Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
510/06.6TBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
GARANTIA DE ASSISTÊNCIA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
SEGURO AUTOMÓVEL
ASSISTÊNCIA EM VIAGEM
CONTRATO DE SEGURO DE GARANTIA DE ASSISTÊNCIA DO VEÍCULO AUTOMÓVEL SEGURO
GARANTIAS DE ASSISTÊNCIA
DE REBOQUE E DE TRANSPORTE
CONTRATO DE TRANSPORTE (REBOQUE)
RESPONSABILIDADE DO DEVEDOR PELOS “ACTOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES”
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 02/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA – 1ª JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 799º E 800º DO C.CIV.; E D. L. Nº 239/2003, DE 4/10.
Sumário: I – As nulidades da sentença, taxativamente previstas no artº 668º, nº 1, do CPC, configuram erros de actividade ou de construção da própria sentença, distinguindo-se, assim, das restantes nulidades processuais e dos erros de julgamento (de facto e de direito).

II – No “contrato de seguro de garantia de assistência do veículo automóvel seguro”, as garantias de assistência relativas ao veículo seguro abrangem o reboque e o transporte, e o serviço de assistência compreende, por parte da seguradora, a obrigação de rebocar e de proporcionar o transporte, com rapidez e eficácia.

III – Embora seja discutível a natureza jurídica do contrato de reboque terrestre rodoviário, normalmente é enquadrado no contrato de transporte de mercadorias (regulado pelo D.L. nº 239/2003, de 4/10).

IV – O contrato de transporte não se esgota na deslocação de pessoas ou coisas, abrangendo todo o período que decorre desde o momento em que o transportador recebe as coisas a transportar até à entrega no local convencionado, compreendendo, assim, as chamadas “operações de manuseamento de carga”, como o carregamento, descarga, armazenamento e a guarda.

V – Servindo-se a seguradora de terceiros (auxiliares) para realizar a prestação a que está adstrita, tem directa aplicação o regime do artº 800º, nº 1, do CC sobre a responsabilidade do devedor pelos “actos dos representantes legais ou auxiliares”.

VI – Esta norma, inserida no âmbito da responsabilidade obrigacional, postula o princípio geral da responsabilidade objectiva do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor.

VII – Se o devedor tiver a obrigação de guardar e preservar a coisa, também responde pelo facto dos auxiliares a quem ela foi entregue, já que o “cumprimento” referido no artº 800º, nº 1, do CC, vai para além da mera execução da prestação a que o devedor se vinculou, abrangendo os deveres laterais de conduta que integram a relação obrigacional complexa, onde se incluem os deveres de protecção.

VII – A culpa dos auxiliares está presumida (artº 799º C. Civ.), por incumbir ao devedor a prova da falta da culpa dos auxiliares.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1. - O Autor - A... – instaurou na Comarca de Seia acção declarativa, com forma de processo sumário, contra os Réus – B... e C...
Alegou, em resumo:
Em Julho de 2005, quando circulava na A1, o seu veículo automóvel de matrícula 99-68-LJ sofreu uma avaria, pelo que solicitou a intervenção do serviço de assistência em viagem da ré B..., com quem celebrara contrato de seguro, a qual providenciou pelo reboque da viatura para local que o autor desconhece.
No dia 27 de Julho de 2005, a ré C...” transportou a viatura para a oficina de reparação indicada pelo autor, verificando-se no acto de entrega diversas anomalias, cuja reparação importa em € 1.1165,98, e pela privação reclama a indemnização não inferior a € 10,00 por dia.
Pediu a condenação das Rés a pagar-lhe solidariamente a quantia de € 5.065,98 ou, se assim não for entendido, que seja condenada a pagar a dita importância qualquer delas.
Contestaram as Rés, defendendo-se, em síntese:
A Ré C... excepcionou a incompetência territorial do tribunal e a ilegitimidade passiva, e por impugnação.
A Ré B... excepcionou a ilegitimidade passiva e por impugnação, dizendo que uma vez garantido o reboque, nada mais é da sua responsabilidade.
Respondeu o Autor, contraditando as excepções dilatórias.

1.2. - No saneador foram julgadas improcedentes as excepções, afirmando-se a validade e regularidade da instância.

