Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1751/04.6TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ÓNUS DA PROVA
MÁ FÉ
NEGÓCIO GRATUITO
NEGÓCIO ONEROSO
HIPOTECA
Data do Acordão: 11/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA- JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342º, 610º E 612º DO CC
Sumário: I -Na impugnação pauliana, discutindo-se a gratuitidade ou onerosidade do acto impugnado e porque aquela – porque dispensa a prova do requisito má-fé - beneficia ou aproveita ao autor, impende sobre este o ónus da prova do "animus donandi" ou do "espírito de liberalidade".

II -Constituída hipoteca pelo devedor para garantia de crédito concedido a terceiro que é uma sociedade em que aquele é sócio e legal representante, há para este, pelo menos, um aproveitamento ou interesse mediato ou indirecto, o que basta para afastar a gratuitidade do acto.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

A...., intentou contra B.... e mulher C...., Banco D... e E...,  acção declarativa, de condenação, na forma ordinária.

Pediu:

Que fosse decretada a ineficácia, quanto a si, ora autora, do contrato de hipoteca celebrado entre o casal de réus e o D...., com o consequente reconhecimento do direito de satisfazer o seu crédito através da fracção dada em garantia mediante hipoteca a favor das E....; bem como o cancelamento de todos os registos efectuados com base no acto impugnado.

Alegou:

Que celebrou com o réu um contrato-promessa pelo qual este lhe prometeu vender um prédio por 124.699,47€ que ela, autora, logo pagou; que o réu não cumpriu o prometido e, mais tarde, constituiu hipoteca sobre o prédio, a favor do D...., para garantia de dívidas da ré E...., já quase falida, pelo valor de 175.000€, até ao máximo de 247.625€; o que acarretou a perda do interesse da autora no cumprimento da obrigação e, daí, o direito de exigir, em dobro, o que pagou.

Que com a hipoteca em causa os réus actuaram dolosamente para evitar que à autora fosse possível obter o cumprimento do contrato-promessa.

Apenas o D.... contestou:

 Por excepção invocou a ineptidão da petição inicial por insuficiência manifesta da causa de pedir quanto ao 1º pedido (o crédito não estaria vencido; não teria sido alegado o dolo necessário; o valor do crédito não era líquido) e, quanto ao 2º pedido, por contradição com a causa de pedir - art.193, 2a) e b), respectivamente, do CPC.

 Por impugnação alegou o desconhecimento do essencial dos factos alegados: não sabia do contrato-promessa nem da situação de pré-falência da ré E....e a hipoteca foi constituída de boa fé para garantia de dívidas de terceiro.

Replicou a autora.

 Defendendo a improcedência das excepções, entre o mais dizendo que o crédito está vencido desde 12/6/2002, data até à qual devia ter sido celebrado o contrato-prometido; o crédito tinha sido entretanto tornado líquido e o dolo existiria de forma evidente.

2.

Prosseguiu o processo os seus legais termos, tendo, a final, sido proferida sentença que:

Julgou parcialmente procedente a acção, decretando a ineficácia do contrato de hipoteca celebrado, aludido em B), quanto à autora, com o consequente reconhecimento do direito desta de satisfazer o seu crédito através da fracção dada em garantia através da hipoteca a favor das E...., sem prejuízo das consequências legais decorrentes da declaração de insolvência do réu Vírgilio.

Julgando-a improcedente quanto ao pedido de cancelamento dos registos efectuados com base nela.

3.

Inconformado recorreu o réu  D.....

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

 1ª) O contrato de hipoteca celebrado entre os Banco Recorrente e os có-réus é um acto oneroso.

2ª) Sendo o acto impugnado oneroso e não tendo o Autor provado os factos em que alicerçou a má fé imputado ao Banco Recorrente a acção tem de improceder.

3ª) Podendo o acto impugnável ter carácter gratuito ou oneroso, para que seja havido por gratuito é necessário que o credor alegue e prove os factos dos quais resulta essa conclusão.

4ª) Não tendo o Autor alegado e provado quaisquer factos que conduzam à qualificação do acto como gratuito, não pode ele ser qualificado como tal só porque não foram seleccionados para integrar a base instrutória os factos alegados pelo Banco Recorrente que impõem a sua qualificação como oneroso.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

O acto impugnado: hipoteca, deve ser considerado acto oneroso ou acto gratuito.

Decisão da causa perante a resposta dada à questão anterior e os factos provados.

5.

E os factos dados como apurados são os seguintes:

I- Assentes por acordo.

A) Pela ap. 11/180880 foi inscrita a favor de B....., casado com C..... na comunhão geral de bens a aquisição, por compra, da fracção descrita na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob a ficha n° 02064/100376-B da freguesia de Águeda.

