Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
103/06.8GAAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PROVA PROIBIDA
DECLARAÇÕES ESCUTADAS POR MEIO DE “ALTA-VOZ”
Data do Acordão: 10/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 126.º, N.º 3 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E 32.º, N.º 8 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: I. - O acesso a uma conversação telefónica através do sistema técnico de audição designado por “alta voz” integra o conceito jurídico-penal de intromissão (objectiva) no conteúdo de telecomunicações (cfr. Ac. do STJ de 07/02/2001, processo nº 2555/00, 3ª secção, acessível na jurisprudência do STJ, do site da Procuradoria Distrital de Lisboa).
II. - O depoimento prestado por uma testemunha, sobre factos jurídico-penalmente relevantes e obtidos através da função de “alta voz”, quando efectuado sem o conhecimento e o consentimento do emissor de voz, constitui-se como uma intromissão em telecomunicações e deve ser taxado como prova nula.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
No Tribunal Judicial da comarca de Arganil, e sob acusação do Ministério Público que lhe imputava a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, e de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, nº 2, ambos do C. Penal, na redacção anterior à da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, o arguido …, casado, pedreiro, nascido a 25 de Dezembro de 1971 em V…., residente na Suiça.
A assistente … deduziu pedido de indemnização contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 2.000, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido e até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais.
Por sentença de 7 de Fevereiro de 2008 foi o arguido condenado, pela prática do acusado crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 6,5, pela prática do acusado crime de ameaça, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 6,5, e em cúmulo, na pena única de 130 dias de multa à taxa diária de € 6,5 ou seja, na multa global de € 845.
Mais foi o arguido condenado no pagamento à assistente de uma indemnização no montante de € 759, acrescidos de juros de mora à taxa de 4%, a contar da data da decisão, e até integral pagamento.
Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o arguido, formulando no termo da respectiva motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1. As declarações da assistente e o depoimento da testemunha da acusação …, são contraditórios quanto ao local do crime, como reconhece a própria sentença. Se a assistente e a testemunha viram a mesma agressão em locais diferentes, não se pode ter ou concluir indubitavelmente – como faz a sentença – com convicção para além de dúvida razoável, da "prova" da agressão e que ambos a tenham presenciado, postergando-se, destarte, o princípio da presunção da inocência (art. 32º nº 2 da CRP) e o "in dubio pro reo". Trata-se, assim, de uma contradição insanável da fundamentação (contradição entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados) e de um erro notório na apreciação da prova, respectivamente, nos termos da al. b) e c) do nº 2 do art. 410 do CPP.
2. A douta sentença não atribuiu qualquer relevância da aludida contradição referida em 1. das presentes conclusões, no âmbito da acareação também realizada entre a assistente, … e a testemunha de defesa …, tendo considerado como frágil e inseguro o depoimento desta última. Ora, tendo a testemunha … situado a agressão perto das casas de banho, no sentido de um carreiro, a assistente nunca podia ter percorrido o passadiço situado entre as casas de banho e as escadas da esplanada. Daí assistir razão à …, a qual sempre referiu não se ter cruzado com a assistente, enquanto esta afirmava que "ela tinha de se ter cruzado". Ao não ter em conta este facto, o Tribunal julgou erradamente a fragilidade e insegurança do depoimento da testemunha … no âmbito da acareação desta com a assistente …, pelo que o Tribunal cometeu um erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, al. c) e não conheceu na sentença de questões que devia ter conhecido e que impunham uma apreciação diversa do depoimento da testemunha … e da decisão de facto e de direito, o que tem como consequência a nulidade da sentença, segundo o art. 379º nº 1, al. c) do CPP.
3. A sentença também julgou incorrectamente como não verosímil e credível o depoimento da … ao considerar apenas factos circunstanciais, não essenciais para o apuramento da verdade material, designadamente: a testemunha não conseguir referir que pessoas estavam no local e se abeiraram da … e nem sequer ouviu qualquer frase da boca do arguido, mas apenas da assistente a dizer "filha da puta". Não se compreende que o Tribunal não tenha valorado para a sua convicção que esta testemunha, …, referiu pessoas que estavam no local como sendo do Algarve e outras de Góis, mas não conhecia o nome destas últimas, pelo que a sua identificação se lhe apresentava como difícil; identificou o seu filho e alguns colegas deste, então adolescentes e agora na maioridade; não conseguiu referir que pessoas se abeiraram da assistente …, porque se terá gerado alguma confusão e afastou-se de imediato do local de onde viu a agressão; não ouviu qualquer frase da boca do arguido, porque, como ela disse, não se apercebeu do teor das mesma, mas já ouviu a assistente gritar – e não apenas dizer, como erradamente a sentença refere – as palavras "filha da puta". Cremos que não é razoável, não é plausível – porque não resulta das máximas da experiência comum – que o facto de uma testemunha não conseguir referir que pessoas estavam no local e se abeiraram da … após a agressão, leva à desconfiança e não fiabilidade do depoimento da mesma, mormente no que concerne à agressão propriamente dita.
4. A invocação do Tribunal que faz parte das regras da experiência que "ninguém que pretende agredir outrem se dirige a ele com o punho no ar e percorre alguns metros nessa posição". Antes pelo contrário, diremos que é normal. Facilmente representamos na nossa mente tal gesto e imagem, porque é comum em quem quer agredir alguém que se está a afastar e virado de costas para o agressor. Há, assim, um erro notório na apreciação da prova, conforme o disposto no art. 410, nº 2, al. c) do CPP.
5. A sentença considerou que "a circunstância da narração efectuada pela testemunha ser absolutamente coincidente com o arguido e retira-lhe veracidade". Não existe algum pressuposto processual ou substantivo que não imponha tal coincidência na apreciação da prova. Antes pelo contrário e segundo o normal acontecer, quão maior é a aproximação entre declarações ou depoimentos, ou entre aqueles e estes e vice-versa, maior será o juízo de verosimilhança – critério este que foi utilizado na douta sentença pelo Tribunal ao considerar, quanto às declarações da assistente e da testemunha …, "são absolutamente concordantes quanto ao modo e caracterização posterior da agressão". Impunha-se, também ali, concluir pela veracidade do depoimento da testemunha ….