1.3. - Realizada audiência de julgamento, seguiu-se sentença a julgar improcedente a acção e absolver as Rés do pedido.

1.4. - Inconformado, o Autor recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:
[…]
Contra-alegou a Ré B... preconizando a improcedência do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso:
As questões submetidas a recurso, delimitadas pelas respectivas conclusões, são as seguintes:
(1ª) Nulidade da sentença;
(2ª) Alteração da matéria de facto ( resposta aos quesito 4º);
(3ª) A responsabilidade da Ré Seguradora B....


2.2. - Nulidade da sentença:
As nulidades da sentença, taxativamente previstas no art.668 nº1 do CPC, configuram erros de actividade ou de construção da própria sentença, distinguindo-se, assim, das restantes nulidades processuais e dos erros de julgamento ( de facto e de direito ).
A nulidade cominada no art.668 nº1 c) do CPC ( fundamentos em oposição com a decisão ) verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão.
A contradição lógica entre a fundamentação e a decisão, corresponde, em certa medida, à contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial ( art.193 nº2 b) CPC ).
Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso.
A nulidade de omissão de pronúncia, prevista no art.668 nº1 alínea d) do CPC, traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever prescrito no art.660 nº2 do CPC, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras.
Porém, conforme entendimento jurisprudencial uniforme, a nulidade consiste apenas na falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar, sendo irrelevante o conhecimento das razões ou argumentos aduzidos pelas partes, e não há omissão de pronúncia quando a matéria tida por omissa ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada.
Para justificar as pretensas nulidades, o apelante socorre-se de eventual erro de julgamento, pois a valoração da recusa das Rés na junção dos documentos, para o que foram expressamente notificadas ( art.519 nº2 do CPC), situa-se no âmbito da prova.
E quanto à contradição, é patente que ela não ocorre, visto que a decisão absolutória está em consonância com a fundamentação aduzida, ou seja, não ficou demonstrado em que condições se produziu o dano.
Improcedem as nulidades da sentença.

2.3. - Alteração dos factos:
[…]

2.4. – Os factos provados:
[…]


2.5. – A responsabilidade da Ré B...:
2.5.1. - A sentença absolveu as Rés do pedido com fundamento na insuficiência dos factos para imputar a responsabilidade às Rés, visto desconhecer-se em que condições se produziu o dano, consubstanciado na falta da tampa do tecto de abrir e fechar, com fundamento nos seguintes tópicos:
a) - Não se provou, contrariamente ao alegado pelo Autor, que a Ré B... assumisse a guarda e responsabilidade do veículo logo no dia da avaria ( 23 de Julho de 2005), ou seja, que o transportasse para local desconhecido;
b) - Há um hiato de tempo em que se desconhece em que condições esteve o veículo até ao dia do transporte ( 27 de Julho de 2005 ).
Em contrapartida, objectou o Autor dizendo que a Ré Seguradora é responsável com fundamento no art.800 nº1 do CC.
Verifica-se, assim, não ter impugnado a sentença na parte em que absolveu do pedido a demandada C....

