Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
49/13.3TBCLB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: ORDEM DE REALIZAÇÃO DA PENHORA
PENHORA DE VENCIMENTO
PENHORA DE IMÓVEL
EXCESSO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CELORICO DA BEIRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 751.º, N.ºS 3 E 4, E 784.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 334.º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I – Não sendo previsível que a penhora do vencimento do executado permita a satisfação integral do exequente dentro dos prazos referidos nos n.ºs 3 e 4 do art.º 751.º do CPC e não havendo notícia de outros bens, nada obsta à penhora de um bem imóvel (ou de direito que sobre ele recaia) ainda que o valor deste não se adeque por excesso ao valor do crédito exequendo.

II – A penhora de imóvel – ou de direito sobre imóvel – nas circunstâncias descritas não constitui abuso de direito.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Apelação nº 49/13.3TBCLB-B.C1

Tribunal recorrido: Comarca da Guarda - C.Beira - Juízo C. Genérica

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito de execução instaurada em 01/04/2013, onde figura como exequente Banco 1..., S.A e como executado AA (melhor identificado nos autos) e onde era peticionado o pagamento da quantia global de 19.088,55€ (capital e juros vencidos) acrescida de juros vincendos e respectivo imposto de selo, foi penhorado o direito do Executado a ½ do prédio urbano destinado a habitação descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n º ...65 da freguesia ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...87 da referida freguesia.

O Executado veio deduzir oposição a essa penhora, alegando, em resumo:

- Que, no âmbito desta execução, já se encontra penhorado o seu vencimento, estando a ser efectuado um desconto mensal nunca inferior a 400,00€;

- Que o imóvel objecto de penhora está hipotecado ao Banco 2... por força de contrato de mútuo que o Executado e a comproprietária do imóvel estão a cumprir, mediante o pagamento da quantia mensal de 300,00€;

- Que a manutenção da penhora efectuada nos autos implicará que a credora hipotecária venha reclamar o seu crédito, apesar de o mesmo não estar em incumprimento, não sendo crível que a aqui exequente venha a receber o que quer que seja da venda do prédio, estando, por isso, em causa uma penhora de um bem que só subsidiariamente responde pela divida exequenda, fundamento que tem suporte no disposto no artigo 784.º nº 1 al b) do C. P. C.;

- Que, ainda que assistisse à Exequente o direito à penhora do imóvel, a mesma estaria a abusar desse direito;

- Que a divida exequenda cifra-se em cerca de 26.000,00€ (já com inclusão dos honorários do Sr Agente de Execução), muito longe assim dos 33.564,36€ que constam da notificação da penhora de ½ indiviso do imóvel.

Com esses fundamentos, conclui pedindo o levantamento e cancelamento da penhora em questão.

O Exequente respondeu, sustentando a improcedência da oposição e alegando, em resumo, que o valor em débito ascendia, em 13/05/2020, ao valor de 33.108,36€ e que a penhora efectuada sobre o vencimento do Executado é manifestamente insuficiente para o pagamento do pedido exequendo e das custas, atento os juros e o imposto de selo respectivo.

Após produção de prova, foi proferida decisão que, julgando improcedente a oposição à penhora, decidiu manter a penhora realizada nos autos sobre a 1/2 indivisa do imóvel em questão (acima identificado).

Inconformado com tal decisão, o Executado veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

a) O exequente promoveu e concretizou a penhora do vencimento do executado, encontrando-se a ser descontada mensalmente uma quantia variável, mas nunca inferior a 400,00€, sendo que, os subsídios de Natal e férias são descontados na integra.

b) O exequente, não satisfeito com tal penhora que o executado vem cumprindo religiosamente, insistiu em penhorar ½ indivisa do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia ..., concelho ... sob o artigo ...87, sendo que a restante metade pertence a BB que não é executada nos autos.

c) Sobre tal prédio urbano pende hipoteca ao Banco 2..., no âmbito da qual o executado e BB pagam mensalmente cerca de 300,00€.

d) Por outro lado, foi erradamente julgado provado que em 13/05/2020 o valor da divida exequenda ascendia a 33,156,90€, não tendo havido o cuidado de consultar o Sr Agente de Execução, este sim a única entidade que detém o controlo dos créditos e débitos, quantia que, pelas contas do oponente não ultrapassava 26.000,00€ á data da penhora do bem imóvel.

