Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1471/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
DIREITO DE ACÇÃO
PRESCRIÇÃO
ACÇÃO EXECUTIVA
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 06/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 5º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 70º DA LULL E 323º, Nº 2, DO C. CIV. .
Sumário: I – Nos termos do § 1º do artº 70º da LULL, todas as acções contra o aceitante relativas a letras e livranças prescrevem em três anos a contar do seu vencimento .
II – É jurisprudência uniforme que a citação efectuada para além do 5º dia após aquele em que for requerida não é imputável ao respectivo requerente quando a demora é devida a motivos de índole processual, de organização judiciária, negligência do tribunal ou dos seus funcionários, dolo do devedor, acumulação de serviço ou outras circunstâncias anómalas .

III – Quando a demora na citação resulte da não conjugação dos preceitos da lei de custas, de processo e de organização judiciária com as normas substantivas, o conflito deve solucionar-se no sentido da prevalência destas, sem que tal não conjugação possa imputar-se aos que requerem a citação .

IV- Verificando-se que a citação do executado ocorreu mais de um ano depois da instauração da execução, por razões de natureza processual relacionadas com o novo regime da acção executiva (já que nesta a citação do executado só acontece depois de realizada a penhora, cuja efectivação pode ser demorada), a causa da não citação dentro dos cinco dias subsequentes não é imputável ao exequente, devendo considerar-se interrompida a prescrição nos termos do artº 323º, nº 2, do C. Civ. .

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:



