Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2541/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE REVISÃO PREVISTO NO ART.º771º
AL.F)
DO CPC: INCONSTITUCIONALIDADE DO PRAZO DE CADUCIDADE DE 5 ANOS PREVISTO NO ART.º 772º
N.º2
AL. B)
DO CPC
QUANDO SE INVOCA A NULIDADE DA CITAÇÃO DO RECORRENTE NA ACÇÃO A REVER.
Data do Acordão: 10/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 195º, Nº 1, AL. C) ; 771º, AL.F) ; E 772º, Nº 2, AL. F), DO CPC .
Sumário: I – Para que uma sentença possa ser objecto de revisão é necessário, entre outras possibilidades, que se mostre que faltou a citação do réu ou que é nula a citação feita – al. f) do artº 771º do CPC .
II – A interpretação da norma contida no nº 2 do artº 772º, do CPC, no sentido de que o prazo aí previsto ( de 5 anos ) é contado desde o trânsito em julgado da decisão a rever, sofre de inconstitucionalidade, por violação dos princípios do contraditório e da proibição da indefesa .
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Águeda correu termos um processo de inventário para separação de meações na sequência do decretamento do divórcio entre A... e B..., ambos devidamente identificados nos autos, conforme apensos do presente processo .
Posteriormente ao encerramento de tais processos veio a interessada B..., na sua qualidade de divorciada e dizendo-se residente em Altamira Sul, Av. Luís Rocha, Edifício Terepaima, piso 5, Apartamento 105, Caracas, Venezuela, requerer a anulação desse processo de separação de meações, com fundamento na falta da sua citação na dita acção, uma vez que , à época, era conhecido o seu paradeiro pelo seu ex-marido e autor nesse processo de separação de meações e este aí a indicou com paradeiro incerto, razão pela qual não foi citada pessoalmente nesses autos , mas antes editalmente, não o devendo ser .

Contestou o Réu, alegando, além do mais, que a pretensão da Autora cai no âmbito do processo especial de recurso extraordinário de revisão e não na anulação pretendida, terminando com o pedido de improcedência da acção .

Todo o processado posterior à petição inicial foi declarado nulo por acórdão desta Relação junto de fls. 87 a 90, transitado em julgado, com decisão no sentido de se considerar aquela como articulado de interposição de recurso extraordinário de revisão, previsto no artº 771º, al. f), do CPC, cujos termos haveria a seguir .
II
Rectificada a distribuição em 1ª instância em conformidade com o assim decidido, pelo Réu foi deduzida oposição, na qual alega, muito em resumo, que a partilha em questão foi homologada por sentença de 3/06/1987, sendo que a autora só em 27/05/2002 veio interpor o presente recurso extraordinário de revisão, razão pela qual é inadmissível semelhante pretensão, à luz do disposto no artº 772º, nº 2, do CPC ( onde se preceitua que o recurso de revisão não pode ser interposto se tiverem decorrido mais de 5 anos sobre o trânsito em julgado da decisão cuja revisão se pretende) .
Terminou pedindo que seja declarada a caducidade da faculdade de interpor o presente recurso extraordinário de revisão .
III
Respondeu a Autora, mantendo a sua pretensão e revelando-se contrária ao entendimento defendido pelo Réu .
IV
Terminados os articulados foi proferida a decisão de fls. 124 e 125, na qual foi apreciada a referida excepção de caducidade, tendo sido reconhecido que se mostra há muito decorrido o prazo máximo de 5 anos previsto no artº 772º, nº 2, al. b), do CPC, na redacção anterior ao DL nº 38/03, de 8/03, pelo que se mostra irremediavelmente perdido o direito de recorrer extraordinariamente, como pretende a autora .
Face ao que foi decidido reconhecer ter-se verificado a caducidade invocada pelo Réu, com a consequente negação ao pedido de revisão formulado pela autora .
V
De tal decisão interpôs recurso a Autora, recurso admitido como apelação e com efeito devolutivo .
Nas alegações que oportunamente apresentou a Apelante concluiu do seguinte modo :
1ª - O recorrido preparou a partilha de modo a que a recorrente nela não interveio e fê-lo com má fé e dolo, pelo que a recorrente pretende provar todos os factos que demonstrem que o recurso à citação edital foi ilegal e no presente caso a citação foi nula, porque não havia fundamento legal para a ela recorrer, violando-se, assim, o artº 201º do CPC .
2ª - Na verdade, o recorrido na altura em que requereu o inventário bem sabia onde se encontrava a recorrente, bem como os seus pais e irmãs e contactava com eles com frequência, ao mesmo tempo que afirmava ao tribunal desconhecer o seu paradeiro, pelo que violou o artº 248º do CPC, devendo o processo ser anulado até ao requerimento de inventário .
3ª - A citação edital foi o modo ou forma que o recorrido utilizou para prejudicar a recorrente, privando-a de intervir no inventário e violando o princípio do contraditório, que é um princípio constitucionalmente protegido, pelo que foi violado o artº 20º da C.R.P. .
4ª - No caso presente estamos perante uma decisão que é absolutamente nula e nestes casos, como é jurisprudência aceite unanimemente, não ocorre caducidade se tiverem decorrido mais de 5 anos sobre o trânsito em julgado da sentença, pelo que foi violado o artº 771º do CPC .
5ª - Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se a prossecução da acção .
VI
Contra-alegou o Apelado, sustentando, em resumo, que deve ser mantida a decisão recorrida, por se verificar terem decorrido mais de 5 anos após o trânsito em julgado da sentença cuja revisão se pretende .
VII
Nesta Relação foi aceite o recurso interposto e tal como foi admitido em 1ª instância, seguindo-se a recolha dos necessários “ vistos “ legais, sem qualquer observação .
Nada obsta ao conhecimento do objecto desta apelação, o qual se resume ao conhecimento da questão de se saber se a Apelante, ao deduzir a presente acção, estava ou não em tempo para formular o pedido de recurso extraordinário de revisão que requereu nestes autos .

