Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/07.7TAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: INJÚRIA
PESSOA COLECTIVA
PRONÚNCIA
TRIBUNAL SUPERIOR
Data do Acordão: 03/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO – 2º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 187º DO CÓDIGO PENAL; ARTIGO 402º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Legislação Comunitária:
Jurisprudência Internacional: AC. DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 02.11.95
Sumário: : I – Após a vigência do artigo 187º, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 48/95, de 15.03, alguma doutrina e jurisprudência vinha entendendo que se constituía elemento condicionante para que quem quer pudesse ser incriminado pelo conteúdo normativo contido no artigo 187º do Código Penal que a pessoa colectiva visada pelos factos inverídicos susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestigio ou a confiança exercesse a autoridade pública;

II – A incriminação pelo tipo de crime referido no item antecedente abrange, para além do organismo ou serviço que exerça autoridade pública, a tutela de todas as pessoas colectivas, instituições ou corporações, independentemente de exercerem ou não autoridade pública.

III – O âmbito de cognoscibilidade do recurso afere-se pelas conclusões. Tendo o thema decidendum posto à consideração do tribunal de recurso sido a rejeição da acusação por o tribunal quo ter estimado que os factos ineridos na acusação não constituíam crime não pode o tribunal de recurso julgar a causa com base em fundamento diverso, não foi alegado pelo recorrente, ainda que haja sido suscitado no tribunal de recurso aquando da vista para os efeitos do artigo 416º do Código de Processo Penal, sob pena de vir a cometer uma nulidade na decisão que viesse a proferir, por excesso de pronúncia.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório:
1. A assistente L….., LDA.” deduziu acusação contra a arguida F…………., imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, p. p. nos termos do artigo 187º, n.º 1, do Código Penal, e formulou contra a mesma pedido de indemnização civil, como consta de fls. 126/128 e 129/132 dos autos.
2. O Ministério Público, em despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 285.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, não acompanhou a acusação particular, pelos fundamentos constantes de fls. 133/135.
3. Distribuído o processo, o M.mo Juiz do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d), do Código de Processo Penal, rejeitou a acusação particular da assistente, por manifestamente infundada.
4. Inconformada, a assistente interpôs recurso, encerrando a motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - As alegações são apresentadas do recurso interposto do despacho de fls. 145 a 151 dos autos.

2.ª - Este despacho rejeitou a acusação particular e o pedido de indemnização civil deduzido pela Assistente por considerá-la manifestamente infundada.

3.ª - O Tribunal a quo fundamentou a decisão na factologia da Assistente ser uma sociedade, pessoa colectiva de utilidade particular, e a natureza jurídica da mesma não englobar o exercício de autoridade pública, o poder de imperium, condição indispensável para que se encontrem tuteladas pela figura-de-delito tipificada sob o art. 187.º do Código Penal.

4.ª - E, como tal, entendeu o Meritíssimo Doutor Juiz que a ofensa à credibilidade, ao bom-nome, à dignidade, à confiança, à imagem, à reputação, não estão tuteladas sob o art. 187.º do Código Penal.

5.ª - Porque a recorrente/Assistente não exerce uma actividade de utilidade pública, como tal, a acusação foi rejeitada.

6.ª - Ora, na verdade, à luz do art. 187.º do Código Penal, os factos imputados à arguida na acusação particular acolhem a protecção jurídica para a verificação do crime imputado à arguida.

7.ª - Os factos alegados na acusação estão protegidos ou tutelados pela figura-de-delito tipificada pelo art. 187.º, do Código Penal.

8.ª - A recorrente/Assistente, sendo uma pessoa colectiva de direito privado ou de utilidade particular, o seu bom-nome, a dignidade, a confiança, a imagem, a reputação, estão tutelados sob o art. 187.º do Código Penal.

9.ª - Pelo que, o Tribunal a quo, com o devido respeito por outra opinião, andou mal ao considerar que a Assistente “L...., Lda.”, por ser uma sociedade pessoa colectiva de utilidade particular, o direito à protecção, ao bom-nome, à dignidade, à confiança, à imagem, à reputação, não estão tuteladas pela figura do art. 187.º do Código Penal e, como tal, considerou a acusação particular como manifestamente infundada, rejeitando-a, e não recebeu o pedido de indemnização civil.