6. Pelo que vai dito nos números anteriores das conclusões, também se constata um desfasamento e consequente incompreensão dos critérios de apreciação utilizados pelo Tribunal na da prova apresentada pela defesa e na prova apresentada pela acusação, sendo flagrante a contradição na sentença entre critérios de apreciação da prova produzida e, consequentemente a contradição insanável na fundamentação da sentença quanto à prova produzida – art. 410º, nº 2, al b) do CPP
7. O depoimento de … e ao contrário do vertido na sentença, devia ter merecido as maiores reservas pelo Tribunal. E que, para além deste ser amigo e familiar da assistente, esposa do arguido, é também o Ilustre mandatário da assistente em vários processos contra o arguido, tal como consta da acta da audiência e em incidente levantado pelo mandatário do arguido que foi merecedor do douto despacho na acta da audiência, "… deste julgamento ser o 5º em que se encontram os mesmos sujeitos processuais, por vezes em qualidade distintas, mas, fundamentalmente, na maioria deles, a ofendida nestes autos foi também queixosa/demandante cível, no âmbito do Processo Comum Singular nº 64/03.3GAAGN, cuja audiência se iniciou e terminou no passado dia 21 de Janeiro, no Processo Comum Singular nº 18/07.2GAAGN e no Processo Comum Singular nº 32/07.8TAAGN, cujas sessões de julgamento ocorreram respectivamente, nos dias 23 e 21 de Janeiro."
8. Os depoimentos de … e … são contraditórios quanto ao momento em que ocorreu a agressão: o primeiro refere que "Entretanto, vejo o … levantar-se de repente, mas pensei que tinha ido a qualquer lado e só dou pela situação quando a … vem a correr, desesperada, a tremer por todos os lados, a dizer "primo, vem depressa porque ele está a bater outra vez na minha irmã, na minha mãe." E foi nessa altura que eu fui, mas já as coisas tinham acontecido.", enquanto o segundo diz que "Eu só, eu só virei para a garota quando a garota estava ao pé do Abílio, familiar da …." "Olhei novamente, portanto mudei o ângulo novamente e foi aí que vi e volto a dizer novamente o mesmo que já disse: a … a afastar-se, uma prisão de braços e a levar duas bofetadas."
9. Existindo a contradição entre os depoimentos acabados de referir, não poderia ter a sentença dado como provado que "4. Nessa altura, em companhia da mãe … encontrava-se também a filha mais velha, que assistiu aos factos acima relatados ". Trata-se, assim, de uma contradição insanável da fundamentação (contradição entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados) e de um erro notório na apreciação da prova, respectivamente, nos termos da al. b) e c) do nº 2 do art. 410 do CPP.
10. Pelo exposto até aqui, a sentença não valorou devidamente toda a prova produzida, interligando-a entre si para formular um juízo lógico, racional, indutivo e com o mínimo exigível de objectividade e perseguição da verdade material, em clara violação do art. 372º, nº 2 do CPP, o que constitui, nos termos da al. a) do nº1 do art. 379º do CPP, uma nulidade.
11. Quanto ao crime de ameaças, a douta sentença considerou como provado que " 7. Durante esse lapso de tempo, de mais ou menos 10 a 15 dias, o arguido ligou para o telemóvel da … dizendo-lhe para não regressar a casa senão "tombava".
"8. A … tomou a sério as afirmações proferidas pelo arguido, vivendo, desde essa altura, receosa do que pudesse vir a acontecer".
Como muito certeiramente refere o Ac. do STJ de 15-11-2007 "Não se podem considerar como factos as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, o tempo, nem a motivação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa, e assim constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são "factos" susceptíveis de sustentar uma condenação penal."
Estamos perante o princípio negativa non sunt probanda, no que concerne ao exercício do contraditório pelo arguido. Dir-se-á., pois, que a matéria deste facto dado como provado não o deveria ter sido, porque genérica e imprecisa no espaço e no tempo, é manifestamente insuficiente para ser vertida para o domínio factual com relevância jurídico-penal. – art. 410, nº 2, al. a) e viola o art. 32º da CRP.
12. Do depoimento da testemunha …, resulta que ela tomou conhecimento do facto imputado ao arguido quanto ao crime de ameaças através da activação pela assistente do sistema de alta voz do seu telemóvel. O art. 32º nº 8 da CRP preceitua a nulidade de todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão nas telecomunicações e os arts 125º e 126º nº 3 do CPP estabelecem a inadmissibilidade de provas proibidas por lei, considerando como nulas as provas obtidas mediante intromissão nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. Dúvidas não nos restam que o depoimento da testemunha … foi obtido e teve como razão de ciência uma intromissão no sentido de acção de devassa (v., Costa Andrade, obra citada, pág. 763) de uma escuta resultante da colocação em sistema de alta voz (meio técnico de audição) do telemóvel da assistente e por esta realizado e visando tal fim, sem o consentimento do arguido – factos que tipificam o crime previsto e punido pelo art. 194 nº 2 do CP. Tendo sido utilizada na fundamentação da sentença uma prova proibida, nula a sentença é, também, nula, nos termos dos arts. 32º nº 8 da CRP e arts 126º, nº 3, 122º nº 1 e 410, nº 3 do CPP.
13. O Tribunal "a quo" não perseguiu o dever de objectividade no que concerne ao reconhecimento de voz do arguido pela testemunha … O reconhecimento de voz é um facto objectivo que, por isso mesmo, pode ser constatado através de critérios objectivos e que o Tribunal desprezou facto bem demonstrado através da omissão de tal factualidade na matéria provada e da notória relevância que atribuiu às declarações subjectivas da testemunha para a imputação da responsabilidade penal ao arguido. Neste sentido, o Tribunal devia ter investigado, em nome da verdade material, o afirmado pela assistente e não levá-lo para o âmbito da sua livre convicção pelo que aqui se invoca a violação do art. 120º, nº 2, al. d) e a nulidade da sentença por violação do art. 379º, nº 1, al. c), primeira parte.
14. Ainda quanto ao provado em 7. e 8. da matéria de facto, no processo nº 32/07.8TAAGN, que correu termos neste Tribunal, foi proferida sentença de absolvição do ora arguido quanto a um crime de injúrias, tendo a motivação da sentença considerado a existência de uma grande conflitualidade entre os ora assistente e arguido, bem como uma linguagem desbragada entre os mesmos. O aqui arguido entende que a fundamentação dessa mesma sentença condensa factos que de nenhuma forma são conciláveis com os factos que serviram à condenação do presente crime de ameaças, pelo que vem aqui suscitar graves dúvidas sobre a justiça da presente condenação do crime de ameaças, requerendo a audiência de julgamento para apresentação e discussão dos respectivos elementos de prova, nos termos dos arts 430º e 431º do CPP.
15. Contrariamente ao consignado no Relatório da sentença e como resulta da acta de audiência de discussão e julgamento – e da própria fundamentação da sentença no que respeita às testemunhas de defesa – o arguido apresentou contestação escrita (ditada para a acta) e rol de testemunhas, na sequência da questão prévia que suscitou, pelo que a sentença contém uma irregularidade, nos termos do art. 380º, nº 1, al. b) do CPP.