Na apreciação dessa questão há que ter em conta os elementos constantes dos apensos e deste mesmo processo, designadamente que :
1 – Em 10/04/84 o aqui Apelado instaurou acção especial de divórcio litigioso contra a aqui Apelante, indicando-a como residente em parte incerta da Venezuela e com último domicílio conhecido em Portugal no lugar e freguesia de Fermentelos, concelho de Águeda, na sequência do que foi a aí Ré então citada editalmente .
2 – Nessa acção foi declarado o divórcio entre os aqui Apelante e Apelado, por sentença de 11/04/1985 .
3 – Em 18/10/1985 o aqui Apelado requereu processo de inventário para separação de meações, contra a aqui Apelante, mantendo a indicação de paradeiro incerto desta, na sequência do que foi a dita citada editalmente .
4 - Tal processo correu sem citação pessoal da aqui Apelante e sem qualquer intervenção processual da dita, tendo-lhe sido então nomeada uma curadora “ ad litem “, posto que foi proferida sentença, com data de 3/06/1987, a homologar a partilha constante do mapa respectivo, a qual foi devidamente notificada à dita curadora e ao Digno Agente do Ministério Público , com a referida data .
5 – A petição inicial do presente processo de recurso extraordinário de revisão deu entrada em juízo em 27/05/2002 .