1. RELATÓRIO
Por apenso aos autos de execução comum que, com o nº 3101/04.2TBLRA, correm termos pelo 5º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria, em que é exequente A... e executado B..., deduziu este a presente oposição à execução, invocando, além do mais, a prescrição do direito de acção e pedindo a consequente extinção da execução.
A oposição foi recebida e o exequente contestou sustentando, nessa parte, que, conjugando as datas apostas nas letras dadas à execução com o disposto no artº 323º, nº 2 do Cód. Civil, não se verifica a prescrição.
Foi proferido despacho saneador em que, considerando verificarem-se todos os necessários pressupostos processuais, se conheceu da excepção peremptória da prescrição julgando-a procedente, com a consequente procedência da oposição e extinção da execução.
Inconformado, o exequente interpôs recurso e, na alegação que apresentou, formulou as conclusões seguintes:
1) Atento as datas de vencimento das letras dadas à execução, respectivamente, em 13/06/2001, 13/07/2001, 13/08/2001, 19/06/2001 e 19/07/2001, a data de 1/06/2004 em que o Recorrente instaurou o procedimento executivo, e o disposto no Artº 323º, nº 2 do Cód. Civil, facilmente se verifica não ter ocorrido a D. decretada excepção de prescrição.
2) Porquanto, conforme se refere neste citado dispositivo legal, se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
3) Assim sendo, na situação “sub judice”, a prescrição interrompeu-se em 6/06/2004.
4) Deverá assim revogar-se o D. despacho recorrido substituindo-o por outro que julgue improcedente a invocada excepção de prescrição ordene o regular prosseguimento da lide até final sob pena de se violar o disposto no Artº 323º, nº 2 do Cód. Civil e Artº 668º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil.
O apelado não respondeu.
Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada uma só questão: saber se as obrigações cambiárias que sobre o executado recairiam por força do aceite das letras de câmbio se encontram ou não prescritas.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Com relevância para a decisão, foi na 1ª instância considerada provada a seguinte factualidade:
3.1.1. A... instaurou a acção executiva de que esta oposição é apensa contra o ora oponente, B...;
3.1.2. Tal execução visa o pagamento de quantia certa, do montante mencionado em seis letras de câmbio, onde consta inscrito no local destinado ao sacador o nome do exequente e no local destinado ao sacado o nome do executado;
3.1.3. No local destinado ao aceite mostra-se aposta uma assinatura que o executado atribui ao exequente( Trata-se certamente de lapso, querendo antes dizer-se «que o exequente atribui ao executado».);
3.1.4. Tais letras foram emitidas, quatro delas em 14.03.2001 e, as restantes duas em 20.03.2001, com datas de vencimento, respectivamente, duas em 13.06.2001, uma em 13.07.2001, uma em 13.08.2001, uma em 19.06.2001, e outra 19.07.2001 tendo cada uma das letras emitidas em 14.03.2001 o valor de Esc. 500.000$00, e cada uma das emitidas em 20.03.2001, o valor de Esc. 110.000$00, constantes de fls. 11-16 dos autos de execução e cujo teor se dá por reproduzido.
3.1.5. A execução de que esta oposição é dependente foi intentada com data de 01.06.2004.
3.1.6. O executado foi citado em 17.06.2005.
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3.2. De direito
Nos termos do primeiro parágrafo do artº 70º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças (LULL), todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento.
O executado/opoente foi demandado na qualidade de aceitante, pelo que é aplicável aquela disposição legal.
Na decisão recorrida ponderou-se que, atendendo à data do vencimento das letras, quando a execução foi proposta, em 01/06/2004, o prazo de prescrição previsto no artº 70º da LULL não tinha decorrido. Mas, acrescentou-se que o executado só em 17/06/2005, ou seja, largos meses depois de transcorrido o dito prazo, foi citado e, de acordo com o nº 2 do artº 267º do Cód. Proc. Civil, o acto da proposição da acção não produz efeitos em relação ao réu senão a partir do momento da citação, salvo disposição legal em contrário. E que a eventual disposição em contrário integrada pelo artº 323º, nº 2 do Cód. Civil, onde se estabelece que “se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”, não é aplicável.
E, nesse sentido, argumentou-se:
“Porém, neste caso importa levar em consideração que de acordo com o novo regime de acção executiva, em vigor desde 15.09.2003, a mesma inicia-se com a penhora e só após terá lugar a citação do executado, nos termos do disposto nos artºs 812º, nº 1 e 812º-A, nº 1, al. d) “a contrario”, do CPC, de onde resulta, precisamente, que quando o exequente não requeira penhora sobre imóvel, estabelecimento comercial, ou direito menor que sobre eles incida, não haverá lugar a despacho liminar nem citação prévia.
De facto, o exequente ao interpor acção executiva no dia 01.06.2004, não podia ignorar que a citação nunca seria feita nos cinco dias seguintes, pois, como decorre do disposto no artº 837º, do CPC, o prazo indicativo para a realização da penhora quando o exequente não indique bens no requerimento inicial, é de 30 dias.
Apesar disso não solicitou a realização de citação prévia em ordem a evitar o decurso do prazo de prescrição, nos termos do disposto no artº 478º, nºs 1 e 2, do CPC.
Conclui-se, assim, que se encontram prescritas, enquanto título de crédito, as letras que servem de fundamento à execução, uma vez que como acima se refere a interposição da acção só produz efeitos em relação ao réu/executado desde a citação e essa só ocorreu em 17.06.2005.”
Ou seja, em síntese, entendeu-se que o artº 323º, nº 2 do Cód. Civil não tinha aplicação porque a causa da não citação do executado dentro dos cinco dias após a instauração da execução era imputável ao exequente.
O exequente, naturalmente, não concorda. E defende que o artº 323º, nº 2 do Cód. Civil se aplica, motivo pelo qual o prazo de prescrição se interrompeu cinco dias após a propositura da acção executiva, ou seja, em 06/06/2004.
A questão que a este Tribunal cumpre resolver é, pois, a de saber se, no caso, a não citação do executado no prazo de cinco dias após a instauração da execução, sim ou não, é imputável ao exequente. Se sim, há prescrição. Se não, não.

É jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que a citação efectuada para além do quinto dia após aquele em que for requerida não é imputável ao respectivo requerente quando a demora é devida a motivos de índole processual, de organização judiciária, negligência do tribunal ou dos seus funcionários, dolo do devedor, acumulação de serviço ou outras circunstâncias anómalas. E que a demora é imputável ao respectivo requerente quando se demonstre existir um nexo objectivo de causalidade entre a conduta do requerente, posterior ao requerimento para a citação, e o resultado de a citação ter sido efectivada para além do quinto dia posterior à apresentação daquele( Acórdãos do STJ de 08/07/1980, in BMJ, nº 299, pág. 294; de 27/07/1982, in BMJ, nº 319, pág. 265; de 05/05/1987, in BMJ, nº 367, pág. 507; e de 04/11/1992, in BMJ, nº 421, pág. 262.
No mesmo sentido, cfr. Ac. Rel. Porto de 15/03/2000 (Relator: Des. Dinis Roldão); de 16/11/2000 (Relator: Des. Mário Fernandes); de 13/11/2000, (Relator: Des. Ribeiro de Almeida), todos in www.dgsi.pt/jtrp). Ou seja, quando o requerente tenha infringido objectivamente a lei em qualquer termo processual( Ac. Rel. Porto de 17/05/2001 (relator: Des. Moreira Alves), in www.dgsi.pt/jtrp.).
Quando a demora na citação resulta da desconjugação dos preceitos da lei de custas, de processo e de organização judiciária com as normas substantivas, o conflito deve solucionar-se no sentido da prevalência destas, sem que tal desconjugação possa imputar-se aos que requerem as citações( Ac. Rel. Porto de 08/07/1996 (Relator: Des. Abílio Vasconcelos), in www.dgsi.pt/jtrp.).
No presente caso, o exequente instaurou a execução 12 (doze) dias antes do fim do prazo de prescrição das duas letras vencidas em 13/06/2001, 18 (dezoito) dias antes do fim do prazo de prescrição da letra vencida em 19/06/2001, e mais de um mês antes do termo do prazo de prescrição das letras restantes.
A citação do executado mais de um ano depois da instauração da execução não é imputável ao exequente, antes se devendo a razões de natureza processual, relacionadas com o novo regime da acção executiva. Seria impossível ao exequente prever qual a demora provável da citação do executado, já que esta só depois da penhora, para cuja efectivação tanto poderia bastar um mês como serem necessários anos, ocorreria.
Admitindo que seja possível calcular o tempo normal de demora da citação numa execução com as características da dos autos, sempre poderia acontecer que, em concreto, fosse ultrapassado esse abstracto tempo normal. Para além de que, tal demora normal ou habitual, decorrente de motivos de índole processual e de organização judiciária (para além de eventuais atrasos dos serviços), não poderia, razoavelmente, repercutir-se no prazo de prescrição, encurtando-o, o que aconteceria se ao exequente fosse exigível que instaurasse a execução com tanta antecedência quanta a duração dessa demora.
Portanto, tendo a execução sido instaurada em 01/06/2004 e não sendo imputável ao exequente a causa da não citação dentro dos cinco dias subsequentes, a citação considera-se realizada, para efeitos de interrupção da prescrição, nos termos do artº 323º, nº 2 do Cód. Civil, em 06/06/2004, antes, pois, de esgotado o prazo de prescrição relativamente a qualquer das letras de câmbio dadas à execução.
E, contrariamente ao que parece ser entendimento da 1ª instância, sendo a acção proposta cinco dias antes de consumada a prescrição, não necessita o autor de requerer a citação antecipada para poder aproveitar do artigo 323º, nº 2 do Código Civil( Ac. do STJ de 10/01/2006 (Revista nº 3298/05 – 6ª Secção), in Sumários dos Acórdãos do STJ – Janeiro 2006 e Ac. desta Relação de 19/11/1985, in BMJ, nº 351, pág. 468.).
Uma última referência há a fazer. Apenas para dizer que, mau grado a alusão feita na conclusão 4ª ao artº 668º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil, o saneador-sentença recorrido não padece da nulidade que, dessa maneira, lhe é apontada, pois nele não se surpreende qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão. A lei aplicável é que, a nosso ver, como atrás se tentou explicar, foi incorrectamente interpretada, o que constitui erro de julgamento, mas não causa de nulidade.
Vingam, assim, as conclusões da alegação do apelante, o que conduz à procedência da apelação, à revogação do saneador-sentença sob recurso e ao consequente prosseguimento dos autos, uma vez que o executado/opoente invocou outros fundamentos de oposição à execução, para além da prescrição.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, consequentemente, em revogar o saneador-sentença recorrido, devendo os autos prosseguir a normal tramitação.
As custas são a cargo do apelado.
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Coimbra,