e) Atendendo a que o oponente deveria receber cerca de 720,00€ líquidos de subsídio de férias e outros 720,00€ de subsídio de Natal, multiplicadas tais quantias por seis, temos um desconto acrescido de 4.320,00€, redundando assim que a quantia exequenda se cifrará em cerca de 14.480,00€ que ficará saldada em cerca de dois anos.

f) A penhora de ½ indiviso do prédio urbano em compropriedade, como é o caso sub judice, não parece possível ao abrigo do disposto no artº 743 nº 1 do C.P.C., e a sua venda sempre determinaria o cumprimento do disposto no artº 781 nº 2 do mesmo diploma legal e implicaria a inevitável reclamação do crédito pelo credor Banco 2....

g) O executado encontra-se a cumprir religiosamente as suas obrigações quer com a credora bancária do imóvel, quer com a aqui exequente, a mais não podendo nem sendo obrigado, sempre tendo pugnado pelo cumprimento da obrigação de pagamento da quantia exequenda, fazendo inúmeras propostas nesse sentido, as quais nunca tiveram recetividade por parte da exequente na medida em que a elas nunca deu sequer resposta.

h) A exequente sabe muito bem que, na graduação judicial de créditos que se segue à penhora de ½ indiviso da habitação, receberá em primeiro lugar o banco credor hipotecário, não sendo crível que aquela venha a receber o que quer que seja da venda do prédio agora penhorado.

i) Contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido, trata-se assim de uma penhora de um bem que só subsidiariamente responde pela divida exequenda, fundamento que tem suporte no disposto no artigo 784 nº 1 al b) do C. P. C. que aqui se invoca.

j) A penhora de ½ indiviso do prédio urbano constitui uma manifesta violação do princípio da proporcionalidade previsto nos artigos 735 nº 3 e 751 do C.P.C.

k) Ainda que assistisse algum direito à exequente na penhora do referido bem imóvel, a mesma estaria a abusar desse direito.

l) Esta penhora é manifestamente pressionante, angustiante e agressiva para o património do executado quando se encontra a pagar a quantia exequenda à razão de mais de 520,00€ por mês se levarmos em consideração que aos 400,00€ mensais acrescem pelo menos 1,400,00€ anuais dos subsídios de férias e natal.

m) Com a penhora do ½ indiviso do bem imóvel, a exequente excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social do direito.

n) Credores e devedores vivem em sociedade e, viver nestas circunstâncias, importa alguma condescendência social, respeito pelo ser humano que quer pagar o que deve, e está a fazê-lo, não havendo a mínima razão para acreditar que deixe de pagar na medida em que tem um emprego estável como motorista e manobrador de máquinas.

o) Contrariamente à argumentação do Tribunal recorrido, a atuação abusiva da exequente encaixa nesta situação em apreço, em que a rigidez da norma que possibilita a penhora de tal ½ indivisa do bem imóvel, cria uma situação clamorosa que ofende o sentimento de justiça, excedendo os limites da boa fé e dos bons costumes, ofendendo o fim social do direito aplicável.

p) Foram violados pelo Tribunal recorrido as disposições dos artigos 735 nº 3, 743 nº 1, 751, 784 nº 1 al b) do C.P.C. e 334 do C. Civil

Conclui pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue totalmente procedente a oposição.

A Exequente respondeu ao recurso, sustentando a sua improcedência.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

i. Saber se se verifica (ou não) alguma das situações que, nos termos da lei, podem servir de fundamento à oposição à penhora, apreciando, mais concretamente, a questão de saber se a penhora efectuada atingiu bem que só subsidiariamente respondia pela dívida exequenda ou se essa penhora é excessiva e viola o princípio da proporcionalidade.

ii. Saber – caso se conclua pela inexistência de fundamento de oposição à penhora – se a realização da penhora, nas circunstâncias em que foi efectuada, corresponde a abuso de direito.


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III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. No âmbito dos autos principais foi penhorado o vencimento do executado, encontrando-se a entidade patronal do executado a proceder ao desconto mensal no vencimento daquele de quantia variável, mas nunca inferior a 400,00€.