10.ª - O Tribunal a quo fez uma interpretação incorrecta ao art. 187.º do Código Penal, aplicável aos factos constantes da acusação, por esta ser uma sociedade de direito privado e de utilidade particular.

11.ª - Mas, na verdade, o artigo 187.º do Código Penal tutela os factos descritos na acusação particular de ofensa ao bom-nome, à dignidade, à confiança, à imagem de reputação da Assistente, enquanto pessoa colectiva de direito privado e utilidade particular;

12.ª - Já que o art. 187.º do Código Penal aplica-se a pessoas colectivas de direito público ou privado, e de utilidade pública (Câmaras Municipais…) ou de utilidade particular (sociedades comerciais e civis…).

13.ª - O douto despacho violou a lei aplicável:

- Artigo 1.º ao 139.º do Código do Imposto sobre as Pessoas Colectivas, de Direito Privado (particulares);

- Artigo 1.º ao 157.º do C. das Sociedades Comerciais (dado o tipo de sociedade da assistente);

- Artigo 157.º do Código Civil (“Capítulo II – Pessoas Colectivas”);

- Artigo 159.º a 166 do Código Civil;

- Artigo 1.º ao 544.º do C.S.Comerciais;

- Artigo 484.º do Código Civil;

- Artigo 187.º do Código Penal.

- O artigo 187.º do C.P. foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março,

Já que:

«1. Não havia disposição correspondente na versão originária do Código nem tão-pouco no C.P. de 1886.

A possibilidade de as pessoas colectivas serem sujeito passivo dos crimes de difamação e de injúria deu lugar a larga controvérsia tanto no domínio do CP de 1886 como durante a versão originária do presente Código. Na daquele primeiro diploma pôs-lhe termo o assento de 24 de Fevereiro de 1960, BMJ 94/107; durante a vigência da versão originária do Código de 1982 tanto a doutrina como a jurisprudência se inclinaram acentuadamente para a solução afirmativa.

À questão fizemos larga referência no nosso código Penal Português Anotado, anot. 4 ao art.º 164.º da versão originária.

O legislador, na revisão do Código levada a efeito pelo Decreto-Lei supramencionado, tomou posição na questão, embora indirectamente, ao criar um tipo de crime conta a honra em que o ofendido é uma pessoa colectiva, um organismo ou serviço, cujos elementos constitutivos são os enunciados no n.º 1 deste artigo. Ficou assim clarificado que as pessoas colectivas, os organismos e os serviços podem ser sujeitos passivos contra a honra, sejam o deste artigo ou quaisquer outros, maxime o de difamação ou o de injúria.

Este artigo foi discutido nas 25.ª e 45.ª sessões da CRCP, em 27 de Março e 11 de Dezembro de 1990.

2. Como se esclareceu no seio da CRCP e resulta claramente do texto legal, o objectivo deste artigo é diferente dos referentes aos crimes de difamação e de injúria. Aqui trata-se antes de criminalizar as acções e os rumores não atentatórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma pessoa colectiva, de um organismo ou de um serviço, valores que, em bom rigor, não se incluem no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria. Será por exemplo o caso de alguém propalar o facto inverídico de que determinado produto produzido pela fábrica A tem defeito e não funciona passado um ano (apresentado na 45.ª sessão da CRCP, em 11 de Dezembro de 1990)».

14.ª - O douto despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que receba a acusação particular, e a submeta ao impulso processual subsequente, assim como ao correspondente pedido de indemnização civil.

5. Na 1.ª instância, somente o Ministério Público apresentou resposta, como consta de fls. 177/179, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
6. Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, no douto parecer que elaborou, manifestou discordância quanto aos fundamentos que determinaram a rejeição da acusação particular, por a natureza jurídica da assistente não constituir óbice à verificação do crime do artigo 187.º do Código Penal, firmando no entanto posição no sentido de a referida peça processual dever ser rejeitada com base em motivo diverso ou seja, por não conter factos inverídicos que possam integrar o conceito de ofensa ao bom nome, credibilidade ou prestígio da assistente.
Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, a assistente e o arguido não apresentaram resposta.
7. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
Conforme Jurisprudência uniforme dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso.