16. Independentemente desta irregularidade referida no art. 8º das conclusões, a douta sentença, ao consignar na motivação que: "Por outro lado, o arguido teve oportunidade de apresentar a sua contestação e rol de testemunhas, o que não fez, tendo conhecimento de todos os factos que lhe eram imputados, através do douto libelo acusatório que consignou os elementos fácticos essenciais relativamente aos dois ilícitos que lhe foram imputados", violou o princípio da presunção da inocência (art. 32º da CRP). Estamos perante um flagrante e notório erro jurídico e judicial que "contamina" inexoravelmente toda a decisão condenatória – porque nela está incorporado, dele está eivada.
17. Ainda quanto à consignação aludida no nº 8 das conclusões e porque aquela se apresenta em nítida contradição com o conteúdo da acta da audiência, sem que o tribunal tenha fundamentado tal divergência na sentença, esta padece de nulidade derivada de uma omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º, nº 1 al. c) do CPP.
18. A sentença é arbitrária quando não tomou como verdadeiras as declarações do arguido quanto ao seu salário mensal na Suíça, fundando-se em meros juízos subjectivos e desprezando a prossecução da verdade material e nada dizendo quanto ao aproximado ou efectivo salário que, segundo a convicção do Tribunal, o arguido devia auferir ou, pelo menos, declarado – o que, além do referido prejudica seriamente o exercício do recurso das sentenças constitucionalmente consagrado e os inerentes direitos de defesa (art. 32º da CRP). Nesta medida, a sentença é nula por falta de fundamentação, nos termos do art. 379º, nº 1 al. a)
19. Por estas mesmas razões, a medida da pena e o quantum indemnizatório em que o arguido foi condenado está, também eivado de arbitrariedade e de falta de fundamentação, revelando-se como desproporcionados e excessivos face às declarações do arguido.
Concedendo como procedente o presente Recurso e absolvendo o Arguido/Recorrente, V. Exas, Venerandos Desembargadores, farão a MAIS LÍDIMA JUSTIÇA.
(…)”.
Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, formulando no termo da sua contramotivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1 – A douta sentença recorrida não enferma de nulidade ou de outro vício que obste à eficácia do aí decidido.
2 – O Tribunal apreciou livre e responsavelmente todos e apenas os meios de prova legalmente admissíveis, aferindo a prova produzida segundo as regras da experiência e as necessidades práticas da vida, havendo fundamentado devidamente a sua convicção.
3 – A factual idade fixada como provada preenche todos os elementos (objectivos e subjectivo) constitutivos dos crimes de ofensa à integridade física e de injúrias censurados ao recorrente.
4 – A decisão evidencia, também, o modo criterioso como o Tribunal escolheu a pena e, partindo da moldura penal, determinou a pena concreta para cada crime, aferida pelo grau de culpa do arguido e pelas exigências de prevenção, sem deixar de ter presente tudo quanto, para o efeito, resultou provado em benefício ou em desfavor do agente, fixando, por último e entrando em linha de conta com a situação económica e os encargos pessoais do condenado, a taxa diária da pena de multa,
5 – Vindo a operar cúmulo jurídico dessas penas e a fixar, ajustadamente, a pena única.
6 – A sentença recorrida não interpretou deficientemente qualquer preceito legal e, designadamente, os artigos 32º, da Constituição da República, 127º, 130º, n.º 2, 340º, 374º, 379º e 410º, do Código de Processo Penal, e ou 40º, 71º, 143º, n.º 1, e 153º, n.º 1, do Código Penal, necessariamente questionados na motivação do recorrente.
Nestes termos e pelo mais que, V.as Ex.as, Venerandos Juízes Desembargadores, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, julgando improcedente o recurso interposto pelo arguido Paulo Amaral Jesus Rodrigues e, consequentemente, confirmando-se a douta sentença condenatória recorrida, far-se-á Justiça.
(…)”.
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1, do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à argumentação aduzida pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, e pronunciando-se no sentido de que a sentença recorrida observa todos os requisitos no plano da fundamentação jurídico-factual, efectuou uma correcta subsunção dos factos ao direito e determinou correctamente as penas, concluiu pelo não provimento do recurso.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal, tendo respondido o recorrente, reafirmando algumas das conclusões da motivação.
Colhidos os vistos e efectuada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes as questões de decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso:
- A irregularidade da sentença;
- A violação do princípio da presunção de inocência;
- As nulidades da sentença;
- Prova proibida;
- Inobservância do princípio negativa non sunt probanda;
- Violação do princípio in dubio pro reo;
- Os vícios do art. 410º, nº 2, do C. Processo Penal;
- Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto (ponto 4 dos factos provados da sentença);
- Errada fixação da medida da pena;
- Errada fixação do montante indemnizatório.
Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:
A) A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
1. O arguido é casado com …, de quem tem duas filhas de menoridade.
2. No dia 1 de Setembro de 2006, entre as 0:00 e as 02:30 horas, no bar denominado "E…", localizado na Fazenda …, onde o arguido se encontrava a trabalhar, este envolveu-se em discussão com a esposa ….
3. A dada altura, o arguido agarrou a … pelos braços, impedindo-a de os movimentar, e, em seguida, desferiu-lhe duas bofetadas que a atingiram no rosto, fazendo com que esta gritasse.
4. Nessa altura, em companhia da mãe … encontrava-se também a filha mais velha, que assistiu aos factos acima relatados.
5. Nessa madrugada, decorridas algumas horas do sucedido supra, a … e as duas filhas ainda regressaram à habitação que partilhava com o marido, aqui arguido.
6. No período da manhã do dia referido em 2., a … e as duas filhas dirigiram-se para a casa de pessoas amigas, sita na Figueira da Foz, local onde permaneceu até meio do mês de Setembro.
7. Durante esse lapso de tempo, de mais ou menos 10 a 15 dias, o arguido ligou para o telemóvel da … dizendo-lhe para não regressar a casa senão "tombava".
8. A … tomou a sério as afirmações proferidas pelo arguido, vivendo, desde essa altura, receosa do que pudesse vir a acontecer.
9. O arguido actuou livre e conscientemente querendo atingir, como efectivamente fez, a integridade física da esposa … e provocar-lhe lesões corporais.
10. Devido a essa conduta do arguido, a … ficou com vergonha e mal-estar.
11. Ao proferir a descrita afirmação, o arguido actuou com intenção de perturbar a … no seu sentimento de segurança, afectando, desse modo, a sua liberdade de movimentação e de actuação, o que conseguiu.
12. Este descrito comportamento provocou na … uma perturbação do seu equilíbrio emocional.
13. Sabia ainda o arguido que o seu comportamento era contrário ao direito e penalmente censurável.
14. A … e o arguido encontram-se separados de facto actualmente.
15. O arguido presentemente reside com companheira, encontrando-se a trabalhar na Suiça no ramo da construção civil; possui uma situação económica actual desafogada.
