Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4965/03.2TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA.
Descritores: PROVA PROIBIDA
DECLARAÇÕES DO CO-ARGUIDO
PRINCIPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CIRCULO JUDICIAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 132.º, N.º 2; 133.º, N.º 2 E 345.º, N.º 4 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; E 32.º, N.º 1 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: I. - O n.º 2 do art. 132.º do CPP visa exclusivamente a protecção dos direitos de defesa do co-arguido que em processo penal depõe na qualidade de testemunha, em processo separado, para que deu o seu expresso consentimento, de modo a garantir o seu direito à não auto-incriminação;
II. - A prestação de depoimento, como testemunha, de co-arguido que no processo separado, deu o consentimento expresso não implica a violação das garantias de defesa, asseguradas pelo art. 32.º, n.º 1, da CRP, do arguido que está a ser julgado no processo onde esse depoimento é prestado;
III. – Desde que sujeitas ao princípio do contraditório podem ser valoradas as declarações de um co-arguido produzidas contra outro co-arguido, sendo para o caso irrelevante que o co-arguido esteja ou não presente na audiência de discussão e julgamento, pois tal ausência não afecta obviamente o exercício do contraditório através do respectivo defensor.
Decisão Texto Integral: 18
Proc. n.º 4965/03.2TBAVR.C1
1. No Círculo Judicial de Aveiro, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, o arguido:
- , industrial, casado, nascido a 23 de Agosto de 1965, em …, Alfândega da Fé, filho de … e de …, residente em …, n.º 11, Bugarin, Ponteareas (Pontevedra) e com domicílio profissional em Melon Mar, Só A., Rua ….Vigo;
sob imputação, na pronúncia de fls. 1415/1423, da prática, em co-autoria material, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos arts. 217.° e 218.°, n.° 2, al. a), ambos do Código Penal.
2. Os demais arguidos pronunciados, …, …, …, … e …, foram julgados, no âmbito do processo n.º 1628/95.4JAAVR do 2.º juízo do Tribunal Judicial de Aveiro, tendo sido ordenada a separação de processos relativamente ao arguido ….
3. Por acórdão de 18 de Janeiro de 2008, o tribunal julgou a pronúncia procedente e, em consequência, condenou o arguido …, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa por igual período de 3 anos e 6 meses.
4. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido …, formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª – Tendo sido determinada a separação de processos, é aplicável ao arguido já julgado no processo inicial o disposto no citado art. 345.º, n.º 4 do CPP, donde decorre a sua inidoneidade para prestar depoimento como testemunha de acusação no julgamento posterior de outro arguido, quando este se recusar a responder às perguntas formuladas ou se remeter ao silêncio ou consentir que o julgamento decorra na sua ausência.
2.ª – Ao admitir o depoimento, em sede de audiência de julgamento, de testemunhas que anteriormente ocuparam a posição de co-arguidos, fazendo assentar a sua convicção nas declarações por elas prestadas, o tribunal a quo serviu-se de meio proibido de prova, conducente à invalidade do julgamento, nos termos do artigo 123.º do CPP.
3.ª – A norma constante do art. 133.º, n.º 2, do CPP, aplicada pelo douto Acórdão proferido em primeira instância, ao admitir e considerar válido o depoimento prestado, em processo separado, por co-arguido de um mesmo crime ou de crime conexo cujo processo já terminou, ainda que com o seu consentimento expresso, em caso de o arguido que se encontra a ser julgado exercer o direito ao silêncio ou consentir que o julgamento decorra na sua ausência, é materialmente inconstitucional, por violação das garantias de defesa em processo criminal, consagradas no art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
4.ª – Nessa conformidade, deve declarar-se inválido o julgamento efectuado e todos os actos subsequentes, com as legais consequências.
5.ª – Os pontos 3 e 4 da matéria de facto provada – assentes na premissa de que, durante o ano de 1995, o arguido, enquanto responsável por duas sociedades comerciais, devia à “…” cerca de dezoito milhões de escudos, facto que o terá levado a propor ao representante desta sociedade que, em vez de lhe pagar a dívida, simulassem o furto de mercadoria a adquirir pela “…”, recebendo esta o valor do seguro e vendendo ambos a mercadoria – foram incorrectamente julgados.
6.ª – Da conjugação crítica das provas documental e testemunhal produzidas nos autos não resultou demonstrada, com um mínimo de consistência, sequer a existência de qualquer dívida das empresas representadas pelo arguido perante a empresa “…”, que pudesse justificar o recurso ao artifício fraudulento.
7.ª – Pelo contrário, o exame pericial contabilístico de fls. 955 a 1037, elaborado pela Polícia Judiciária, extrai-se que na data que o tribunal recorrido deu como provado que o arguido propôs ao sócio gerente da “…” o alegado plano fraudulento com a finalidade de liquidar dívidas das suas empresas – data próxima de Setembro de 1995 – nenhuma das duas empresas representadas pelo arguido era devedora àquela sociedade.
8.ª – Não se provando a existência de quaisquer dívidas das empresas representadas pelo arguido na data em que o crime foi planeado, falece a tese da diminuição do passivo daquelas como móbil da burla, e cai por base o requisito da intenção de obtenção de um enriquecimento ilegítimo por parte do arguido, basilar do tipo de crime de burla imputado ao arguido.
9.ª – O facto constante do ponto 5 da matéria de facto provada, consubstanciado em que o representante legal da firma “…” aderiu ao plano de simulação do sinistro pormenorizadamente delineado pelo arguido, destinado a induzir em erro a seguradora com vista à obtenção de uma vantagem patrimonial, foi também incorrectamente julgado, devendo merecer resposta de não provado, por manifesta insuficiência e pouca credibilidade do suporte probatório que lhe serviu de fundamento.