2. O prédio urbano inscrito na matriz da freguesia ..., concelho ... sob o artigo ...87 e descrito na CRP ... na ficha nº. ...65, cuja 1/2 indivisa foi penhorada nos autos principais, pertence metade ao executado e metade a BB, o qual se encontra hipotecado ao agora Banco 2... por força de contrato de mútuo celebrado com tal instituição bancária, pelo qual despendem ambos a quantia de cerca de 300,00€ mensais.

3. Em 13.05.2020, o valor da dívida exequenda ainda em falta era de 33.156,90€.


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IV.

O Apelante começa por pôr em causa a matéria de facto, dizendo que foi erradamente julgado provado que em 13/05/2020 o valor da divida exequenda ascendia a 33,156,90€. Argumenta que não houve o cuidado de consultar o Sr. Agente de Execução (a única entidade que detém o controlo dos créditos e débitos) e que, pelas suas contas, esse valor não ultrapassava 26.000,00€ á data da penhora do bem imóvel.

Não vale, no entanto, contra a decisão o argumento – invocado pelo Apelante – de que não houve o cuidado de consultar o Sr. Agente de Execução porque, na verdade, o valor que se julgou provado estar em dívida em 13/05/2020 resultou da nota discriminativa que, nessa data, foi junta aos autos pelo Sr. Agente de Execução, onde são discriminados os valores devidos.

Nessas circunstâncias e sendo certo que o Apelante não põe em causa, de forma credível e sustentada, o cálculo ali efectuado, sendo certo que não expõe os termos dos cálculos que efectuou e que, segundo as “suas contas” – conforme diz – permitiam chegar a valor que não ultrapassava os 26.000,00€, não encontramos razões para alterar o decidido.

Vejamos então se assiste razão ao Apelante na oposição que vem deduzir à penhora efectuada sobre o direito que detém sobre o imóvel acima identificado.

A propósito da oposição à penhora, o n.º 1 do art.º 784.º do CPC dispõe nos seguintes termos:

Sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos:

a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada;

b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;

c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência”.

A decisão recorrida indeferiu a oposição com base na seguinte argumentação:

- Considerou, em primeiro lugar, que, apesar de o Executado fundamentar a sua oposição na alínea b) da citada disposição legal, não se configurava a situação aí prevista, uma vez que não resultava de qualquer norma legal que o bem concretamente penhorado ao ora oponente apenas devesse responder pela dívida exequenda subsidiariamente;

- Considerou, em segundo lugar, que a penhora em causa também não se mostrava excessiva em face da dívida exequenda nem ofendia o princípio da proporcionalidade, uma vez que o bem em causa não será suficiente para pagamento da quantia exequenda e despesas de execução, sendo certo que o prédio em questão está onerado com uma hipoteca;

- Considerou, por último, que não existia qualquer abuso de direito.

Sem atacar ou contrariar verdadeiramente os argumentos da decisão recorrida – como era suposto que fizesse –, o Apelante continua, no presente recurso (como havia feito inicialmente), a invocar em fundamento da sua pretensão, a alínea b) da citada disposição legal, por estar em causa – segundo alega – um bem que só subsidiariamente responde pela divida exequenda.

Ora, pensamos ser claro e evidente que não assiste, nesse ponto, qualquer razão ao Apelante; e não lhe assiste razão porque, ao contrário do que diz, não existe qualquer fundamento legal – que, aliás, também não invoca – para considerar que o bem em questão apenas responda pela dívida a título subsidiário.

Um bem responde subsidiariamente por determinada dívida quando ele apenas responda na falta de outros bens que, nos termos da lei, devam responder em primeiro lugar.

Conforme se refere na decisão recorrida – citando GERALDES, António Santos Abrantes et al – Código de Processo Civil Anotado. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2020. p. 178 –, estão aí em causa as seguintes situações: “penhora inicial sobre outros bens que não aqueles sobre que incida a garantia real, quando se executa a dívida provida de garantia real (art. 752º, nº. 1); penhora de bens do devedor subsidiário, sem excussão prévia dos bens do devedor principal, desde que o devedor subsidiário objecte com o benefício da excussão prévia (art. 638º, nº. 1, do CC; […]); em execução movida contra os dois cônjuges, a penhora de bens próprios de qualquer deles, havendo ainda bens comuns (art. 1695º, nº. 1, do CC); quando o executado é casado mas foi demandado isoladamente, a penhora de bens comuns do casal, dispondo o executado de mais bens próprios passíveis de penhora (art. 740º, nº. 1; art. 1969º, nº. 1, do Código Civil […]).