16. Negou a prática dos factos.
17. Não possui antecedentes criminais.
(…)”.
B) Considerou não provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
- que o arguido, no dia em causa nos autos, tenha abanado a assistente.
- que o arguido, no dia em causa nos autos, apenas tenha empurrado a esposa Natália, que caiu no chão, procurando defender-se de uma eventual agressão que esta se preparava para concretizar.
(…)”.
C) E dela consta a seguinte convicção de facto (transcrição):
“ (…).
Convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados : Funda-se esta no conjunto da prova produzida em audiência, analisada no seu conjunto de forma crítica e ponderada, designadamente :
1. As declarações do arguido, o qual, embora negando ter desferido duas bofetadas à Natália, confirmou tê-la empurrado para se defender de uma possível agressão que esta pretendia infligir-lhe; estas declarações demonstraram-se absolutamente incredíveis, face à restante prova testemunhal produzida; na realidade, só uma testemunha, …, amiga do arguido e por este indicada para depor, relata os acontecimentos que declarou ter visto naquela noite de forma coincidente, nos aspectos relevantes, com o referido …. Não tendo sido ouvidos os dois ao mesmo tempo, estavam, à evidência – atento o princípio da imediação – em sintonia ou coincidência total.
Foram tidas em consideração as declarações do arguido quanto à sua situação pessoal e profissional.
2. As declarações de …, ainda esposa do arguido, que confirmou a matéria que supra ficou consignada na matéria assente, relatando-a nos seus aspectos essenciais e de forma clara, directa e credível, negando que, em algum momento, se tenha aproximado do arguido, com um braço no ar, com intenção de o agredir; as suas declarações foram convincentes e credíveis, não nos tendo sido suscitada qualquer dúvida ou reserva sobre a veracidade das mesmas; teve ainda relevância o seu depoimento quanto à matéria do pedido de indemnização dada como provada.
3. Os depoimentos de … e …, I. Advogado nesta Comarca, tendo referenciado ser amigo da …, seu parente afastado e, fora destes autos, mantém ainda relacionamento profissional com a aqui assistente, relacionado com os aspectos da sua vivência matrimonial e com o pai das filhas, aqui arguido.
A primeira testemunha ora referenciada, …, mostrou-se verdadeira no seu relato circunstanciado dos factos por si presenciados, confirmando a agressão do arguido em relação à ofendida, resumidamente através de duas bofetadas que aquele desferiu na cara desta. Deste modo, depois da acareação efectuada entre esta testemunha e a depoente …, assim como através de esclarecimentos prestados, nessa sede, pela assistente, verificámos a espontaneidade e veracidade que foi notória e denotada no depoimento de ….
Assim, pese embora este depoente não coincida com o que foi afirmado pela assistente quanto ao exacto local da agressão, verificámos que ambos não concertaram os seus discursos e, por outro lado, são absolutamente concordantes quanto ao modo e caracterização posterior da agressão; ambos mencionam as duas bofetadas e o "agarrar" anterior, bem como o facto de a … não ter caído ao chão, muito menos foi ela que se abeirou do marido ou seguiu em direcção ao mesmo com um braço no ar; em nenhum momento isso sucedeu, de acordo com o relato da assistente e testemunha ….
A segunda testemunha, …, foi fundamental no que respeita aos acontecimentos posteriores à agressão, nomeadamente no que concerne ao facto de a filha mais velha do arguido se ter dele abeirado, dizendo-lhe "primo vem ajudar, ele está outra vez a bater na minha mãe"; este depoente relatou ainda ter acompanhado a … a casa nessa noite, juntamente com as duas meninas, constatando o aspecto agressivo do arguido.
Este depoimento, de uma testemunha que assistiu a alguns factos logo após a agressão, embora a não tenha observado, e sobre o objecto do processo, enquadra-se nas disposições inseridas nas normas dos artºs. 128 a 139, do Código de Processo Penal, pelo que é válido como MEIO de PROVA testemunhal.
Por outro lado, este testemunho, como supra foi dito, é verdadeiro e credível e foi obtido de modo válido, de acordo com o disposto, nomeadamente, no artº. 128, nº. 1, do Código de Processo Penal. Donde, entendemos atrás e continuamos a entender, salvo o devido respeito por opinião contrária, que esta prova testemunhal obtida é legal.
4. O depoimento de … foi muito importante, pois, na qualidade de amiga e anfitriã da … na casa da Figueira da Foz, confirmou o telefonema que o arguido efectuou e o seu teor, relatando a frase que ouviu relativamente à assistente "tombar" caso regressasse à residência do casal; na altura, porque mais familiarizada com a língua portuguesa falada no Brasil, não atribuiu relevância ao termo "tombar", tendo sido elucidada quanto ao seu conceito pela assistente; a circunstância de ter reconhecido a voz do arguido deve-se ao facto de ser habitual, em anos anteriores, a … e o … passarem férias juntos com ela e seus familiares, mantendo relacionamento social na Vila de Góis, onde todos habitavam.
5. O dolo do arguido é extraído das regras do normal acontecer e de experiência comum, tendo em conta o supra referenciado a propósito das declarações da assistente e dois testemunhos supra citados.
6. O depoimento de …, amiga do arguido, não nos mereceu confiança, nem fiabilidade; primeiro, a testemunha não conseguiu referir que pessoas estavam no local e se abeiraram da … após a agressão, nem sequer ouviu qualquer frase da boca do arguido, mas apenas da assistente a dizer "filha da puta".
Por outro lado, a forma como relata terem ocorrido os acontecimentos não nos pareceu verosímil, nem credível; isto porque ninguém que pretende agredir outrem se dirige a ele com o punho no ar e percorre alguns metros nessa posição.
Por fim, a circunstância da narração efectuada pela testemunha ser absolutamente coincidente com o arguido retira-lhe veracidade, o que, cotejado com o aspecto relativo aos depoimentos prestados por …, … e assistente e supra consignados, leva-nos a considerar esse depoimento não merecedor de credibilidade.
A acareação entre esta testemunha e a assistente e ainda também a testemunha …, levaram-nos a considerar frágil e inseguro o depoimento da primeira (a …).
Valeu-se ainda o Tribunal no certificado de registo criminal do arguido.
Por fim, os factos que se deram como não provados foi porque nenhuma prova cabal/suficiente sobre os mesmos foi feita e ainda a prova que se fez está em flagrante oposição com os supra referidos.
Como acima ficou mencionado, a versão do arguido não se mostrou coerente, nem credível, atendendo ao relato mencionado pela assistente, testemunha …, … e …. Por outro lado, o arguido teve oportunidade de apresentar a sua contestação e rol de testemunhas, o que não fez, tendo conhecimento pleno de todos os factos que lhe eram imputados, através do douto libelo acusatório que consignou os elementos fácticos essenciais relativamente aos dois ilícitos que lhe foram atribuídos.