10.ª – Finalmente, a análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento impõe a alteração das respostas aos factos 6, 7, 21, 23, 24, 25, 28, 29, 30, 39 e 40, de provados para não provados.
11.ª – O Tribunal a quo cometeu um erro notório na apreciação da prova, ao ter condenado o arguido com base nos depoimentos duvidosos e contraditórios e ao não ter valorado outras provas susceptíveis de conduzir a uma absolvição em obediência ao princípio do in dubio pro reo.
12.ª – A prova produzida e examinada em audiência de julgamento é manifestamente insuficiente para sustentar a condenação do arguido para além da dúvida razoável, pelo que também por esta via se impunha uma deliberação de absolvição do arguido, ao abrigo do referido princípio.
13.ª – Ao assim não ter decidido, condenado o arguido Alípio como co-autor do crime de que vinha acusado, o tribunal a quo apreciou incorrectamente os factos e desconsiderou as regras da experiência comum e da lógica.
Em conformidade com as conclusões expostas (…), deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência:
- considerar-se a desconformidade com a Constituição da norma do art. 133.º, n.º 2 do CPP, aplicada pelo douto Acórdão proferido em primeira instância em termos de ser válido o depoimento prestado, em processo separado, por co-arguido de um mesmo crime ou de crime conexo cujo processo já terminou ainda que com o seu consentimento expresso, em caso de o arguido que se encontra a ser julgado exercer o direito ao silêncio ou consentir que o julgamento decorra na sua ausência, declarando-se inválido o julgamento efectuado e todos os actos subsequentes, com as legais consequências;
- para o caso de assim se não entender, deve em todo o caso revogar-se a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que absolva o arguido.
4. O Magistrado do Ministério junto da 1.ª instância concluiu a sua resposta ao recurso nestes termos:
1. As testemunhas … e … não assumem a posição de co-arguidos nos presentes autos.
O arguido … não se recusou, em audiência de julgamento, a prestar declarações.
Assim, não é invocável nem aplicável o disposto no art. 345.º do CPP.
2. Tendo havido separação de processos, sendo que no original, já julgado, eram todos co-arguidos, impunha-se nestes autos dar cumprimento ao disposto no art. 133.º do CPP, o que se fez.
3. Foi legítima, pois, a audição em julgamento das referidas testemunhas, nada resultando da Lei que impeça tal audição, assim como a devida valoração dos seus testemunhos.
4. Quanto a tal, foram aplicadas as normas legais ajustadas ao caso, nenhuma delas enfermando de qualquer tipo de inconstitucionalidade, inexistindo qualquer vício processualmente relevante, nomeadamente que implique a invalidade do julgamento efectuado.
5. O Acórdão em causa não enferma de qualquer vício integrável na previsão do art. 410.º, n.º 2, do CPP, designadamente nas suas alíneas a) e c).
6. Ao formar a sua convicção e posteriormente decidir, o Tribunal não se deparou com qualquer dúvida insanável que o levasse a favorecer o arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo.
Tal princípio não tem, pois, aplicação in casu.
7. A matéria de facto dada – bem – como assente, integra efectivamente a prática, pelo arguido, do crime de burla qualificada pelo qual foi condenado em pena de prisão, cuja execução foi suspensa.
8. O Acórdão em recurso mostra-se regularmente fundamentado, dele se extraindo com clareza e concretização dos elementos de facto que convenceram o Tribunal, a sua valoração, bem como o processo racional que levou à decisão tomada.
9. Não foi violado qualquer princípio ou norma jurídica, nomeadamente as referidas pelo recorrente.
10. O Acórdão impugnado deverá ser mantido nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso.
5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ao recurso ser negado provimento.
Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido … exerceu o seu direito de resposta, nos termos que constam de fls. 2375 e 2376.
Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
No caso sub judice, tendo em conta conclusões da motivação do recurso, o recorrente submete à apreciação deste Tribunal da Relação as seguintes questões:
A) Produção e valoração de meio proibido de prova;
B) Da inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 133.º, n.º 2 do Código de Processo Penal;
B) Dos invocados erros de julgamento em matéria de facto;
B) Do vício de erro notório na apreciação da prova; e
C) Violação do princípio in dubio pro reo.
2. No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1. No ano de 1995, como ainda no ano de 2001, … era um dos sócios-gerentes da “….”, que tinha sede na Estrada “…”, em Cacia.
2. Nessa qualidade, o … mantinha relações comerciais com o arguido …, responsável pelas sociedades “…” e “…”.
3. Durante o ano de 1995, o arguido …, enquanto responsável pelas sociedades “…” e “…” devia à “…” cerca de dezoito milhões de escudos, pelo que, pelo menos a partir de meados de 1995, o … começou a pressionar o … para que este pagasse tal dívida - pois não queria que os demais sócios da “…” se apercebessem das facilidades negociais que concedera ao arguido … e do elevado valor que a dívida atingira.
4. Em data próxima de Setembro de 1995, o arguido … propôs ao … que: em vez de pagar a dívida, simulassem o furto de mercadoria a adquirir pela “…” recebendo esta sociedade o valor do seguro correspondente e vendendo o … e o arguido … a mercadoria a terceiros, recebendo eles o dinheiro resultante dessa venda.
5. O … aderiu a tal plano pormenorizadamente delineado pelo arguido … e ambos passaram então à sua execução.
6. Foi incumbida do transporte da mercadoria cujo furto seria simulado a transportadora “…”, representado pelo …, o qual concordou em participar na execução do plano que lhe foi comunicado pelo …, mediante uma compensação.