Ora, nenhuma dessas situações se verifica nos autos e, estando em causa um bem (direito sobre um imóvel) que está integrado no património do devedor (que é um devedor principal e não subsidiário) e que, responde, em princípio, pelas suas dívidas nos mesmos termos em que respondem os demais bens integrados no seu património, também não foi invocada e alegada qualquer outra situação que, nos termos da lei, pudesse justificar a conclusão de que o bem aqui em causa apenas subsidiariamente respondia pela dívida em causa.

Assim e ao contrário do que sustenta o Apelante, não se verifica a situação prevista na alínea b) do n.º 1 do citado art.º 784.º.

 

Sendo certo que também não se verifica a situação prevista na alínea c) da referida disposição legal – nada foi invocado nesse sentido – resta saber se se verifica (ou não) a situação prevista na alínea a).

Refira-se que, apesar de não lhe aludir expressamente, não deixa de ser essa a situação e o fundamento que são invocados pelo Apelante quando vem sustentar que, em face da penhora (já efectuada) do seu vencimento, a penhora referente ao referido imóvel é excessiva e viola o princípio da proporcionalidade previsto nos artigos 735.º, n.º 3, e 751.º do CPC (que sustenta terem sido violados pela decisão recorrida).

Analisemos então a questão nessa perspectiva.

O art.º 735.º, n.º 3, dispõe:

A penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, as quais se presumem, para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de ulterior liquidação, no valor de 20 %, 10 % e 5 % do valor da execução, consoante, respetivamente, este caiba na alçada do tribunal da comarca, a exceda, sem exceder o valor de quatro vezes a alçada do tribunal da Relação, ou seja superior a este último valor”.

Consagra-se aqui o princípio da proporcionalidade da penhora, no sentido de evitar a ofensa do património do executado/devedor que não encontre justificação na necessidade de satisfação do interesse do credor, devendo a penhora restringir-se aos bens que sejam efectivamente necessários para o pagamento da quantia exequenda e despesas da execução.

O art.º 751.º regula a ordem de realização da penhora e os casos em que ela pode ser reforçada ou substituída, resultando do regime aí previsto que o legislador pretendeu conciliar o interesse do devedor em ver limitada a penhora aos bens que sejam necessários para o pagamento da dívida (princípio da proporcionalidade da penhora atrás referido) com o interesse do credor em obter a satisfação do seu crédito em prazo razoável e não muito dilatado. Daí que tenha estabelecido no n.º 1 que “A penhora começa pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostrem adequados ao montante do crédito do exequente”, estabelecendo, portanto, a regra de que a escolha dos bens a penhorar deve tomar em conta aqueles dois interesses (do credor e do devedor), mas fazendo ceder a regra da proporcionalidade da penhora, nas situações previstas no n.ºs 3 e 4, ou seja, nas situações em que a observância dessa regra afectaria, de modo considerável, o interesse do credor em obter a satisfação do seu crédito em prazo razoável, ali se determinando o seguinte:

(…)

3 - Ainda que não se adeque, por excesso, ao montante do crédito exequendo, é admissível a penhora de bens imóveis que não sejam a habitação própria permanente do executado, ou de estabelecimento comercial, desde que a penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de seis meses.

4 - Caso o imóvel seja a habitação própria permanente do executado, só pode ser penhorado:

a) Em execução de valor igual ou inferior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 30 meses;

b) Em execução de valor superior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses.

(…)”.

No caso dos autos, já se encontrava efectuada a penhora do vencimento – estando a ser efectuado um desconto mensal de quantia variável, mas não inferior a 400,00€ – sustentando o Apelante que essa penhora era suficiente e que, como tal, não era necessária – e é excessiva – a penhora que incidiu sobre o direito de que era titular sobre o imóvel em causa.

Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.

Ainda que a penhora do vencimento pudesse assegurar a satisfação da totalidade da dívida exequenda (e nunca se pode ter como certo que tal aconteça, uma vez que, por qualquer razão, o contrato de trabalho pode vir a cessar), a verdade é que essa penhora não satisfaz o direito do credor de obter a satisfação do seu direito em prazo razoável. Com efeito, se é certo que, em 13/05/2020, estava em dívida o valor global de 33.156,90€, fácil será perceber que, ainda que se desconsiderem os juros que continuarão a vencer, com um desconto mensal de 400,00€ só ao fim de 83 meses (quase sete anos) se conseguiria alcançar o valor devido pelo Executado.