No caso sub judice, a única questão solvenda traduz-se em saber se as sociedades comerciais, universo a que pertence a recorrente “L.....t, Lda.”, podem ser sujeitos passivos do crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, previsto no artigo 187.º, do Código Penal.
2. Elementos que constam dos autos, relevantes para a decisão:
2.1. Na parte que importa ter em conta, é do seguinte teor a acusação particular:
«1. A assistente, no dia 30/10/2006, teve conhecimento, na sua sede (…), através da citação expedida, em 26/10/2006, pelo Tribunal de Aveiro, do processo 765/06.6TTAVR (acção de processo comum), contra si intentado pela arguida F.... – doc. 2, a fls. 12 a 29 dos autos (…).
2. Naquele documento, da participação, a fls. 12 a 29 dos autos, a arguida faz afirmações e declarações difamatórias, ofensivas e caluniosas, do bom-nome da ofendida, conforme se transcrevem:
- “Ora, aquela relação de trabalho dependente mas “camuflada” com os recibos verdes …”;
- “de todo o modo, apesar dos artifícios formais engendrados pela R…”;
- “Isso até à data em que a A. começou a reclamar a atribuição de categoria profissional a que tinha direito…”;
- “a partir dessa ocasião a R. começou a exercer sobre ela formas diversas de pressão”;
- “cumpriu de segunda a sexta-feira o seguinte horário de trabalho diário: 09h às 12h30m e das 14h00 às 19h30m”.
(…).
3. A arguida, ao escrever, naquela acção judicial, aquelas afirmações, teve como único propósito, objectivo e intenção (…) ofender a credibilidade, o prestígio, a dignidade, a confiança, o bom nome, e, ainda, a intenção de prejudicar, difamar e injuriar a Assistente enquanto ente societário Pessoa Colectiva.
(…)
Cometeu, assim, a arguida um crime previsto e punido pelo artigo 187.º, do Código Penal».
2.2. O Tribunal a quo rejeitou a acusação particular nos seguintes termos:
« (…)
Sem curar de saber se, objectivamente, as expressões em causa são ou não susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança devidas à assistente, o tipo legal de crime em causa exige que a pessoa colectiva, instituição, corporação ou serviço ofendidos tenham que exercer autoridade pública.
Salvo o muito devido respeito por opinião contrária, sendo a assistente uma sociedade denominada “L....., Lda.” [sendo as sociedades pessoas colectivas de utilidade particular (…)], a natureza jurídica da mesma não engloba o exercício da autoridade pública, o poder de impurium, condição indispensável às entidades cujos valores de credibilidade, prestígio e confiança se encontram tutelados pela figura-de-delito tipificada sob o art. 187.º do Código Penal (…).
Ora, na sequência do atrás mencionado, e porque a assistente/ofendida não exerce a autoridade pública, não se verifica um dos requisitos essenciais para a verificação do crime imputado à arguida, nem os factos alegados na acusação são susceptíveis de integrar qualquer outro tipo legal de crime. Por tal razão, e sem necessidade de mais considerandos, inevitavelmente, a acusação terá que ser rejeitada.
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.ºs 2, a), e 3, d), do CPP, decide-se em rejeitar a acusação da assistente, por manifestamente infundada».
2.3. Do mérito do recurso:
No caso sub judice, nenhuma dúvida permanece de que a assistente “Loyalaccount, Lda.” é, como sociedade comercial, uma pessoa colectiva de utilidade particular. É total o consenso que o processo revela sobre esta realidade.

A dissenção manifesta-se sobre a amplitude do tipo de crime do artigo 187.º do Código Penal, em termos de saber se toda e qualquer pessoa colectiva pode ser vítima do aludido crime, ou se, pelo contrário, do mesmo só podem ser sujeitos passivos as pessoa colectivas que exerçam autoridade pública.

Tal normativo foi introduzido no Código Penal pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, visando o legislador dar protecção ao bom-nome da pessoa colectiva, organismo ou serviço.

Dispõe o citado artigo:

«1. Quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço que exerça autoridade pública, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2. (…)».

A doutrina e a jurisprudência têm marcado posições antagónicas sobre a questio problemática que cumpre apreciar.

Para Faria Costa, «(…) o exercício da autoridade pública é um elemento condicionante para todas as entidades que o tipo descreve, (…) só aquele elemento é que se pode considerar capaz de dar sentido a uma incriminação desta natureza (…)».