7. O arguido … pôs então o … em contacto com o …, tendo estes últimos combinado trocar entre a “…” e a “…” correspondência comercial para dar à operação uma aparência normal de contrato de transporte.
8. Em finais de Outubro de 1995, a “…”, através do …, comprou a uma sociedade francesa (Nord-Morue) quarenta toneladas de bacalhau salgado verde, no valor total de um milhão duzentos e doze mil novecentos e noventa e dois francos franceses, mercadoria essa que teria de ser transportada em dois camiões, de modo a que o primeiro decorresse normalmente, enquanto no segundo, a cargo da “…”, seria simulado o furto.
9. Em Novembro de 1995, o … celebrou, em representação da “…”, com a companhia de seguros “Fidelidade, S.A.”, um contrato de seguro para o transporte terrestre de toda a mercadoria adquirida à Nord-Morue.
10. O seguro tinha por objecto o valor da carga acrescido de dez por cento para despesas e lucros esperados, sendo o montante seguro global de um milhão trezentos e trinta e quatro mil duzentos e noventa e um francos franceses (cerca de quarenta mil e seiscentos contos, considerando taxa de câmbio de 2001).
11. O …, incumbido de encontrar comprador para o bacalhau que iria ser subtraído, contactou …, representante da sociedade “…”, acordando com este a venda da mercadoria com condições de pagamento e preço não exactamente apurados.
12. Realizou-se o primeiro transporte, que decorreu com normalidade.
13. Depois, o … e o … fizeram retardar o segundo transporte, para que a mercadoria só chegasse à “…” numa sexta-feira e após o horário laboral.
14. Esse segundo transporte respeitava a cerca de dezanove mil e duzentos quilos de bacalhau, no valor de seiscentos e um mil e quarenta francos franceses (aproximadamente de dezanove mil e setecentos contos, considerando a taxa de câmbio de 2001).
15. O … escolheu para realizar esse segundo transporte um veículo de marca «Mercedes», com tractor de matrícula …e reboque de matrícula ….
16. O … incumbiu de conduzir o camião e reboque …, seu empregado.
17. Assim, o …, em conformidade com as instruções que recebera, fez por só chegar à “…” no dia 24 de Novembro de 1995, após as dezoito horas, de modo a inviabilizar a descarga da mercadoria nesse mesmo dia.
18. O … atrasou propositadamente a chegada a Aveiro.
19. O … durante a tarde do dia 24.11.1995 fez um telefonema para a “…” dizendo que estava a caminho e perguntando se nesse dia ainda poderia descarregar, destinando-se tal telefonema a simular que o atraso ocorrera casualmente.
20. A tal telefonema da “…”, por ordem do …, recebeu o … a informação de que fora do horário laboral não poderia ser realizada a descarga da mercadoria, que teria assim de ser realizada na segunda-feira seguinte.
21. Ao fim da tarde, depois das 18.30horas desse mesmo dia, como planeado pelo arguido …, o … estacionou o camião com a mercadoria nas imediações da “…”, no parque do Restaurante Estrela do Norte e com autorização do dono deste Restaurante, ….
22. Nessa mesma noite, o … foi informado que teria de levar o … a Braga. Para o efeito e para evitar ser observado a contactar o …, o … pediu ao …, seu amigo, que no veículo do próprio … fosse buscar o ….
23. Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1995, cerca da 01.30 horas, o arguido … e o … levaram o …, motorista de profissão, até ao local onde se encontrava o camião que fora conduzido pelo ….
24. Nesse local o arguido … e o … entregaram ao … a chave do camião e instruíram-no para que o levasse até à saída da auto-estrada A1 na Malveira, local de encontro combinado com o comprador, ….
25. O arguido … e o …seguiram atrás do camião conduzido pelo …, num veículo ligeiro de passageiros marca «Mercedes».
26. Entretanto, também o … se deslocou até ao local de encontro com o comprador, para o que foi transportado pelo ….
27. O …transportou o … no seu próprio automóvel, de marca «Ford», em todo o percurso a realizar e utilizando o seu próprio cartão «multi-banco» para pagamento das portagens.
28. Depois de se terem encontrado cerca das 05.00 horas, à saída da A1 na Malveira, o …, o …, o …, o arguido … e o … com o …, dirigiram-se para as instalações da sociedade E.N.B., situadas em Loures.
29. Já depois de o arguido … e de o … se terem ausentado, na E.N.B. foi rebentada a fechadura da galera do camião e procedeu-se à descarga da mercadoria.
30. Depois, seguindo instruções do arguido … e sendo seguido na viagem pelo …e pelo …, o … conduziu o camião até à estação de serviço da A1 em Santarém, no sentido Sul – Norte.
31. Nessa estação de serviço, o … simulou uma «ligação directa» da ignição e partiu um vidro da porta do lado direito do tractor para criar a aparência de que o camião tinha sido furtado por alguém que não tinha a respectiva chave.
32. O … abandonou então o camião, juntando-se ao Paulo e ao João José, que o levaram a casa.
33. O … teve conhecimento do plano criminoso em curso, aceitando colaborar na sua execução.
34. No dia 27 de Novembro de 1995, o … e o … apresentaram no Posto da G.N.R. de Cacia queixa, dizendo que o camião havia sido furtado.
35. Todavia, como o arguido … havia previsto, o camião foi encontrado no local onde fora abandonado pelo …, … e … e restituído ao … no dia 28.12.1995.
36. A companhia de seguros já referida entregou, em consequência do falso furto, vinte e três milhões trezentos e sessenta e quatro mil duzentos e dezassete escudos à “…” em 08 de Novembro de 1996.
37. … entregou ao …, para pagamento da mercadoria desviada, pelo menos cerca de oito milhões trezentos e trinta e quatro mil trezentos e setenta e cinco escudos, mediante a entrega de três cheques.