2.5.2. - O contrato de seguro celebrado entre o Autor e a Ré B... tem por objecto, além do mais, a garantia de assistência do veículo automóvel seguro (“ assistência auto permanente”) e o “ serviço de assistência” aparece definido na apólice nos seguintes termos – “ entidade que organiza e presta com rapidez e eficácia necessárias as garantias concedidas por esta cobertura quer revistam a forma de prestação de serviços ou tenham carácter pecuniário”.
As garantias de assistência relativas ao veículo seguro abrangem o reboque e o transporte ( cf. fls.57 ) e o “ serviço de assistência” compreende por parte da Ré Seguradora a obrigação de rebocar e de proporcionar o transporte, com rapidez e eficácia.
No âmbito da execução deste serviço, a Ré Seguradora socorreu-se de terceiros, tanto para o reboque, como para o transporte, que se reconduzem a contratos de prestação de serviço, mais especificamente, ao contrato de transporte. Embora discutível a natureza jurídica do contrato de reboque terrestre rodoviário, normalmente é enquadrado no contrato de transporte.
O contrato de transporte de mercadorias é definido como sendo aquele em que uma as partes ( o carregador ) encarrega outra ( o transportador ) que a tal se obriga a deslocar determinadas pessoas ou coisas de um local para outro, e de os entregar pontualmente ao destinatário, mediante retribuição.
Tem sido qualificado como contrato comercial, bilateral, oneroso, consensual e de resultado, actualmente regulado pelo DL nº239/2003 de 4/10, ao estabelecer um novo regime jurídico para o contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias.
Apresenta-se com uma estrutura triangular, visto que carregador, transportador e destinatário são os interessados no contrato, ou seja, apresenta-se como um contrato inicialmente bilateral ( entre carregador e transportador ), mas aberto à adesão posterior do destinatário, e nessa medida um contrato trilateral assíncrono
O contrato de transporte não se esgota na deslocação de pessoas ou coisas, abrangendo todo o período que decorre desde o momento em que o transportador as recebe até à entrega no local convencionado, compreendendo, assim, as chamadas “ operações de manuseamento de carga”, como o carregamento, descarga, armazenamento e a guarda ( cf. FRANCISCO DA ROCHA, O Contrato de Transporte de Mercadorias, Almedina, pág.55 e segs. ).
Uma vez que a Ré Seguradora serviu-se de terceiros ( auxiliares) para realizar a prestação a que estava adstrita, tem directa aplicação o regime do art.800 nº1 do CC sobre a responsabilidade do devedor pelos “ actos dos representantes legais ou auxiliares”.
“1. O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.”
Esta norma, inserida no âmbito da responsabilidade obrigacional, postula o princípio geral da responsabilidade objectiva do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor.
A responsabilidade não pressupõe qualquer dependência ou subordinação do auxiliar em relação ao devedor ( como na hipótese do art.500 do CC ), verificando-se também quando o auxiliar é independente e autónomo, já que a razão de ser é a mesma, pois o critério relevante, para o efeito, é de que se trate de pessoas de quem o devedor se serve para o cumprimento da obrigação ( cf., por ex., VAZ SERRA, “A responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes ou dos substitutos”, BMJ 72, pág.274 e 277, dando precisamente o exemplo do agente de transportes, a quem o devedor entrega a expedição de uma mercadoria ).
Fora dos contratos cuja tipicidade implica a entrega temporária de bens ( por ex., locação, comodato, depósito ), há situações em que a execução do contrato envolve a transmissão temporária do domínio de facto sobre a coisa, a implicar os deveres laterais de conduta, como os de custódia e protecção, visando preservar a integridade dos bens.
Por isso, se o devedor tiver a obrigação de guardar e preservar a coisa também responderá pelo facto dos auxiliares a quem ela foi entregue, já que o “cumprimento” referido no art.800 nº1 do CC, vai para além da mera execução da prestação a que o devedor se vinculou, abrangendo os deveres laterais de conduta que integram a relação obrigacional complexa, onde se incluem os deveres de protecção ( cf., neste sentido, CARNEIRO DA FRADA, Contrato e Deveres de Protecção, pág.209 e segs.).
Pois bem, a partir do momento em que a Ré Seguradora assumiu a assistência, ficou com o domínio de facto sobre o veículo automóvel, e sobre ela impendia os deveres de guarda e de preservação da integridade do bem.