«Proteger – proteger penalmente – a credibilidade, o prestígio ou a confiança de uma pessoa colectiva quando ela não exerça autoridade pública e quando se sabe que essa mesma pessoa colectiva pode ser vítima de uma difamação ou injúria seria um alargamento a todos os títulos injustificado e insustentável. Pensar-se assim ou ajuizar-se dessa forma seria dar maior protecção à pessoa colectiva do que à própria pessoa individual. Na verdade, nessa óptica que rejeitamos e que o próprio texto-norma inequivocamente também afasta, a pessoa física, o homem concreto na sua inderrogável unidade de sentido ético veria protegida a honra, mas não veria, expressamente, defendida a sua credibilidade, o seu prestígio ou a confiança que outros nele depositam In Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 6 ».

Secundando, no essencial, o complexo argumentativo de Faria Costa, podem ver-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Janeiro de 2004 - processo n.º 43089 Publicado em http://www.dgsi.pt., e 13 de Dezembro de 2006 In CJ, Ano XXXI, tomo V – 2006, pág. 224 e ss., da Relação de Lisboa de 26 de Janeiro de 2005 - processo n.º 10236/04 Publicado em http://www.dgsi.pt., da Relação de Coimbra de 12 de Janeiro de 2000 In CJ, Ano XXV, tomo I – 2000, pág. 44 e ss., da Relação de Évora de 11 de Novembro de 2004 In CJ, Ano XXIV, tomo V – 2004, pág. 261., e da Relação de Guimarães de 4 de Julho de 2005 In CJ, Ano XXX, tomo IV – 2005, pág. 301 e ss..

Posição diversa, no sentido de que o requisito “exercício de autoridade pública” não é de exigir a todos os entes referidos no artigo 187.º, parece ter expressado Figueiredo Dias, quando exemplificou o campo de aplicação da norma a casos de informação falsa, de interesse patrimonial, de que determinado bem produzido por uma fábrica tem defeito e não funciona ao fim de um ano In Acta n.º 45 da Comissão de Revisão do Código Penal, pág. 504. No mesmo sentido, cfr., Maia Gonçalves, Código Penal Português, 8.ª edição – 1995, pág. 668, e Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, II vol., Rei dos Livros, 2.ª edição, p. 350-351..

Ao nível da jurisprudência, regista-se hodiernamente uma progressiva inflexão na orientação antes maioritariamente perfilhada - a que não é alheia a nova redacção que veio a ser conferida ao artigo 187.º pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro -, assumindo-se de forma contundente que a exigência de exercício de autoridade pública se circunscreve ao “organismo ou serviço”. Estão nesta linha os Acórdãos da Relação do Porto de 6 de Dezembro de 2006 In CJ, Ano XXXI, Tomo V/2006, pág. 220/221. e 15 de Outubro de 2007 In http://www.dgsi.pt., e da Relação de Lisboa de 31 de Outubro de 2007 In http://www.dgsi.pt..

Propendemos para a segunda das duas posições expostas.

Genericamente, o art. 9.º do Código Civil A norma em causa é do seguinte teor:

«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados». regula a matéria da interpretação da lei, estabelecendo, como principal linha de rumo, que tal interpretação deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
A letra, o texto da norma postula-se como limite da interpretação. A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, por ser sempre necessária uma tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio literal.

Nas palavras de Claus Roxin Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Civitas, pág. 148/149., «o marco é delimitado pelo sentido literal possível na linguagem corrente do texto da lei, enquanto que o juiz efectua dentro desse marco a interpretação, considerando o significado literal mais próximo, a concepção do legislador histórico e o contexto sistemático-legal, e segundo o fim da lei (interpretação teleológica)».

No contexto da interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos - de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.

O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, ou seja, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).

O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.

O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma, no fim visado pelo legislador ao editar a norma e nas soluções que tem em vista e que pretende realizar Cfr. Acórdão do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 330/05- 5.ª Secção, de 23 de Novembro de 2005, publicado no DR, I Série-A, de 09/01/2006..

Revertendo ao caso concreto, no contexto da problemática em causa, o teor literal da norma não é eloquente e decisivo para se ter por afastado qualquer um dos entendimentos, embora se nos afigure que o tempo verbal utilizado na norma (“que exerça autoridade pública”) e a conjunção alternativa “ou” sejam mais consonantes com a ideia de a autoridade pública respeitar tão só aos serviços e organismos e não já às pessoa jurídicas.