38. O … pediu a conhecidos seus, designadamente ao …, que depositassem nas respectivas contas bancárias os cheques e que lhe devolvessem depois em numerário os respectivos valores, pretendendo assim impedir a identificação da proveniência do dinheiro.
39. Como combinara com o arguido …, o … encaminhou para a “…” o dinheiro assim obtido, como se se tratasse de pagamentos efectuados pelo … para abatimento da dívida existente, evitando assim que terceiros se apercebessem de que tinha feito uma má gestão dos negócios da “…” com as sociedades representadas pelo ….
40. Ao actuar do modo descrito, agiu o arguido … livre e conscientemente, pretendendo alcançar vantagem que sabia não ser devida, apesar de saber que a sua conduta era punida por lei.
41. O arguido … não tinha antecedentes criminais à data dos factos.
3. Foram estes os factos provados e mais nenhum outro se provou com relevância para a decisão da causa, designadamente não se provou:
a) Que o … comunicou o plano ao motorista …, em cuja execução, mediante contrapartida, o … aceitou participar.
b) Que o … tenha demorado sete horas a realizar o percurso entre a fronteira de Vilar Formoso e a cidade da Guarda.
c) Que o …, na noite de sexta-feira, tivesse informado o … que teria de levar o … a Braga.
d) Que, nas circunstâncias descritas em 26., o … foi informado pelo … de todo o plano que estava em execução.
e) Que foi ciente desse plano que o João José prestou o auxílio necessário.
f) Que o … tenha rebentado a fechadura da galera do camião.
g) Que o … aceitou participar no plano a troco de uma quantia em dinheiro cujo valor oscilou entre os cento e cinquenta e os trezentos mil escudos, que lhe foi entregue pelo …, embora tivesse sido combinado com o arguido ….
h) Que o … tenha pedido ao seu sócio … que depositasse na conta pessoal deste um dos cheques recebidos pela venda do bacalhau.
i) Que o … acordou em participar no plano mediante a entrega de um camião velho para aproveitamento de peças.
4. Relativamente à fundamentação da decisão de facto, ficou consignado no acórdão:
A convicção do tribunal para dar os factos como provados alicerçou-se na ponderada conjugação crítica de toda a prova produzida em audiência de julgamento mormente a conjugação da prova documental junta aos autos e depoimentos testemunhais prestados.
A tal propósito cumpre referir o teor dos documentos de fls.15 a 16, 18, ,19, 24 a 31, 33 a 38, 40 a 44, 52 a 53, 56 a 64, 123 a 136, 140 a 151, 172 a 204, 235 a 257, 295, 296, 305, 308, 517 a 565, 567 a 581, 584, 585, 589 a 598, 842 a 898, 918, 1040 a 1067, o exame pericial de fls. 955 a 1037, documentos de fls. 965 a 1067, 1100 a 1102, os autos de busca e de apreensão de fls. 697 a 705 e 716 a 717, 720 a 757 e 760, analisados na sua objectividade.
Na sua conjugação com o teor dos documentos referenciados, o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas … da Policia judiciária, o qual confirmou as diligências efectuadas em sede de inquérito, …, militar da GNR que fez a entrega do camião encontrado na estação de serviço de Santarém, tendo esclarecido que se encontravam vidros no exterior (no chão) ao lado da porta do condutor, …, perito da companhia de seguros Fidelidade, o qual fez diligências externas no sentido de apurar os factos, esclarecendo ter visto a viatura a qual tinha vidros no interior da cabine, havia vidros na estação de serviço onde ela foi encontrada, e não havia sinal de vidros no parque do restaurante onde esteve parqueada, confirmou também o valor pago à “…” pela companhia de seguros; a testemunha …, proprietário do Restaurante …, por seu turno, esclareceu as circunstâncias em que o veículo pesado ficou parqueado, bem como o facto de a “…” situada ao lado já se encontrar encerrada na altura em que o camião chegou; circunstâncias em que deram pela falta do veículo pesado e o facto de não existirem quaisquer vidros no chão junto ao local onde a viatura esteve parqueada; testemunha …, proprietário da firma …, que adquiriu o carregamento de bacalhau em apreço nos autos, e esclareceu como contratou com o … a sua compra e circunstâncias da entrega, relatando também terem rebentado o fecho da galera do camião para descarregar o bacalhau; …, funcionária administrativa da “…” à data dos factos, a qual relatou como se passaram os factos no dia da chegada do camião de bacalhau e do estreito relacionamento entre o … e o arguido …; …, sócio da “…” à data dos factos, e que esclareceu as relações comerciais da “…” com as empresas do arguido … e dívidas destas àquela, relacionamento do arguido … com o … e a ocorrência de factos relativos à chegada do camião do bacalhau no dia da entrega; …, Militar da Brigada de Trânsito, que se deslocou à área de serviço de Santarém na A1, onde lhes havia sido informado estar uma viatura abandonada, esclarecendo o estado do pesado.
Em conjugação com a demais prova produzida e acima referida foram valorados os depoimentos de … e …, os quais acederam em depor como testemunhas e esclareceram de forma objectiva, consentânea com a demais prova produzida, coerente e credível, a forma como os factos ocorreram e intervenção nestes do arguido …. Designadamente, o primeiro esclareceu a forma como se viu envolvido em toda a situação, factos em que interveio e momento em que teve conhecimento dos factos; o segundo, por seu turno, relatou de forma circunstanciada o seu relacionamento com o …, a ideia (simulação de sinistro) que este teve para solucionar os problemas decorrentes dos débitos que as sociedades que representava tinham para com a “Ilhamar”; a forma como todos os factos ocorreram e respectiva intervenção nestes dos vários intervenientes.