Perante tais factos tidos como relevantes para o conhecimento da questão equacionada, cumpre tecer as seguintes considerações :
O presente processo deu entrada em juízo em 27/05/2002, aplicando-se-lhe, por isso, as redacções dos artºs 771º, 772º, 773º, 775º, 776º e 777º do CPC vigentes à data, ou sejam as anteriores ao D.L. nº 38/2003, de 8/3, já que a nova redacção dada aos referidos preceitos pelo diploma citado apenas colhem aplicação aos recursos ( extraordinários, no caso ) interpostos depois de 15/09/2003, o que não é o presente caso - conforme resulta do artº 21º, nº 4, do DL nº 38/2003, na redacção dada pelo artº 3º do DL nº 199/2003, de 10/09 .
A apontada nota legislativa apenas tem relevância em termos da citação das normas legais a aplicar e que importa referir, porquanto no que respeita ao regime jurídico do instituto processual em causa as considerações que vão ser feitas teriam plena adequação às novas normas processuais, já que nada foi alterado nesse aspecto e no que ao presente caso interessa .
Assim, dúvidas não restam de que a sentença homologatória da partilha em causa ( havida no processo de inventário para separação de meações apenso ) transitou em julgado em 11 de Junho de 1987, conforme resulta do ponto 4 supra, conjugado com o disposto nos artºs 677º ( noção de trânsito em julgado ) e 685º , nº 1, 2ª parte, ambos do CPC ( este último na redacção vigente ao tempo, que estabelecia um prazo de 8 dias para a interposição dos recursos ordinários, a contar, no caso, da publicação da decisão).
Para que essa sentença possa ser objecto de revisão é necessário, entre outras possibilidades que ao caso não interessam, que “ se mostre que faltou a citação do réu ou que é nula a citação feita “ , já que a dita acção de separação de meações correu à revelia absoluta da aqui Apelante - al. f) do citado artº 771º do CPC .
Haverá falta de citação dessa ré se a referida citação edital foi empregue indevidamente, nos termos do artº 195º, nº 1, al. c), do CPC, isto é, se teve lugar sem que a ré se encontrasse ausente em parte incerta, por o aí autor ter conhecimento do seu exacto paradeiro e não o ter indicado, como devia – artº 228º-A, nº 3, do CPC , na redacção vigente à data ...
Para o eventual apuramento e apreciação de tal questão poderá ver-se o Ac. do STJ de 28/09/1999, in C.J. do STJ, ano VII, tomo III, pg. 40, onde se escreve, além do mais : “ A citação edital é um mal necessário. O exercício adequado do direito de defesa em juízo, que significa o mesmo que uma correcta aplicação do princípio do contraditório, tem como pressuposto ideal a certeza de que o réu soube do pedido que contra si é feito bem como dos seus fundamentos ; e essa certeza só fica garantida com a efectivação da citação em termos que evidenciem terem esses pedido e fundamentos chegado, de facto, ao seu conhecimento .
A citação edital, efectuada através de editais e anúncios, constitui um meio eminentemente falível para o objectivo em vista .
Porque é esta a realidade, o legislador não devia tomar, em face da citação edital, outra atitude que não fosse esta : admiti-la só em última extremidade, quando de todo em todo seja impossível usar de outra forma de citação .
...
É óbvio que ... resulta para o autor da acção o dever de ser exaustivo na comunicação dos elementos de que dispõe para a eventual localização do citando .
A violação desse dever pode conduzir a uma opção pela citação edital que, embora formalmente correcta face aos elementos ao alcance do juiz, é substancialmente inapropriada, visto ser ainda , de facto, possível obter a citação pessoal .
A vontade da lei será grosseiramente atraiçoada se se mantiver uma citação edital assente em informações falsas, reticentes e culposamente incompletas .”
Ora, é exactamente esta a circunstância invocada pela aqui Apelante para lograr a requerida revisão de sentença, pois alega que o aqui Apelado sempre conheceu o paradeiro da Apelante, desde que em 1984 o casal se separou ..., tanto mais que em toda a década de 80 a Apelante e os seus familiares nunca mudaram de residência, na Venezuela, e que o aqui Apelado contactou , nesses anos e por diversas vezes, com o pai e um irmão da Apelante , sem lhes ter dado conhecimento da pendência do processo da separação de meações .
Mais alegou que só em Abril de 2002 veio a Apelante a ter conhecimento da referida separação, totalmente processada sem o seu conhecimento anterior, pelo que estaria em tempo ao requerer a presente revisão – no mês de Maio seguinte, conforme ponto 5 supra .