O lesado ( aqui Autor ) terá apenas que fazer prova da violação do dever de protecção que impendia sobre o devedor, não tendo sequer que invocar qualquer facto do auxiliar ( cf. CARNEIRO DA FRADA, loc.cit., pág.213).
Discute-se se a responsabilidade (objectiva) do devedor pressupõe ou não a imputação do facto danoso ao auxiliar, ou seja, a culpa deste.
Segundo determinado entendimento, o devedor só responde, nos termos do art.800 nº1 do CC, se o houver culpa do auxiliar, pois que a responsabilidade (objectiva) requer uma imputação do facto ao auxiliar, tal como na responsabilidade do comitente ( cf., por ex., ANTUNES VARELA, Das Obrigações, II, pág.101 ).
Noutra perspectiva, a responsabilidade do devedor não depende de prévia imputação do facto ao auxiliar, porquanto “ projecta-se o comportamento do auxiliar na pessoa do devedor, isto é, este será responsável logo que a actuação dos auxiliares, pensada na pessoa do devedor, preencha uma previsão de responsabilidade “ ( cf. CARNEIRO DA FRADA, ibidem, pág.210 ). É que a parte final do art.800 nº1 ( “ como se tais actos fossem praticados pelo devedor “) ficciona a substituição do autor do facto pela pessoa do devedor, possibilitando “ um alargamento da zona de responsabilidade e da tutela do lesado”.
Como quer que seja, a admitir-se a tese da culpa dos auxiliares, ela está presumida ( art.799 do CC), por incumbir ao devedor a prova da falta da culpa dos auxiliares ( cf. VAZ SERRA, loc.cit., pág.282 ), mas que a Ré não logrou demonstrar.
A ressarcibilidade dos danos:
O Autor reclamou a indemnização global de € 5.065,98, a título de reparação ( € 1.165,98 ) e paralisação ( € 3.900,00 ) da viatura.
Como princípio geral da obrigação de indemnização sobressai, em primeiro lugar, o dever de restauração natural, ou seja, repor o lesado na situação que teria se não ocorresse o acidente ( art.566 do CC ).
É ao lesante que incumbe o dever de efectuar ou mandar realizar a reparação do veículo sinistrado, competindo-lhe provar, como facto modificativo ou extintivo do direito, o agravamento dos danos por parte do lesado ( por ex. se não disponibilizou atempadamente o veículo ).
Comprovou-se que, após a entrega do veículo, o Autor reclamou por escrito à Ré Seguradora, e como não fez a vistoria, ficou a aguardar a peritagem e reparação.
Como dano patrimonial emergente, a reparação do tecto e pintura, no montante de € 1.165,98 ( com IVA incluído ) ( r.q. 11º).
Sabe-se que a viatura era o meio de transporte do Autor para se deslocar da residência para os seus estabelecimentos comerciais, pelo que teve de se socorrer de terceiros, e ficou impedido de a usar nos fins de semana para os passeios e visitas à filha ( cf. respostas aos quesitos 10º, 12º, 13º).
Tem-se entendido que a privação de uso, uma vez que atinge os poderes de gozo ou fruição do proprietário constitui causa adequada de uma modificação negativa entre o lesado e o seu património, fundamentando uma indemnização autónoma por dano patrimonial, a determinar equitativamente ( arts. 4 e 566 nº3 do CC ) ( cf., por ex., ANTÓNIO GERALDES, Indemnização do Dano da Privação do Uso, pág.30 e segs., JÚLIO GOMES, “ O dano da privação de uso “, RDE ano XII, pág.169 ).
Por outro lado, a sua repercussão como dano pessoal/extra-patrimonial, assenta nos tópicos da qualidade de vida propiciada pelo uso do veículo e na restrição ao direito de propriedade, que, em si mesmo, tem valor pecuniário ( cf., por ex., Ac do STJ de 29/11/2005, C.J. ano XIII, tomo III, pág.151, de 5/7/2007, em www dgsi, Ac RL de 4/6/1998, C.J. ano XXIII, tomo III, pág.124, Ac RC de 30/1/2001, Ac RL de 14/2/2002 e Ac RP de 20/3/2003, disponíveis na base de dados em www dgsi/pt ).
Assente a existência do dano da privação de uso do veículo, em ambas as componentes (patrimonial/extrapatrimonial), face ao tempo decorrido até à data da propositura da acção ( até onde o Autor computou a privação ), mostra-se equitativa ( art.566 nº3 do CC ) a verba proposta de € 10,00 por dia, ou seja, € 3.900,00.
Somam os danos o valor global de € 5.065,98, correspondente ao pedido.
Procede a apelação, com a revogação da sentença recorrida e consequente condenação da Ré B....

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar procedente a apelação e, revogando-se a sentença recorrida, condenar a Ré B... a pagar ao Autor a quantia de € 5.065,98 ( cinco mil e sessenta e cinco euro e noventa e oito cêntimos ).
2)
Condenar a Ré B... nas custas da apelação.
As custas da 1ª instância serão suportadas por Autor e Ré B..., na proporção de 40% e 60%, respectivamente.
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Coimbra, 10 de Fevereiro de 2009.