(…)”.
Da irregularidade da sentença (conclusão 15)
1. Pretende o recorrente que a sentença enferma, nos termos do art. 380º, nº 1, b), do C. Processo Penal, de uma irregularidade que consiste em, contrariamente ao que consta do seu relatório, e como resulta da acta da audiência de julgamento, ter sido apresentada contestação escrita, ditada para a acta e rol de testemunhas.
1.1. No despacho que designou dia para julgamento proferido a fls. 87 e v., foi mantido como defensor do arguido o já nomeado e determinado o cumprimento do disposto no art. 313º, nº 2, para os termos do art. 315º, do C. Processo Penal isto é, foi determinada a notificação do arguido e seu defensor para, além do mais, o primeiro apresentar, querendo, contestação e rol de testemunhas, no prazo de 20 dias.
A contestação não está sujeita a formalidades especiais (nº 2 do art. 315º citado), mas, enquanto peça destinada a assegurar a defesa do arguido, deve indicar de forma clara os factos relevantes cuja prova pretende efectuar e os argumentos de direitos tidos por. Assim, quando apresentada, pois de mera faculdade se trata, terá que revestir a forma escrita.
O despacho em questão, que designou para julgamento o dia 7 de Novembro de 2007, foi notificado ao defensor do arguido por via postal registada datada de 17 de Setembro de 2007 (fls. 89). Mas a sua notificação ao arguido, por via postal simples com prova de depósito, não se efectuou em 1 de Outubro de 2007, por não existir receptáculo (fls. 108 a 109).
No dia 10 de Outubro de 2007 o arguido constitui mandatário judicial (fls. 102 a 107).
Por despacho de fls. 112, o julgamento foi transferido para o dia 21 de Janeiro de 2008 e neste dia, por impedimento da Mma. Juíza, foi proferido despacho transferindo o julgamento para o dia 23 de Janeiro de 2008.
Aberta a audiência no dia 23 de Janeiro, o Exmo. Mandatário do arguido efectuou o seguinte requerimento:
O arguido … vem levantar a seguinte questão prévia, nos termos do disposto no art. 338º do CPP, visando fundamentalmente a clarificação da acusação porquanto, da acusação consta que os factos dela constantes ocorreram no dia 14 de Setembro de 2006, pelas 12h. Ora, quando o aqui Mandatário compulsou os actos constatou que, e segundo crê, a fls. 56, das declarações dela constantes consta uma hora – 2h30 – e uma data – 01.09.2006 – que não correspondem, ou não estão em conformidade com a douta acusação. Nestes termos, requer-se que seja clarificada tal desconformidade que ora se alega.”.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de assistir razão ao arguido, havendo lapso na data dos factos, que é 1 de Setembro de 2006, pelas 2h30, e requereu a rectificação do lapso de escrita.
Nada tendo oposto o arguido à correcção do dito lapso, a Mma. Juíza determinou que o mesmo fosse corrigido.
O Exmo. Mandatário do arguido efectuou então o seguinte requerimento:
Face à correcção ora verificada, entende o arguido que estamos perante uma alteração não substancial dos factos da acusação. Facto que se revela como essencial ao exercício do contraditório. É obvio que o arguido se lembra dos mesmos factos constantes da acusação e, por mera cautela, trouxe duas pessoas que considera relevantes para o exercício do contraditório e apresentação da prova testemunhal.
Assim, vem o arguido aceitar, não se opondo à correcção ora verificada pela Ilustre Magistrada do Ministério Público, vem em sequência, aqui nesta sede, oferecer o merecimento dos autos e apresentar a seguinte prova: …e …, que se encontram presentes neste Tribunal.”.
Seguidamente, e nada tendo oposto o Ministério Público, a Mma. Juíza proferiu despacho deferindo ao requerido.
Por último, no relatório da sentença recorrida pode ler-se:
O arguido não apresentou contestação escrita, nem arrolou testemunhas de defesa.”.
1.2. Começaremos por dizer que no art. 380º, nº 1, do C. Processo Penal não se encontra prevista qualquer irregularidade da sentença mas antes os casos em que a lei permite a sua correcção.
A sentença penal começa por um relatório que contém, além do mais, a indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada (art. 374º, nº 1, d), do C. Processo Penal).
Face aos diversos passos processuais que se deixaram expostos, podemos dizer que não assiste razão ao recorrente.
Em primeiro lugar, é o próprio arguido quem afirma que ditou para a acta a contestação o que significa que, a admitir-se que se estava perante uma contestação, ela sempre teria sido apresentada oralmente.
Em segundo lugar, há muito se mostrava esgotado o prazo para o arguido apresentar a contestação, entendida esta como a peça destinada a apresentar os argumentos, de facto e de direito, opostos pelo arguido à acusação.
Finalmente, porque o que o arguido ditou para a acta foi um requerimento invocando a existência de uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação, alegadamente decorrente da rectificação de um erro de datas constante da acusação, e indicando como defesa perante tal alteração, duas testemunhas. Independentemente de se saber se o erro era rectificável e se, sendo rectificado como foi, tal consubstanciaria uma alteração não substancial dos factos, tal requerimento não é uma contestação, nem a prova indicada se relaciona com o rol de testemunhas a que se refere o art. 315º do C. Processo Penal, antes cabendo na previsão do art. 358º, nº 1, do C. Processo Penal.
Desta forma, não enferma a sentença da apontada irregularidade.
Da violação do princípio da presunção da inocência (conclusão 16)
2. Pretende o recorrente que, independentemente da existência da irregularidade antecedente – a referência ao art. 8º das conclusões parece ser lapso – a sentença enferma de um flagrante erro jurídico e judicial, por violação do princípio da presunção da inocência, ao consignar na motivação que teve a oportunidade de apresentar contestação e rol de testemunhas, o que não fez, tendo conhecimento de todos os factos que lhe eram imputados na acusação.
Na fundamentação da sentença, e relativamente aos factos não provados, lê-se:
Por fim, os factos que se deram como não provados foi porque nenhuma prova cabal/suficiente sobre os mesmos foi feita e ainda a prova que se fez está em flagrante oposição com os supra referidos.
Como acima ficou mencionado, a versão do arguido não se mostrou coerente nem credível, atendendo ao relato mencionado pela assistente, testemunha …, … e …. Por outro lado, o arguido teve oportunidade de apresentar a sua contestação e rol de testemunhas, o que não fez, tendo conhecimento pleno de todos os factos que lhe eram imputados, através do douto libelo acusatório que consignou os elementos fácticos essenciais relativamente aos dois ilícitos que lhe foram atribuídos.”.
Posto isto.