Toda a prova produzida na sua conjugação e ponderação, nos moldes acabados de referir, permitiu ao tribunal o esclarecimento da matéria factual acima descrita e dada como provada.
A convicção do tribunal baseou-se ainda no CRC do arguido junto aos autos.
No que tange aos factos dados como não provados, estes resultaram da ausência de prova suficiente no que aos mesmos concerne.
4. Por razões de precedência lógica e necessária, começamos por abordar a questão relativa à invocada inadmissibilidade legal da produção e valoração dos depoimentos das testemunhas … e ….
Os presentes autos de processo comum colectivo, relativos ao arguido …, ora recorrente, surgem na sequência da separação de processos determinada, por despacho a fls. 1589, no processo comum colectivo n.º 1628/95.4JAAVR do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro (neste processo estava imputado ao arguido …, … e … a prática, em co-autoria material, de um crime de burla qualificada, enquanto aos restantes arguidos estava imputada a cumplicidade na prática do referido crime).
No referido processo 1628/95, os arguidos … e … foram julgados e condenados.
No âmbito dos presentes autos, após consentimento prestado nos termos do disposto no artigo 133.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante apenas designado por CPP), … e … prestaram declarações, como testemunhas, na audiência de discussão e julgamento (cfr. acta de fls. 2179/2181).
Apelando ao texto-norma do artigo 345.º, n.º 4, do CPP, refere o recorrente que se trata de prova proibida, insusceptível de valoração pelo tribunal a quo.
Porém, sem qualquer razão.
Como dispõe o n.º 2 do art. 133.º do CPP (redacção originária, a vigente na data da realização da audiência de julgamento), «em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo podem depor como testemunhas, se nisso expressamente consentirem».
A nova redacção conferida ao preceito pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, definiu ser exigível o consentimento mesmo nos casos em que os arguidos (de um mesmo processo ou de um processo conexo) já tenham sido condenados por sentença transitada em julgado.
Ora, na presente situação, a disposição normativa em causa foi plenamente observada, uma vez que, como ficou referido, … e …, co-arguidos no processo 1628/95, deram o seu consentimento expresso à prestação de depoimento na qualidade de testemunhas.
Assim, as declarações que os ditos arguidos prestaram no processo agora em curso estão tuteladas na sua produção e no seu âmbito pelo estatuto próprio das testemunhas.
De qualquer modo, não passamos sem referir que a interpretação conferida pelo recorrente à preposição normativa do n.º 4 do art. 345.º do CPP (introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto) não é consonante com o respectivo texto nem com a sua teleologia.
A referida norma acolheu a posição do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça Cfr., v.g., Acs. de 25-02-1999, proc. n.º 1404/98-3.ª; 07-02-2001, proc. n.º 4/00-3.ª; 30-10-2001, proc. n.º 2630-3.ª; e de 12-02-2003, proc. n.º 4524/02-3.ª, todos publicados, em sumário, no Boletim Interno do STJ. no sentido de estarem sujeitas ao princípio do contraditório as declarações de arguido na medida em que afectem o co-arguido, não valendo contra este se esse contraditório não puder ser estabelecido, mormente pela oposição do arguido produtor da prova. Entendimento contrário - «no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido, em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias desteoutro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio» - viola o princípio do contraditório plasmado no art. 32.º, n.º 5, da CRP Cfr. Acórdão do TC de 14-07-2007, n.º 524/97, publicado no BMJ 469/116..
É exactamente este o sentido da referida norma. Nela, o que está em causa é a inviabilização do exercício do contraditório por parte do arguido produtor de prova, na justa medida em que se recusa a depor sobre as perguntas efectuadas pelo tribunal e às sugeridas pelo Ministério Público e pelo defensor do co-arguido afectado pelas declarações daquele, sendo para o caso irrelevante que o co-arguido esteja ou não presente na audiência de discussão e julgamento, pois tal ausência não afecta obviamente o exercício do contraditório através do respectivo defensor.
No entendimento do recorrente, a norma do artigo 133.º, n.º 2, do CPP, suporte legal da inquirição, como testemunhas, dos co-arguidos … e …, padece de inconstitucionalidade material, por violar o “conteúdo essencial do direito de defesa do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
Mas também aqui sem razão.
Em casos que apresentam manifesta similitude com a situação configurada nos presentes autos já se pronunciou o Tribunal Constitucional.
No Acórdão n.º 304/2004, de 5 de Maio de 2004, proferido no processo 957/03 Publicado in www.tribunalconstitucional.pt., aquele Tribunal pronunciou-se pela conformidade constitucional do n.º 2 do art. 133.º do CPP, quando interpretado no sentido de ser válido o depoimento prestado por co-arguido de um mesmo crime ou crime conexo em processo separado, sem afirmação do seu consentimento expresso (enfatiza-se que na situação do presente processo existiu consentimento expresso dos co-arguidos … e …).
Escreveu-se nesse aresto:
«A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento (…) e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cfr., neste sentido, Medina de Seiça, O conhecimento probatório de co-arguido, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iurídica, n.º 42, Coimbra Editora, 1999, págs. 36 e 37).
A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à “colaboração forçada” na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma investigação.
O modelo do testemunho consentido, previsto no artigo 133.º, n.º 2, do CPP, pretende satisfazer a exigência de trazer o conhecimento probatório do co-arguido a um processo em que ele não se encontra a responder, sem eliminar a garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime ao constrangimento característico da prova testemunhal.
Ao cometer ao co-arguido a decisão sobre o exercício concreto da protecção, o impedimento deixa de ser absoluto e passa a relativo (…)» No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do TC de 5 de Abril de 2005, n.º 181/05, proferido no processo n.º 923/04, publicado in www.tribunalconstitucional.pt..