Nessas circunstâncias, ainda que o valor do bem em questão não se adequasse por excesso ao valor do crédito exequendo, a sua penhora seria permitida à luz do disposto no art.º 751.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, porque a penhora do vencimento não permitia a satisfação integral do credor nos prazos aí mencionados.

Note-se que, ainda que a penhora do vencimento permitisse saldar a totalidade das responsabilidades no prazo de dois anos (como alega o Apelante na conclusão e) das suas alegações), a verdade é que, ainda assim, estaria legitimada a penhora do direito sobre o imóvel à luz do disposto na norma acima citada, uma vez que aquele prazo de dois anos sempre excederia claramente o prazo de seis meses referido no n.º 3. Ainda que estivesse em causa a habitação própria e permanente do Executado, a situação dos autos (tendo em conta o valor da execução) caía no âmbito de previsão da alínea b) do n.º 4 e aquele prazo de dois anos (a que alude o Apelante) sempre excederia o prazo de 12 meses aí referido.

Concluímos, portanto, que, ainda que a quantia em dívida fosse aquela que é referida pelo Apelante e ainda que a penhora do seu vencimento permitisse saldar a totalidade das suas responsabilidades no prazo de dois anos (como refere), a penhora efectuada sobre o direito que detém sobre o imóvel sempre estaria legitimada à luz do disposto no art.º 751.º e, mais concretamente, à luz do disposto nos respectivos n.ºs 3 e 4, não se verificando, por isso, o fundamento de oposição à penhora previsto na alínea a) do art.º 784.º

A decisão recorrida não violou, portanto, o disposto nos artigos 735.º, n.º 3, e 751.º do CPC, tal como não violou o art.º 784.º.

Sustenta, todavia, o Apelante que, ainda que o Exequente tivesse o direito de penhorar o referido bem, o exercício desse direito sempre corresponderia a um abuso de direito.

Não vislumbramos como e porquê.

O abuso de direito é previsto no art.º 334.º do CC onde se dispõe que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Pressupondo, logica e naturalmente, a existência de um direito, o que está em causa no abuso de direito é o excesso no respectivo exercício, excesso que é delimitado/determinado em função dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.

A boa-fé – subjacente ao conceito de abuso de direito –, significa que “…as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros[1], sendo que, na aplicação desse princípio, o juiz “…deverá partir das exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos[2]. O que releva, pois, para efeitos de abuso de direito é saber se o exercício do direito corresponde ou não a uma conduta que, naquelas circunstâncias e, eventualmente, em função de comportamentos anteriores, não se pauta pela honestidade e lealdade para com a outra parte, defraudando, de algum modo, a confiança e a expectativa desta.

No que respeita ao fim social ou económico do direito, importará atender ao fim (seja ele social ou económico) a que o direito está subordinado e com vista ao qual foi concedido, sendo ilegítima a “…utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução do interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido[3].

Para que se possa falar em abuso de direito, será ainda necessário que a conduta desonesta, incorrecta, desleal ou lesiva da confiança legitimamente criada na outra parte – contrária, portanto, à boa-fé – ou o excesso dos limites impostos pelo fim social ou económico do direito sejam manifestos, claros e notórios, de tal forma que o exercício do direito possa ser considerado como clamorosamente ofensivo da justiça ou sentimento jurídico socialmente dominante.

Mas, tendo em conta essas considerações, a verdade é que nada resultou provado que permita concluir pela existência de abuso de direito no exercício do direito de efectuar a penhora aqui em causa.

Na verdade, o que emerge dos autos é o exercício, em circunstâncias perfeitamente normais e em conformidade com a lei, do direito que assiste ao credor de exigir a cobrança coerciva do crédito que o devedor não cumpriu voluntariamente, não resultando provada – e não tendo sido sequer alegada – qualquer circunstância anómala em função da qual se pudesse afirmar que o exercício desse direito excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.

Segundo o Apelante, existiria abuso de direito porque, estando já a ser efectuados descontos no seu vencimento e não havendo razão para acreditar que tais descontos deixem de ser efectuados, a penhora agora efectuada é pressionante, angustiante e agressiva para o património do executado.