O art. 32º da Lei Fundamental contém os mais importantes princípios materiais do processo criminal, dando corpo ao que podemos designar por constituição processual criminal.
Entre esses princípios, encontra-se o da presunção de inocência do arguido (nº 2 do artigo citado). Este princípio, que deve ser articulado com o princípio in dubio pro reo e com o princípio da culpa concreta (nulla poena sine culpa), projecta-se no processo penal em geral, e assenta “na ideia-força de que o processo deve assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa do inocente e não há razão para não considerar inocente quem não foi ainda solene e publicamente julgado culpado por sentença transitada em julgado.” (Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 355).
Como conteúdo adequado do princípio podem indicar-se, além de outros, os seguintes aspectos: proibição da inversão do ónus da prova em prejuízo do arguido; preferência pela sentença absolutória em vez do arquivamento do processo; proibição da antecipação das penas a título de medidas cautelares; natureza excepcional das medidas de coacção sobretudo, das que impliquem restrições da liberdade e; o próprio princípio in dubio pro reo (cfr. Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Ed. Revista, 518).
Ressalvado sempre o devido respeito por diferente opinião, não vemos que do extracto da sentença que acima se transcreveu, resulte violado o princípio constitucional que vimos referindo.
Com efeito, o que aí se diz é que a prova produzida pela acusação, com vista à demonstração dos elementos dos tipos imputados ao recorrente, foi valorizada pelo tribunal num determinado sentido – o da verificação dos factos acusados – em detrimento da prova produzida pela defesa (versão do arguido) relativamente aos factos não provados.
A sentença apenas considerou não provados dois factos: um, que consta da acusação, refere-se a ter o recorrente abanado a assistente; outro, que não consta da acusação, refere-se a ter o recorrente empurrado a assistente, que caiu, para se defender de uma agressão que aquela se preparava para concretizar. Assim, apenas a este último facto se refere aquele trecho da sentença, sendo certo que, como se viu, o recorrente não contestou, o que significa que se deu como não provado um facto que, em rigor, não integrava o objecto do processo.
Este último facto não provado mostra-se logicamente excluído pelos factos provados na medida em que a versão dos acontecimentos que destes resulta, é incompatível com aquele.
Mas os factos provados não resultaram enquanto tal, de se ter presumido que o recorrente era culpado, mas porque se entendeu que a prova produzida pela acusação conduziu ao seu cometimento pelo recorrente. Mas esta prova da acusação não foi valorada pelo tribunal apenas em si mesma, mas tendo em conta também a prova testemunhal oferecida pelo arguido, no condicionalismo que no número anterior se deixou referido, e as próprias declarações deste. Com efeito, não obstante o sentido equívoco do último parágrafo do trecho da sentença acima transcrito, a verdade é que na fundamentação são feitas referências ao depoimento da testemunha Eleutéria Silva Lourenço, à acareação entre esta, a assistente e a testemunha Francisco Gustavo Gomes, e à credibilidade ou, melhor dito, à ausência de credibilidade que mereceu tal depoimento ao tribunal.
Não se vê pois, que a sentença tenha violado o princípio da presunção de inocência e portanto, o art. 32º, nº 2, da Lei Fundamental.
Das nulidades da sentença (conclusões 10, 13, 17 e 18)
3. Pretende o recorrente que, face às contradições que entende estarem verificadas entre as declarações da assistente e das testemunhas, de acusação e de defesa, a sentença não valorou devidamente a prova produzida, relacionando-a nos seus vários elementos, por forma a efectuar um juízo lógico e indutivo, e com um mínimo de objectividade na busca da verdade material, com violação do art. 372º, nº 2, do C. Processo Penal, o que acarreta a nulidade prevista no art. 379º, nº 1, a), do mesmo código.
Parece manifesto o lapso de escrita relativamente ao mencionado art. 372º – já que este se refere à assinatura da sentença – devendo antes estar em causa o art. 374º, nº 2, do C. Processo Penal.
Nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, a), do C. Processo Penal, é nula a sentença que não contenha as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º do mesmo código.
Por sua vez, dispõe o nº 2 do art. 374º citado que a fundamentação da sentença é composta pela enumeração dos factos provados e não provados, e por uma exposição quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
E desta forma deu a lei processual penal execução ao princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, consagrado no art. 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e que é uma exigência do próprio Estado de direito democrático.
Lendo a sentença recorrida fácil é concluir que da mesma consta a enumeração dos factos provados e a indicação dos não provados, consta a indicação das provas e o seu exame crítico, bem como as razões que levaram o tribunal a concluir de facto, num certo sentido e não noutro e, finalmente, constam as razões de direito, que conduziram à condenação do recorrente.
A sentença observou portanto, o estabelecido no nº 2 do art. 374º, do C. Processo Penal. Aliás, a questão colocada pelo recorrente não tem a ver com a fundamentação da sentença, ou falta dela, mas antes com a valoração que faz da prova produzida, em sentido diferente da feita pelo tribunal recorrido. Mas aqui, estamos no âmbito da apreciação da prova e não no campo das nulidades da sentença.
Improcede pois, a invocada nulidade.
4. Pretende o recorrente que a sentença enferma da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, c), 1ª parte, do C. Processo Penal, por violação do art. 120º, nº 2, d), do mesmo código porque aceitou sem mais o reconhecimento da voz do arguido ao telemóvel, efectuado pela testemunha Keelen Cruz Soares, sem recorrer a qualquer critério objectivo, quando em nome da verdade material devia ter investigado o afirmado pela assistente.
Dispõe o art. 379º, nº 1, c), do C. Processo Penal que a sentença é nula quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Consiste pois esta nulidade da sentença no que se designa normalmente por omissão e excesso de pronúncia.
Resulta da leitura da sentença que a mesma apreciou os factos concretos que integravam a acusação, procedeu à sua qualificação jurídica, fixou as penas para os crimes que entendeu por tipificados e conheceu do pedido de indemnização.
Assim, a sentença conheceu de todas as questões que, constituindo o objecto do processo, foram submetidas à apreciação do tribunal.
A questão suscitada pelo recorrente é outra e prende-se com a valoração da prova produzida em audiência, concretamente, com um específico meio de prova relativamente a um dos crimes pelos quais foi condenado, o de ameaça.
Alega o recorrente, como referimos já, que o tribunal não se deveria ter ficado pelo depoimento da testemunha …, impondo-se que investigasse o afirmado pela assistente através de critérios objectivos pelo que, não o tendo feito, omitiu diligências essenciais para a descoberta da verdade e daí, a invocação do art. 120º, nº 2, d), do C. Processo Penal.