Assim, visando o n.º 2 do art. 132.º do CPP exclusivamente a protecção dos direitos de defesa do co-arguido em processo penal, garantindo o seu direito de se não auto-incriminar, e não também direitos fundamentais do arguido submetido a julgamento no processo separado, então tem de entender-se que a prestação de depoimento, como testemunha, de co-arguido que no processo separado já não assume essa qualidade e que, para o referido efeito, deu o seu consentimento expresso, não implica a violação das garantias de defesa, asseguradas pelo art. 32.º, n.º 1, da CRP, do arguido que está a ser julgado no processo onde esse depoimento é prestado.
Relativamente à propalada violação do 32.º, n.º 8 da Constituição é manifesto que ela não se verifica, pela razão evidente de a prova testemunhal prestada pelo co-arguido em processo separado, mediante consentimento do depoente, não se integrar em nenhuma das situações elencadas na dita norma.
Em função de todo o exposto, o tribunal a quo não incorreu em qualquer irregularidade, nem se verifica a invalidade de prova aludida pelo recorrente ou a violação dos arts. 18.º, n.º 2 e 32.º, n.ºs 2 e 8 da CRP.
5. Dos erros de julgamento em matéria de facto enunciados pelo recorrente:
Como se colhe da motivação do recurso, o juízo de censura do recorrente dirige-se aos n.ºs 3, 4, 5, 6, 7, 21, 23, 24, 25, 28, 29, 30, 39 e 40 da factualidade que no acórdão recorrido consta como provada.
No conhecimento da impugnação dos aludidos pontos de facto seguiremos o método estruturante definido pela recorrente.
a) Foi dado como provado nos preditos pontos de facto n.ºs 3 e 4 e 5:
«3. Durante o ano de 1995, o arguido … enquanto responsável pelas sociedades …e …, devia à … cerca de dezoito milhões de escudos, pelo que pelo menos a partir de meados de 1995 o … começou a pressionar o …. para que este pagasse tal dívida – pois não queria que os demais sócios da … se apercebessem das facilidades negociais que concedera ao arguido … e do elevado valor que a dívida atingira.
4. Em data próxima de Setembro de 1995, o arguido … propôs ao … que: em vez de pagar a dívida, simulassem o furto de mercadorias a adquirir pela …, recebendo esta sociedade o valor do seguro correspondente e vendendo o … e o arguido … a mercadoria a terceiros, recebendo eles o dinheiro resultante dessa venda
5. O … aderiu a tal plano pormenorizadamente delineado pelo arguido … e ambos passaram então à sua execução».
Objecta o recorrente: face à apreciação do exame pericial de fls. 955 a 1037 e dos depoimentos das testemunhas …, …, … e … não deveriam ter sido dados como provados os aludidos factos.
Há que ver, então, se o juízo valorativo firmado pelo tribunal colectivo é passível das críticas que lhe são dirigidas.
A testemunha … narrou detalhadamente as circunstâncias que determinaram a simulação do furto do camião, na sequência de plano previamente firmado como o arguido …, e o motivo subjacente a esse acto.
No contexto a ter em conta, referiu a testemunha (cfr. cassete n.º 3, lado A, voltas 1690 a 2375 e lado B, voltas 0005 a 2071):
A dívida à “sua empresa …” por parte do arguido … atingia, em 1995, o valor de “30 e tal mil contos”.
Fez, durante meses, diligências no sentido do pagamento daquela quantia, todas, no entanto, infrutíferas.
“Até que o … apareceu com uma solução”, que consistia “na simulação de um sinistro”, visando o pagamento da dívida daquele perante a “…”. “O cérebro disto foi o …. Foi o … que propôs, foi o… que fez e foi o … que provocou a situação”.
Numa reunião em Braga, onde estava o dono da empresa de camionagem foi planificada a acção toda (…)». O dono da empresa de camionagem (…) faria um transporte de França para Portugal e “abandonaria o camião”. Dava a chave do camião ao …. Em contrapartida, recebia do arguido …. um camião acidentado.
Já na execução do plano, «o … veio juntamente com o … e o contabilista deste (…). Trouxeram a chave, foram buscar o “CABÉ, que era o condutor, à Gafanha, deram-lhe a chave, foram levá-lo ao camião, ele pegou no veículo e levou-o para baixo.
A minha intervenção consistia em arranjar comprador para a mercadoria.
«A seguradora pagou à “…” o valor da mercadoria, cerca de 20 mil contos.
Do bacalhau, recebi 15 mil contos, por aí. (…) O … não recebeu nada. Este valor era para amortizar na dívida dele. (…) O valor da mercadoria é que era para entrar no abatimento. O valor da mercadoria serviu para amortizar uma parte da dívida da “…” à “…”. A restante parte tive eu que andar a metê-la do meu bolso.
Todo o dinheiro era para abater na conta.
Fui eu que andei a fazer as liquidações.
Fui eu que tirei os recibos e que andei a fazer coberturas de caixa.
A peritagem não consegue provar, na altura (…) a contabilidade não era feita (…) como hoje e portanto não havia maneira se de ver (…) as datas em que o dinheiro entrou. Como entraram movimentos em dinheiro, foram feitos recibos, os recibos forma feitos e depois fiquei (…) com os recibos na mão e fui fazendo entradas de dinheiro.
Aí podíamos manipular o que queríamos.
Contabilisticamente, deu entrada daquele dinheiro para abater a dívida dele, na restante parte tive eu que andar a inventar (…).