Salvo o devido respeito, não tem razão.              

A penhora efectuada traduz apenas o exercício do direito do credor de agredir o património do devedor para o efeito de obter a satisfação do seu crédito. No caso, a penhora do vencimento já efectuada era insuficiente – na medida em que, além de não haver garantia do efectivo desconto de prestações futuras até à integral satisfação do crédito, ela não permitia a satisfação do crédito nos prazos referidos no art.º 751.º, n.ºs 3 e 4 – e, portanto, era legítimo o reforço dessa penhora, nos termos referidos no n.º 5 da citada disposição legal, mediante a penhora de outros bens e, ainda que o direito sobre o imóvel não se adequasse por excesso ao valor do débito, a sua penhora era legítima ao abrigo do disposto nos n.ºs 3 e 4 da citada disposição legal desde que não existissem outros bens que permitissem a satisfação integral do crédito nos prazos assinalados (o que parece ser o caso, já que o Executado/Apelante não alude à existência de outros bens).

Nessas circunstâncias, estando o direito a ser exercido em conformidade e nos termos da lei, para que se configurasse abuso de direito era necessário que se provasse qualquer circunstância anómala em função da qual se pudesse afirmar que esse exercício traduzia um comportamento desconforme à boa fé ou um exercício do direito em circunstâncias que extravasassem os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito.

Nada se provou – e nada se alegou – nesse sentido.

A penhora pode até ser pressionante, angustiante e agressiva para o Apelante, mas ela surge como consequência normal, expectável e legal da sua conduta; foi o Apelante que contraiu a obrigação em causa e foi o Apelante que a incumpriu no momento adequado, sabendo, naturalmente, que, em face disso, o credor tinha o direito de agredir o seu património no sentido de obter a satisfação coerciva do seu direito. E, como supra se referiu, o credor tem o direito de agredir o património do devedor nos termos que, sendo conformes à lei, sejam necessários para obter a satisfação do seu crédito em prazo razoável e é apenas isso que está em causa com a penhora agora efectuada.

Nos termos acima mencionados, tal penhora é permitida por lei, na medida em que a penhora do vencimento não permitia obter a satisfação integral do crédito nos prazos definidos na lei e, portanto, ao promover essa penhora o credor está apenas a exercer o seu direito em circunstâncias normais e em conformidade com a lei; ao actuar desse modo, o Exequente está apenas a utilizar o poder contido no seu direito para a prossecução do interesse em função do qual o direito lhe foi concedido, sem que exista qualquer circunstância anómala com base na qual se pudesse afirmar que, com a promoção da referida penhora, o Exequente esta a assumir um comportamento que não se pauta pela honestidade e lealdade para com o Apelante ou que, de algum modo, defraude a legítima confiança e a expectativa deste, em termos de se poder afirmar que estava a exceder os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes.

Não existe, portanto, qualquer abuso de direito.

Além da alegada violação – que já vimos não ter ocorrido – dos artigos 735.º, n.º 3, 751.º, 784.º, n.º 1 alínea b), do CPC e 334.º do CC, sustenta ainda o Apelante que a decisão recorrida violou o disposto no art.º 743.º, n. 1, do CPC, dizendo que, à luz do disposto na norma citada, não parece possível a penhora de ½ indiviso do prédio urbano em compropriedade, como aconteceu no caso.

Tal alegação não tem, no entanto, o menor fundamento.

O que se dispõe na norma citada é que “Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 781.º, na execução movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso”. Assim sendo, estando em causa nos autos um bem (imóvel) em compropriedade, a referida disposição legal teria sido violada se tivesse sido feita a penhora de uma parte especificada do bem (seria o caso, por exemplo, de ter sido penhorado o rés-do-chão do imóvel ou o 1.º andar). Não foi isso que aconteceu; o que foi penhorado nos autos não foi uma qualquer parte especificada do bem indiviso, mas sim o direito a ½ do referido imóvel (ou seja, a quota do Executado naquele bem).

Não ocorreu, portanto, qualquer violação da norma em questão.

Assim, em face de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).

 


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.

                              Coimbra, 12 de abril de 2023

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Paulo Correia)                    



[1] Cfr. Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, 1983, pág. 55.            
[2] Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4.ª edição, pág. 81.
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civ. Anotado, Vol. I, 3ª ed. Revista e Actualizada, págs. 297.