Mas não diz o recorrente que concreto critério objectivo ou, mais precisamente, que concreta diligência de prova poderia ter feito o tribunal para averiguar os factos integradores do crime de ameaça. E, não havendo qualquer referência nos autos a qualquer suporte de conversa telefónica, não se vislumbra como poderia ser efectuado o reconhecimento de voz, se não através de alguém que a tenha ouvido.
A maior ou menor credibilidade a atribuir a um depoimento produzido por quem ouviu tal conversa prende-se com os critérios legais de valoração da prova, mas não com a verificação da apontada nulidade.
Improcede pois, a nulidade invocada.
5. Pretende o recorrente que a sentença da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, c), do C. Processo Penal – omissão de pronúncia – por existir uma nítida contradição entre o que dela consta relativamente à inexistência de contestação escrita e rol de testemunhas e a acta da audiência.
A questão suscitada mais não é do que uma sequela da já conhecida no ponto 1 que antecede.
Remetendo para o que aí foi dito, e tendo em conta o que se deixou escrito no ponto que antecede, relativamente à apontada nulidade, limitamo-nos aqui a concluir que a sentença recorrida conheceu de todas as questões que foram submetidas ao tribunal.
Improcede pois, a nulidade invocada.
6. Pretende por último o recorrente que a sentença é nula por falta de fundamentação, na medida em que não tomou como verdadeiras as declarações que produziu relativamente ao salário que aufere na Suiça, mas também nada disse quanto ao salário que, em sua convicção, deveria auferir ou ter declarado.
No ponto 3 que antecede deixaram-se definidos os contornos da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, a), do C. Processo Penal, para onde se remete.
O facto provado 15 da sentença recorrida tem o seguinte teor:
O arguido presentemente reside com companheira, encontrando-se a trabalhar na Suiça no ramo da construção civil; possui uma situação económica actual desafogada.”.
E na exposição da convicção do tribunal que consta da sentença, pode ler-se que «Foram tidas em consideração as declarações do arguido quanto à sua situação pessoal e profissional
Assim, resta concluir que também nesta parte a sentença se mostra fundamentada.
É que, e mais uma vez, a questão suscitada nada tem a ver com as nulidades da sentença, mas com a valoração da prova feita pelo tribunal, e com a qual o recorrente não concorda.
Improcede pois, a invocada nulidade.
Da prova proibida (conclusão 12)
7. Pretende o recorrente que é prova nula, nos termos dos arts. 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa e 125º e 126º, nº 3, do C. Processo Penal, o depoimento da testemunha …. Para tanto alega que a testemunha tomou conhecimento da ameaça imputada e praticada através de chamada telefónica, através da activação pela assistente do sistema de alta voz do seu telemóvel, activação que não foi consentida pelo recorrente, o que tipifica o crime previsto no art. 194º, nº 2, do C. Penal.
Vejamos se assim é.
7.1. Competindo ao Estado assegurar o interesse constitucional da realização da Justiça, nele se incluindo, como é óbvio, a punição dos autores de crimes, a busca da verdade na realização desta tarefa não pode ser obtida a qualquer preço, havendo que ponderar sempre os direitos fundamentais e a medida da sua afectação.
A este propósito, doutrinam os Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros, «A eficácia da Justiça é também um valor que deve ser perseguido, mas, porque numa sociedade livre os fins nunca justificam os meios, só é aceitável quando alcançada lealmente, pelo engenho e arte, nunca pela força bruta, pelo artifício ou pela mentira, que degradam quem os sofre, mas não menos quem os usa.» (ob. cit. 361).
Por isso a lei estabelece proibições de prova que constituem limites à descoberta da verdade isto é, são obstáculos ao apuramento dos factos que constituem o objecto do processo (cfr. Prof. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, 83).
«A coberto dos métodos proibidos de prova proscreve a lei processual os atentados mais drásticos à dignidade humana, mais capazes de comprometer a identidade e a representação do processo penal como processo de um Estado de Direito e, por vias disso, abalar os fundamentos daquela Rechtskultur sobre que assenta a moderna consciência democrática.» (Prof. Costa Andrade, ob. cit. 209).
O art. 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa dispõe que são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
Trata-se de uma interdição relativa, devendo considerar-se abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial, quando desnecessária ou desproporcionada, e ainda quando destruidora dos próprios direitos (cfr. Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. 524).
Ao nível da lei ordinária, estabelece por sua vez, o art. 126º, nº 3, do C. Processo Penal que ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
Dispõe o art. 34º, nº 1, da Lei Fundamental, que o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, proibindo o seu nº 4, a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Naturalmente que a referência constitucional à ingerência das autoridades públicas não significa que seja legítima tal ingerência a entidades provadas (cfr. Armando Veiga e Benjamim Rodrigues, Escutas Telefónicas, 1ª Ed., 57).
Os arts. 187º a 190º do C. Processo Penal dão corpo à excepção indicada na parte final deste último preceito constitucional, regulando as escutas telefónicas nos seguintes aspectos: estabelecimento de um regime de autorização e controle por um juiz (arts. 187º, nº 1 e 188º, nº 4, do C. Processo Penal); reserva das escutas para a investigação de certos tipos de ilícito, quer em função da sua gravidade, quer em função das suas características que tornam as escutas meio de recolha de prova particularmente adequado à sua investigação (art. 187º, nº 1, do C. Processo Penal); limitação do universo de pessoas sujeitos às escutas (art. 187º, nº 4, do C. Processo Penal); e exigência da indispensabilidade da diligência para a descoberta da verdade ou para a obtenção da prova (art. 187º, nº 1, do C. Processo Penal).
Desta forma, acautelou e atenuou o legislador a danosidade social que as escutas acarretam, na medida em que, quando não consentidas, constituem sempre lesão irreparável do direito à palavra falada (cfr. Prof. Costa Andrade, ob. cit. 284).
7.2. Incluído no Capítulo VII – Dos crimes contra a reserva da vida privada, do Título I, do Livro II, do C. Penal, o crime de Violação de correspondência ou de telecomunicações, previsto no art. 194º do código citado, tem, numa primeira linha, como bem jurídico tutelado a privacidade. Mas, como adverte o Prof. Costa Andrade, não se trata da privacidade em sentido material mas da privacidade em sentido formal, pois é indiferente o conteúdo das missivas ou telecomunicações, não exigindo o preenchimento do tipo que versem coisas privadas ou brigue com segredos. Numa segunda linha e, portanto, reflexamente, a incriminação tutela ainda um bem supra-individual, a confiança da sociedade na integridade dos serviços postais e das telecomunicações (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 754).
Releva apenas para a concreta questão a decidir a violação de telecomunicações e, por isso, a conduta típica prevista no nº 2, do art. 194º, do C. Penal.
São elementos constitutivos desta modalidade de cometimento do crime:
- [elemento objectivo] que o agente, sem consentimento, se intrometa no conteúdo de telecomunicações ou dele tome conhecimento;
- [elemento subjectivo] o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal.