Contabilisticamente havia a dívida que depois daquela situação eu recibei-a; recibei para encobrir perante o meu pai, perante o sócio, perante o meu irmão, perante eles.
Havia uma pasta de valores pendentes e quem quisesse consultar os valores pendentes à data ia àquela pasta. Nós tínhamos depois uma folha normal, sempre que fazíamos cobranças íamos pondo lá o “recibo, a factura n.º tal foi liquidada pelo valor tal” e fazíamos o lançamento por aquilo e eu o que fiz foi pegar naqueles recibos e lançá-los.
Naquela altura, a factura e o recibo eram feitos em triplicado, em auto-cópia. O recibo ficava logo ali, se pagassem dava-se o recibo; se não pagassem, ficava lá».
Como se vê pelas passagens que se acabam de citar, o depoimento da testemunha … é marcado pela coerência e pela verosimilhança, atribuídos que lhe conferem ampla credibilidade.
Coerência que se afirma na explicitação das dívidas contraídas pelo arguido …, enquanto representante da “…”, perante a sociedade “…”, da qual a depoente … era sócio-gerente; no artificio engendrado para suprimento da dívida global; e os subterfúgios contabilísticos a que a testemunha recorreu, primeiramente para “encobrir” o valor da dívida e, depois, para registo dos valores auferidos pela venda do bacalhau.
As objecções contrapostas pelo recorrente à credibilidade do depoimento da testemunha, espelhadas a fls. 2333/2334 da motivação do recurso, mais não são do que meras conjecturas, sem qualquer suporte minimamente objectivado no contexto da prova produzida em julgamento.
Aliás, a versão da testemunha … está rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo.
Assim, a testemunha … (cfr. cassete n.º 3, lado A, voltas 0497 a 1690) narrou detalhadamente as circunstâncias em que se deslocou «à zona de Lisboa», no seu veículo automóvel, a pedido da testemunha …, que o acompanhava, na noite de 25 para 26 de Novembro de 1995, local onde veio a ser descarregado o camião “Mercedes”.
No contexto a ter em conta, referiu concretamente a testemunha:
«Fomos no meu carro a um armazém onde estava um camião (…). Estavam vários funcionários dessa empresa a descarregar bacalhau. Apercebi-me que o camião estava arrombado nas portas traseiras.
Depois de descarregarem o bacalhau, viemos para Aveiro.
(…).
Apercebi-me dos comentários (…) e que aquilo não se tratava de um uma coisa que fosse lícita.
Aquilo de que me apercebi foi o … a tentar justificar ao “CABÉ” que tinham feito aquilo porque o … devia dinheiro à “…” e que foi uma forma de tentarem resolver o problema (…).
O Sr. … ligou para o …, uma ou duas vezes, do meu telemóvel».
Nós antes de irmos para Lisboa tínhamos estado aqui, no autocarro-bar», conjuntamente com o Sr. ….
«O Sr. … foi para Lisboa no seu carro e o … comigo.
Durante a viagem nunca vi o …. Em Lisboa, depois apareceu, mas o camião já estava para se vir embora (…)».
Ora, a credibilidade do depoimento desta testemunha, a sua razão de ciência, advém-lhe precisamente da circunstância de ter ouvido comentários do … sobre o motivo determinante da acção concertada deste e do arguido …, visando o objectivo já referido.
E não vislumbramos neste conspecto a contradição assinalada pelo recorrente entre as declarações das testemunhas … e ….
Na verdade, em perfeita consonância com as declarações da primeira, instado pelo recorrente nestes termos: «Quando é que o Sr. . passou a saber que havia qualquer coisa que não estava lá muito bem?», respondeu a segunda: «Hipoteticamente, na noite da vinda, com um ou outro comentário, ele apercebeu-se. Depois, mais tarde (…) acabei por lhe contar a história toda (…)».
Corroboração que é densificada pelas declarações das testemunhas … e ….
A primeira, ao tempo dos factos funcionária administrativa na “…” e mulher da testemunha … (actualmente divorciada), embora renitentemente, acabou por admitir a existência de uma dívida de “milhares de contos” por parte das “empresas do Sr. …”, versão que foi plenamente confirmada pela segunda testemunha, conhecedora da situação por ser sócio-gerente da “…” (cfr. cassete 2, lado A, voltas 0195 a 1550 e 1550 a 2305).
Quanto ao relatório de exame à contabilidade da sociedade “…, Lda.” (fls. 955 a 1037 dos autos), invoca a recorrente que a convicção do tribunal a quo divergiu do respectivo juízo técnico, sem que tenha fundamentado a divergência.
Entendemos, porém, que, substancialmente, não é de aplicar ao caso a previsão do n.º 2 do artigo 163.º do Código de Processo Penal.
Na verdade, o juízo conclusivo formulado a fls. 962/964, no sentido de que, em Novembro de 1995, a “…” e “…” só deviam, à “….”, respectivamente, 1.393.168$00 e 57.395$00, foi emitido a partir dos elementos contabilísticos existentes na “…” na referida data e só nesta justa medida se impõe ao julgador como prova vinculada.
Ora, como sobejamente está demonstrado, tais elementos foram manipulados pela testemunha ….
Era, portanto, perfeitamente legítimo ao Tribunal, com base na investigação definitiva dos factos, apreciados livremente nos termos do artigo 127.º do CPP, apurar o valor real do débito das duas referidas sociedades para com a “Ilhamar”.
Por tudo o que fica dito, consideramos que o tribunal a quo foi criterioso na objectivação e motivação da análise crítica a que procedeu, análise essa que está de acordo com a apreciação conjugada de todos os elementos de prova enunciados supra. Tudo a partir de um processo lógico-racional onde imperou a consistência e maturidade, a perspicácia e a prudência na busca da verdade material.
