizer-se que a qualificação do homicídio [e também da ofensa à integridade física] se baseia num especial tipo de culpa, espelhado na especial censurabilidade ou perversidade do agente.
A especial censurabilidade – e é o conceito de censurabilidade que fundamenta a concepção normativa da culpa – prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 29).
Enquanto a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativamente ao facto, a especial perversidade reporta-se aos componentes da culpa relativas ao agente (cfr. Teresa Serra, ob. cit., 64).
Assim, ainda que a qualificação da conduta homicida seja sempre determinada por um mais acentuado desvalor da atitude do agente, no elenco dos exemplos-padrão, enquanto uns se fundam numa atitude mais desvaliosa do agente, outros há que radicam num mais acentuado desvalor da acção ou da conduta.
Para a questão sub judice relevam, face aos factos provados, dois dos exemplos padrão que constam do art. 132º, nº 2, do C. Penal, na redacção anterior à da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, a saber, as suas alíneas a) e b).
Dispõe a alínea a), citada:
(É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior… a circunstância de o agente):
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima; (…)”.
Aqui, ainda que o agente, por ter vencido as contra-motivações éticas que radicam dos laços de parentesco próximo [revelando uma maior energia criminosa], indicie uma especial censurabilidade ou perversidade estão terão, em todo o caso, de se revelarem também através das qualidades desvaliosas da personalidade do agente, manifestadas no acto (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 30).
E dispõe a alínea b), citada:
(…):
b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; (…)”.
A estrutura valorativa deste exemplo encontra-se ligada à situação de desamparo da vítima, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez. Aqui, a especial censurabilidade ou perversidade radica no maior desrespeito pela pessoa humana, face à conhecida, pelo agente, impossibilidade de defesa.
Posto isto.
3. Tendo em conta os factos provados que constam da sentença, e para não nos repetirmos inutilmente, preenchido que está o tipo do crime de ofensa à integridade física simples, do art. 143º, nº 1, do C. Penal, atentemos apenas nos factos provados que podem relevar para a qualificação da conduta do arguido.
Assim:
- O arguido é pai da ofendida …, nascida a 17 de Abril de 2006;
- No dia 27 de Maio de 2007, tendo a ofendida 1 ano, 1 mês e 10 dias de idade, quando passeava na rua pela mão de sua mãe, o arguido, que passava de carro, parou-o, saiu dele, agarrou na filha e começou a desferir-lhe bofetadas no rosto;
- Tendo a mãe da menor puxado esta para si, de imediato o arguido agarrou na orelha esquerda da filha e apertou-a com força, causando-lhe uma equimose no pavilhão auricular esquerdo, que foi causa de 8 dias de doença.
A Mma. Juíza a quo, que apenas ponderou a possibilidade de qualificação pela alínea b), do nº 2, do art. 132º, do C. Penal (na redacção em vigor na data dos factos), afastou tal qualificação nos seguintes termos: «Conforme vem provado, era intuito do arguido ofender corporalmente a ofendida, no entanto, da matéria supra dada como provada não resulta que o mesmo tenha agido com uma especial censurabilidade ou perversidade que permita qualificar a sua conduta, não sendo tal qualificativa de verificação automática só pelo simples facto da sua filha ser menor de idade.».
Ressalvado sempre o devido respeito, não concordamos com este entendimento.
Contrariamente ao pretendido pelo Digno Magistrado recorrente na sua motivação, não existem nos autos elementos de facto que permitam concluir pela inexistência de coabitação entre o arguido e a mãe da menor. E a circunstância de o arguido ser solteiro – assim consta na identificação da sentença – não permite a conclusão de que não coabita com a mãe de sua filha.
No entanto, temos por certo que a situação em análise não é enquadrável no conceito de ofensa corporal socialmente adequada isto é, provocada no exercício do poder de correcção dos pais. E isto porque tal poder não pode ser razoavelmente exercido através do desferimento de bofetadas e do apertar violento de uma orelha, de um bebé com, note-se bem, 13 meses de idade.
Imaginar um menor mais indefeso do que uma criança com 13 meses de idade é difícil de conceber. E esta natural impossibilidade de defesa por parte da filha não era nem podia ser desconhecida do arguido.
Não se encontra, no elenco dos factos provados, uma razão, por pequena que seja, que permita minimamente compreender o comportamento do arguido, até porque este, no exercício legítimo do direito ao silêncio, nada quis explicar.
Mas o que resulta desse elenco é um comportamento de repetida violência para com uma criança de muito tenra idade, traduzido em várias bofetadas no rosto, terminado, quando a mãe, vindo em seu socorro, a conseguiu agarrar, com um aperto com força da orelha esquerda da menor que, tal como se mostra descrito, não teve outro propósito que não tenha sido o de causar dor.
Ora, quem dolosamente agride, seja em que circunstâncias forem, uma criança de treze meses, naturalmente que se torna merecedor de um severo e muito especial juízo de censura pelo acrescido desvalor que tal conduta encerra.
Assim, a conduta do arguido, relativamente à sua filha de 13 meses de idade, é reveladora de uma especial censurabilidade, que conduz á qualificação da ofensa á integridade física por si praticada.
A apurada conduta do arguido preenche portanto, o tipo objectivo e subjectivo do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 146º, nºs 1 e 2, com referência ao art. 132º, nº 2, b), todos do C. Penal (na redacção em vigor na data da prática dos factos).