Não é isenta de dificuldades a determinação do titular do bem jurídico, sendo que esta qualidade releva para efeitos de legitimidade para consentir que um terceiro possa tomar conhecimento. A este respeito diz-nos o Prof. Costa Andrade (Comentário, 756) que, no que às comunicações telefónicas concerne, pressupondo estas a intervenção simultânea de, pelo menos, duas pessoas, deve entender-se que todos os interlocutores são, a igual título, portadores do bem jurídico, o que determina que não assiste «a qualquer deles a legitimidade para, só por si, e sem a concordância do outro, consentir que um terceiro tenha acesso, escute, registe ou grave a comunicação.». Mas não deixa este Mestre de notar que a solução proposta não é unânime, quer na doutrina, quer na jurisprudência, esclarecendo ser maioritária na Alemanha a tese de que o acordo de um dos interlocutores bastará para legitimar a intromissão de terceiros (Comentário, 764).
Fixando agora a conduta típica em análise, cabe dizer que só é típica a conduta que envolva o recurso a meios técnicos de captação, audição e registo. Assim, não será típica a conduta de quem, escondido, houve uma conversação telefónica, mas já será típica a conduta de quem, com um segundo auscultador, ouve uma conversação telefónica, se tal é desconhecido pelo ofendido (cfr. Prof. Costa Andrade, Comentário, 763).
7.3. Diz o recorrente que a testemunha tomou conhecimento da ameaça que lhe é imputada, praticada através de conversação telefónica havida entre si e a assistente, por ter esta activado o sistema de alta voz do seu telemóvel, activação que não foi consentida pelo recorrente.
Ouvido o depoimento da testemunha … produzido em audiência – cassete 3, lado B – dele resulta ter a testemunha afirmado que ouviu as palavras dirigidas pelo recorrente à assistente porque esta, depois de repetidas chamadas feitas pelo recorrente que não atendeu, decidiu atender uma, e activou então a função de alta voz [viva voz, referiu inicialmente a testemunha] do aparelho, para que todos pudessem ouvir.
Afirmou também a testemunha que o recorrente, vendo rejeitadas as chamadas feitas para o telemóvel da assistente, ligava então para o próprio telemóvel da testemunha, pois sabia que a assistente estava consigo, mas também não atendia as chamadas, a pedido desta.
Posto isto.
Na conversação telefónica de que cuidamos, eram simultaneamente emissores e receptores, a assistente e o recorrente. E apenas estes o eram, na medida em que cada um detinha o meio apto a manter a conversação isto é, os respectivos telemóveis, em ligação.
A testemunha … não praticou qualquer acto de intromissão naquela conversão, utilizando ela mesma um qualquer meio técnico. Pelo contrário, de forma absolutamente passiva, limitou-se a ouvir o que recorrente e assistente diziam. E foi precisamente o teor desta conversa o que, através do seu depoimento e na qualidade de testemunha, declarou em audiência.
A testemunha, enquanto terceiro, não se intrometeu na conversação, antes foi intrometida pela própria assistente que era um das interlocutoras e também uma das titulares do bem jurídico tutelado pelo art. 194º, do C. Penal. Por isso se entende não estarem verificados em relação à testemunha, os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime de violação de correspondência ou de telecomunicações.
De facto, foi a assistente quem, sem o consentimento do recorrente – este o afirma, e é normal que assim tenha sido, atento até o depoimento da testemunha – manteve a conversação com o sistema de alta voz do aparelho que utilizava accionado, proporcionado a sua audição por terceiros.
A função alta voz, que hoje vulgar até nos telemóveis menos sofisticados, é um meio técnico de audição. Por esta razão, o acesso a uma conversação telefónica através dela, integra o conceito jurídico-penal de intromissão (objectiva) no conteúdo de telecomunicações (cfr. Ac. do STJ de 07/02/2001, processo nº 2555/00, 3ª secção, acessível na jurisprudência do STJ, do site da Procuradoria Distrital de Lisboa).
A lei pressupõe que o emprego destes meios técnicos parta de um terceiro que os usa para obter uma informação que, de outro modo, não obteria. Nos autos, se ingerência existiu, ela não foi de um terceiro – da testemunha – mas do próprio, ainda que não único, titular do bem ou seja, da assistente.
A actuação da assistente, tendo em consideração as palavras que lhe foram dirigidas pelo recorrente – dando corpo a ameaças – e as repetidas tentativas de estabelecer com ela contactos telefónicos no contexto de um desentendimento grave entre o casal, sempre estaria a coberto da causa de justificação da legítima defesa ou mesmo, do direito de necessidade (cfr. Prof. Costa Andrade, Comentário, 767 e 841). Justificada a esta luz, a conduta da assistente, não se vê que a testemunha possa ter preenchido o tipo do nº 3, do art. 194º, do C. Penal, ao produzir em audiência o depoimento que produziu.
Por outro lado, a conversação ouvida pela testemunha não respeita à vida íntima do recorrente não se colocando por isso, e agora numa outra perspectiva, a devassa da sua vida privada (art. 192º, do C. Penal).
Apesar da conduta da testemunha não se revelar ilícita, certo é que as proibições de prova não têm, necessariamente, que ter tal natureza.
Por outro lado, não é o depoimento da testemunha, em si mesmo, que se mostra afectado, mas antes a razão do conhecimento dos factos que são o seu objecto. Dito de outra forma: a testemunha teve conhecimento dos factos que relatou em audiência porque, passivamente, os ouviu, mas tal audição apenas foi possível porque uma outra pessoa – a assistente – com o propósito de o permitir, activou, sem o consentimento do recorrente, um meio técnico de audição – alta voz do telemóvel usado na comunicação – que constitui uma intromissão em telecomunicações.
Assim, atento o disposto nos arts. 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa e o art. 126º, nº 3, do C. Processo Penal, o depoimento prestado pela referida testemunha é prova nula.
Tendo o depoimento que constituiu prova nula, contribuído para a formação da convicção do tribunal recorrido, relativamente ao crime de ameaça pelo qual foi o recorrente condenado – na fundamentação de facto da sentença, este depoimento é qualificado de muito importante – a procedência de tal nulidade determina a invalidade dos actos subsequentes (art. 122º, nº 1, do C. Processo Penal).
Desta forma, sendo inválida a sentença recorrida, deve o tribunal produzir nova sentença, agora sem considerar a prova considerada nula por proibida.
A procedência da nulidade da prova proibida prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões do recurso, e que atrás se deixaram enunciadas.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar procedente a invocada nulidade da prova relativamente ao depoimento da testemunha K… e, em consequência, declaram a invalidade da sentença recorrida, e determinam a sua repetição, agora sem que seja atendida e ponderada a prova proibida.