Assim, a análise complexiva dos preditos elementos de prova conduz inevitavelmente a um juízo de convencimento, para além de toda e qualquer dúvida razoável, a processualmente válida, de que os factos descritos nos n.ºs 3, 4 e 5 do acervo factológico provado foram correctamente valorados e apreciados.
b) Quanto aos pontos de facto 6 (na parte em que se refere que o representante da empresa transportadora … concordou em participar na execução do plano criminoso que lhe foi comunicado pelo arguido, mediante uma compensação), 7 (na parte em que se refere que o arguido pôs o Juan Ignácio em contacto com o …), 21 (na parte em que se diz que foi por indicação do arguido que o motorista da empresa transportadora estacionou o camião com a mercadoria nas imediações de …, após as 18,30 horas), 30 (onde se menciona que o … conduziu o camião até à estação de serviço da A1, em Santarém, seguindo instruções do arguido …) e 39 (onde se refere que, por combinação com o arguido, o … encaminhou para a … o dinheiro da venda do pescado como se se tratasse de pagamentos efectuados pelo arguido), decorrem os mesmos das declarações acima transcritas das testemunhas …, corroboradas, em parte, pelas declarações da testemunha …, umas e outras merecedoras de toda a credibilidade, pela espontaneidade, rigor e coerência demonstradas.
c) Questiona o recorrente os pontos de facto provados sob os n.ºs 23, 24, 25, 28 e 29, invocando contradições entre os depoimentos das testemunhas … e …, entre si e com a versão apresentada pela testemunha ….
Mas essas contradições manifestamente não existem, como passamos desde já a demonstrar.
Referiu, a propósito a testemunha …:
«No sábado á noite, veio o …, o … e o “tal contabilista do …”. Vieram ter ao “autocarro-bar”. Encontrámo-nos ali (…). Eu estava com o …. O … e o … foram buscar o “CABÉ”. Foram levá-lo ao camião (…). Depois arrancou-se em direcção à Malveira.
Num carro, fui eu, a minha filha e o … (…)., em direcção à Venda do Pinheiro, à tal fábrica para descarregar o bacalhau.
O “CABÉ” seguiu no camião, sozinho.
O … ia atrás do camião. Foram todos até à Venda do Pinheiro. O … ia no Mercedes que era do ….
Só se descarregou o camião praticamente de manhã (…). Nesta altura, estava eu, o … (…)».
No que concerne à testemunha …, prevalecem as declarações já acima referenciadas, de que se destaca o facto de o arguido … ter estado no local em que o bacalhau foi descarregado.
Por sua vez, a testemunha …começou por ser peremptório quanto à ausência do recorrente no local da descarga do bacalhau (“o … não estava”) para logo de seguida manifestar dúvidas acerca desse facto, exclamando: “se ele ia no carro, antes do camião entrar na seca eles foram-se embora” (cfr. cassete 1, lado B, voltas 1921 a 2370 e cassete 2, lado A, voltas 0005 a 0195).
No mais, revelou os contactos que estabeleceu com a testemunha …, tendo em vista quer a aquisição quer a descarga do bacalhau, dados esses que se conjugam com as declarações, credíveis (mais uma vez se acentua), da testemunha Paulo Caçoilo quando pormenorizou o plano traçado pelo recorrente e a sua participação no mesmo: “arranjar a mercadoria e quem ficasse com ela”.
No demais invocado pelo recorrente, a testemunha …, à data dos factos averiguador da companhia de seguros, nada de relevante deu a saber (cfr. cassete 1, lado B, voltas 218 a 1486).
Relativamente ao ponto de facto 40, fazendo apelo ao razoável entendimento das regras de vida, são manifestamente compreensíveis laços de continuidade lógica que permitem formular um juízo de inferência sobre o processo psíquico revelador dos elementos (intelectual e volitivo) do dolo.
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, a análise crítica e global da prova produzida em julgamento, sobre os pontos concretamente especificados pelo recorrente, não justifica a formulação de juízo valorativo diferente do assumido pelo tribunal a quo, mantendo-se, nos precisos termos a matéria de facto que o mesmo tribunal deu por provada e não provada.
6. Do erro notório na apreciação da prova e da invocada violação do princípio in dubio pro reo:
Dispõe o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal:
«Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
«c) Erro notório na apreciação da prova».
Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece”. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo 2000, Vol. III, pág. 338/339.
O erro notório na apreciação da prova é prefigurável quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.
Ao invocar o referido vício, referindo que ele existe «por o tribunal ter condenado o arguido com base em depoimentos duvidosos e contraditórios e ao não ter valorado devidamente outras provas», o que verdadeiramente surge questionado é o processo de valoração da prova trilhado pelo tribunal a quo que, como vimos, não merece qualquer censura.
A alegada violação do princípio in dubio pro reo, uma vez verificada, deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o tribunal, na dúvida optou por decidir contra o arguido.
O referido princípio é um corolário da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. artigo 18.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, e 14.º, n.º 2, d o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos).
Colocado o tribunal de julgamento perante dúvida insanável em matéria de prova, deve aplicar o dito princípio.
Um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que o referenciado princípio se afirma.
Retomando o caso que se nos depara, não existe o mínimo indício de o tribunal a quo ter ficado na dúvida em relação aos pontos de facto postos em destaque pelo recorrente, reapreciados por este tribunal ad quem nos termos supra indicados.
Como assim, mostrando-se o tribunal a quo convicto da prova dos factos que deu como provados, não poderia aplicar o princípio in dubio pro reo.
III. Decisão:
Posto o que precede, decide-se negar provimento ao recurso do arguido …, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

Coimbra,
(Alberto Mira)
(Elisa Sales)