Este crime tem natureza pública, já que o respectivo procedimento criminal não depende de queixa.
Assim sendo, é ineficaz a desistência de queixa apresentada pela mãe da menor relativamente aos factos que o integram, e que veio a ser homologada por dos factos se ter feito diferente qualificação.
4. Decidido que os factos praticados pelo arguido integram a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, cumpre agora proceder à escolha e à determinação da medida concreta da pena.
A moldura penal abstracta a considerar, atentas as disposições conjugadas dos arts. 143º, nº 1 e 146º, nº 1, do C. Penal (na redacção em vigor na data da prática dos factos), é a de 40 dias a 4 anos de prisão ou multa de 13 dias a 480 dias.
4.1. Estabelece o art. 40º, nº 1 do C. Penal, que tem por epígrafe “Finalidades da penas e das medidas de segurança”, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente da sociedade. Mas, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo artigo).
Doutrina o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, 214 e 227 e ss.) que culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser determinada a medida concreta da pena. A prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto. A culpa, dirigida para a pessoa do agente do crime, constitui o limite inultrapassável daquela.
E assim, a medida da pena será dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – temperada pela necessidade de reintegração social do agente, e com o limite inultrapassável da medida da culpa.
4.1.1. O critério de escolha da pena é-nos dado pelo art. 70º do C. Penal: quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência a esta última sempre que ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Atentas as concretas circunstâncias em que o crime foi praticado e a inexistência de antecedentes criminais do arguido, e ainda que o mesmo não tenha revelado quaisquer sinais de interiorização da sua culpa, entende-se que a opção por pena não privativa da liberdade assegura adequada e suficientemente as necessidades de prevenção e portanto, os fins da punição.
Deve pois o arguido ser punido com pena de multa.
4.1.2. A determinação da medida concreta da pena é feita em função da culpa do agente e das necessidades de prevenção, devendo o tribunal para tal efeito a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal).
Assim, e entre outras, deve o tribunal atender ao grau de ilicitude do facto, ao seu modo de execução, à gravidade das suas consequências, ao grau de violação dos deveres impostos ao agente, à intensidade do dolo ou da negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, à motivação do agente, às condições pessoais e económicas do agente, à conduta anterior e posterior ao facto, e à falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).
Não é de desprezar o grau de ilicitude do facto, e não sendo graves as suas consequências, também não foram, propriamente, insignificantes.
Violou o arguido e em grau elevado, o dever que sobre si impende de proteger a filha menor.
É elevada a intensidade do dolo com que actuou, bem demonstrada na repetição das agressões.
Por outro lado, o arguido não tem antecedentes criminais, é modesta a sua situação económica e mostra-se inserido em termos sociais e laborais.
Tudo ponderado, atenta a moldura penal abstracta aplicável, considera-se adequada e plenamente suportada pela culpa do arguido a pena de 180 dias de multa.
4.3. Dispõe o nº 2 do art. 47º do C. Penal (na redacção em vigor na data dos factos) que, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 1 e € 498,80, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
A amplitude dada ao montante diário da multa prende-se com a realização do princípio da igualdade de ónus e sacrifícios por forma a esbater a crítica apontada a esta pena que é a de ter distintos pesos, conforme a situação económica do agente (cfr. Cons. Maia Gonçalves, C. Penal Anotado, 8ª Ed., 307).
Na sentença recorrida apurou-se que o arguido é pedreiro, auferindo o vencimento mensal de € 500, vive em casa própria e paga duas prestações mensais que totalizam € 220.
A aplicação de uma pena de multa deve sempre significar a verdadeira função de uma pena e por isso, tem que constituir um real sacrifício para o condenado. Só assim este poderá sentir o juízo de censura que a condenação significa, bem como só assim se dará satisfação às exigências de prevenção. Porém, não pode deixar de ser assegurado ao condenado o mínimo necessário e indispensável à satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar (cfr. Acs. do STJ de 02/10/1997, CJ, S, V, III, 183 e da R. de Coimbra de 17/04/2002, CJ, XXVII, II, 57).
Decorre dos factos apurados que a situação económica do arguido, podendo considerar-se modesta, está bem longe de ser precária. Acresce que a lei prevê mecanismos de flexibilização do cumprimento da pena de multa, quando tal se mostre justificado (cfr. art. 47º, nºs 3 e 4, do C. Penal).
Por tudo isto, entende-se fixar em € 6 o montante diário da pena de multa.
A Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, alterou o nº 2 do art. 47º, do C. Penal, mas apenas no que respeita ao quantitativo diário da multa, que agora passou a variar entre € 5 e € 500.
Dando cumprimento ao disposto no art. 2º, nº 4, do C. Penal, considerando os mesmos elementos relativos á situação económica e financeira do condenado e estes novos limites, pela lei nova, o quantitativo diário da multa seria fixado em € 8.
Em consequência, deve o arguido ser punido pela lei em vigor na data da prática dos factos.
Concluindo, vai o arguido condenado na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 6, o que perfaz a multa global de € 1.080.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso. Consequentemente, decidem:
A) Revogar a sentença recorrida.
B) Condenar o arguido …, como autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 146º, nºs 1 e 2, com referência ao art. 132º, nº 2, b), todos do C. Penal (na redacção anterior à da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro), na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz a multa global de € 1.080 (mil e oitenta euros).