Será que é assim que deve ser encarada a situação que se coloca, ao contrário do que foi o entendimento da decisão recorrida ?
Para o caso há que ter presente o disposto no artº 772º, nº 2, al. b), do CPC, mais concretamente o disposto na primeira parte de tal norma, onde se preceitua que “ o recurso ( extraordinário de revisão ) não pode ser interposto se tiverem decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão ... “ .
Aplicando essa referida norma, a decisão recorrida interpretou-a “ à letra “, isto é, com o sentido de que esse prazo não se conta desde a data em que a parte teve conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, mas sim desde o trânsito em julgado da decisão a rever . Que no caso de ter decorrido este prazo de cinco anos desde o trânsito em julgado da sentença a rever, o direito a interpor recurso extraordinário de revisão está irremediavelmente perdido .
Face ao que considerou que em Maio de 2002 já há muito tinha decorrido esse dito prazo, face ao que julgou verificada a caducidade do direito de revisão invocado pela aqui Apelante .
Acontece, no entanto, que apesar das doutas considerações constantes dessa decisão , já depois da sua publicação o Tribunal Constitucional, em Ac. publicado no DR, IIª série, de 12/05/2004 ( Ac. nº 209/2004 – T. Const. – Proc. nº 798/2003 ), considerou que “ ... o valor da segurança jurídica não foi erigido como valor absoluto, embora deva constituir a regra , pelo que a norma contida no nº 2 do artº 772º do CPC não se trata de um prazo absolutamente peremptório de cinco anos para a interposição do recurso de revisão , contados desde o trânsito em julgado da sentença a rever ... “ .
Isto porque, no entender desse Tribunal, tal interpretação viola o princípio constitucional do contraditório no âmbito do processo civil, princípio esse que esse Tribunal considera derivar do princípio do Estado de Direito e da garantia de acesso à justiça e aos tribunais, consagrados, respectivamente, nos artºs 2º e 20º da Constituição .
Aí se citam os Prof. Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando defendem que no âmbito normativo do artº 20º da Constituição deve integrar-se ainda a proibição da indefesa, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.
Para nesse aresto se concluir que “ a solução normativa consagrada no artigo 772º, nº 2, 1ª parte, do CPC , quando aplicável aos casos em que, tendo ocorrido à revelia a acção em que foi proferida a decisão cuja revisão é requerida, seja alegado como fundamento da revisão, precisamente, a falta ou nulidade da citação para aquela acção, é efectivamente inconstitucional, por ofensa daquele princípio “ .
É que, como também aí se escreve, “ semelhante interpretação normativa retira por completo ao interessado a possibilidade de invocar sequer perante o tribunal a invalidade do acto ( citação edital ) que, segundo ele, o impediu de apresentar qualquer tipo de defesa, conduzindo a que seja inapelavelmente confrontado com uma decisão judicial cujos fundamentos de facto e de direito não teve e nem tem, por razão que alega não lhe ser imputável e fica impossibilitado de provar, qualquer oportunidade de contraditar “.
Donde se ter julgado inconstitucional a citada norma do artº 772º, nº 2, 1ªparte, do CPC, embora restringida ao tipo de acção em causa nesse aresto ...
O que é certo é que não vemos diferença entre a acção em análise nesse aresto ( acção oficiosa de investigação de paternidade, que correu à revelia ) e a acção em causa neste autos ( que também correu à revelia ), com vista a poder-se fazer outro possível juízo de inconstitucionalidade sobre a norma em causa .
Bem pelo contrário, e remetendo-nos para os termos desse Acórdão, afigura-se que o referido princípio constitucional da proibição da indefesa também colhe inteira razão de ser e de aplicação no presente caso, face ao que e pelas mesmas razões importará também julgar inconstitucional a citada norma neste processo, em consequência do que importa revogar a decisão recorrida, face ao que importa que seja proferida nova decisão que ordene o prosseguimento dos autos, nos termos do artº 775º do CPC .
Com o que resulta a procedência da apelação deduzida .

VIII
Decisão :
Face ao exposto, acorda-se em julgar inconstitucional, por violação do princípio do contraditório ( em que se integra a proibição da indefesa, ínsita nos artºs 2º e 20º da Constituição) , a norma contida na 1ª parte do no nº 2 do artº 772º do CPC, assim se julgando procedente a presente apelação, revogando-se a decisão recorrida e em consequência do que se ordena o prosseguimento dos autos, nos termos do artº 775º do CPC .

Custas pelo Apelado .

Notifique, designadamente ao Ministério Público, nos termos do artº 258º do CPC .
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Tribunal da Relação de Coimbra, em / /