Maior relevo assume o elemento histórico, evidenciando-se neste contexto a discussão em sede de Comissão Revisora do Código Penal - conforme acta da sessão supra citada n.º 45, de 11 de Dezembro de 1990) -, corporizadora do pensamento do legislador, no referido sentido.

Diz-nos o artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal:

«1. O procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de acusação particular, ressalvados os casos:

a) do artigo 184.º; e

b) do artigo 187.º, sempre que o ofendido exerça autoridade pública;

em que é suficiente a queixa ou a participação».

A norma que se vem de citar fixou o regime jurídico das condições de procedibilidade relativas ao crime do artigo 187.º nos seguintes termos: tratando-se de pessoa colectiva que não exerça autoridade pública, o procedimento criminal depende de acusação particular; caso a pessoa colectiva exerça essa autoridade, o procedimento depende de queixa.

Neste contexto, afigura-se-nos que o legislador, na sistematização que conferiu ao complexo normativo formado pelo tipo de crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço e pelas respectivas condições de procedibilidade, teve no seu espírito a consideração de o campo de previsão do artigo 187.º abranger entes que exercem e não exercem autoridade pública.

Com a nova redacção dada pelo legislador ao artigo 187.º, provinda da 23.º alteração ao Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ficou definitivamente arredada qualquer dúvida quanto ao fim visado pela norma: proteger o bom-nome de organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, e bem assim de pessoa colectiva, instituição ou corporação, ainda que não exerçam poderes de imperium.

E ainda que a Nova Lei, que temos como interpretativa, tenha de ser tratada como lei nova - estando sujeita ao regime da sucessão de leis penais, com a consequente proibição de aplicação (retroactiva) aos factos praticados antes da sua entrada em vigor, quando desfavoráveis ao arguido Taipa de Carvalho, “Sucessão de Leis Penais”, 2.ª edição revista, 1997, pág. 328. -, não deixa de ser representativa do pensamento do legislador na elaboração da Lei Antiga.

Em síntese conclusiva: o tipo de crime introduzido no Código Penal pela revisão levada a efeito pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, para além do organismo ou serviço que exerça autoridade pública, tutela todas as pessoas colectivas, instituições ou corporações, independentemente de exercerem ou não autoridade pública.

2.4. No seu parecer, sufraga a Ex.ma Porcuradora-Geral Adjunta a manutenção da decisão recorrida, embora com diversos fundamentos, porquanto não resultam da acusação particular factos inverídicos integrantes do conceito de ofensa ao bom-nome, credibilidade ou prestígio da assistente, de modo a que se possa configurar a prática do imputado crime p. e p. pelo artigo 187.º do Código Penal.

O fundamento que presidiu ao despacho de rejeição da acusação particular foi tão só o de não estar verificado o elemento típico “exercício de autoridade pública” por parte da assistente.

Consequentemente, o objecto do recurso interposto pela assistente desse despacho visou, como vimos, tão só o predito fundamento.

É sabido que os recursos dirigidos ao Tribunal da Relação se destinam ao reexame de decisões proferidas pela 1.ª instância e não à obtenção de decisões sobre questões novas.

Com efeito, os recursos, como remédios jurídicos que são, congenitamente orientados à correcção de erros in judicando ou in procedendo, destinam-se à impugnação das decisões tomadas pelos tribunais de inferior hierarquia, e não ao conhecimento de questões (novas) que não foram objecto de apreciação pela decisão recorrida.

Aliás, o conhecimento por esta Relação, neste momento, da concreta questão enunciada pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta implicaria inquestionavelmente excesso de pronúncia.

Assim, a decisão desta Relação fica inexoravelmente limitada, nos termos supra expostos, à questão decidida pelo tribunal de 1.ª instância, objecto do recurso interposto pela assistente.

III. Decisão:

Posto o que precede, acorda-se em conceder provimento ao recurso, determinando que o tribunal a quo profira despacho que designe dia para a realização do julgamento, caso não ocorra causa de rejeição da acusação nos termos do artigo 311.º do Código de Processo Penal.

Sem custas.