B) Pela ap. 01/30072003 foi inscrita sobre a fracção aludida em A) uma hipoteca voluntária a favor do Banco D....- para garantia do pagamento de todas as responsabilidades, contraídas em euros ou em qualquer outra moeda, assumidas e a assumir perante o Banco, suas agências sucursais no estrangeiro por E..., com sede em .... provenientes de todas e quaisquer operações bancárias em direito permitidas, designadamente confissões de dívida, empréstimos de quantia certa, descoberto em conta, operações de desconto, letras e livranças de que o Banco seja portador aceites bancários, avales e ou fianças, prestação de garantias bancárias, confirmação de créditos documentários e emissão de títulos de divida até ao valor: capital 175,000€; juro à taxa anual de 8,50% elevável em 4% em caso de mora, a titulo de cláusula penal; despesas: 7.000€. Montante máximo: 247.625€.

C) A autora marcou para as 16h do dia 30/06/2004, no 2° Cartório Notarial de Coimbra, a outorga de escritura pública de compra e venda da fracção indicada em A), a que o réu B.....e mulher não compareceram.

D) Por sentença proferida no processo n° 2200/04.5TBCBR, datada de 07/12/2004, que correu termos pela 2ª secção da Vara Mista de Coimbra, em que era autora A..... e réus B..... e mulher, C....., foi a acção julgada parcialmente procedente e o réu condenado a ''pagar à autora a quantia de 249.398,94€, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a citação até efectivo pagamento, absolvendo do pedido a ré C.....".

E) Por sentença transitada em julgado em 19.09.2005, proferida no processo que correu termos pelo 1° juízo deste tribunal com o n° 426/05.3TBAGD, a E...., foi declarada insolvente.

F) O réu B.....foi declarados insolvente por decisão judicial do 1º juízo deste tribunal de Águeda, de 26/06/2006, transitada a 09/08/2006 (certidão de fls. 168 a 171) e na sequência desta decisão, o prédio sobre o qual foi constituída a hipoteca foi apreendido para o processo de insolvência (certidão de fls. 138 a 142).

II – Resultantes da audiência de discussão e julgamento:

1 a 6: Autora e réu celebraram em 2/2/2002, um contrato que intitularam de contrato promessa de compra e venda sob condição, no qual o réu, dando-se como proprietário da fracção aludida em A), prometeu vender à autora (ou à pessoa que esta indicar, podendo essa nomeação ser efectuada até à data da escritura de compra e venda) a fracção e a autora prometeu comprar-lha, pelo valor de 124.699,47€, que o réu já tinha recebido e do qual deu quitação. A marcação da escritura de compra e venda, seria no prazo de 130 dias, salvo se outro não fosse estipulado por acordo das partes, reduzido a escrito, até aquela data, ficando tal marcação a cargo da autora que avisaria o réu com pelo menos 8 dias de antecedência, do local, dia e hora da celebração da referida escritura.

8. A autora, por carta registada com aviso de recepção datada de 17/06/2004, notificou os réus B.... e C.... para comparecerem no 2° Cartório Notarial de Coimbra no dia 30/06/2004, pelas 16h, para a outorga da escritura.

III - Fixados por esta Relação, ao abrigo do artº 712º nº1 al.a) do CPC:

A constituição da hipoteca resultou de uma reestruturação de créditos do Banco R. sobre a 3ª R. de que o 1º R. marido era sócio e legal representante (artº 21º da contestação, assente porque não impugnado).

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

6.1.1.

A impugnação pauliana é um meio de conservação da garantia patrimonial do credor.

 Confere a este a possibilidade de reagir contra os actos praticados pelo devedor, lesivos da satisfação do seu crédito, quer sejam actos que diminuam o activo do seu património, quer sejam actos que aumentem o passivo do mesmo.

 

São requisitos deste instituto, nos termos dos artºs 610º e 612º C.Civil:

- que o acto praticado envolva diminuição da garantia patrimonial do crédito, que, como se disse, tanto se pode traduzir numa perda do activo como num aumento do passivo.

 -Que o crédito seja anterior ao acto impugnado, pois só assim os credores estariam a contar com os bens saídos do património do devedor como integrantes da garantia do seu crédito.

-que, sendo o acto lesivo anterior à constituição do crédito, tenha sido realizado dolosamente para prejudicar a satisfação deste crédito futuro.

 - adicionalmente e para o caso de o acto lesivo assumir o cariz de oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé.

Sendo que nos termos do nº2 do art. 612º C.C.: «entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.»

Nesta formulação legal a má fé não se reconduz à intenção deliberada  do devedor e do terceiro de prejudicarem o credor - actuando em conluio com animus nocendi - ou, sequer, na exigência do conhecimento da insolvência do devedor.

 Podendo, pois, consistir apenas na consciência do prejuízo causado.

 Exige-se que os outorgantes do acto lesivo representem que esse acto afectará a satisfação do direito do credor, que tenham consciência dessa repercussão negativa.

Pode existir a consciência do prejuízo que o acto causa aos credores, sendo o mesmo realizado, todavia, sem o intuito de lhes produzir dano.

Assim, o devedor e o terceiro podem agir com outra intenção, em busca dum outro objectivo, mas com perfeita consciência do prejuízo que vão causar ao credor.

Basta a mera representação, o conhecimento negligente da possibilidade da produção do resultado (o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor) em consequência da conduta do agente -cfr. Acs. do STJ de 23.01.03, de 14.10.2004 de  18.06.2009 e de 29.09.2009, in dgsi.pt, p.02B3683,  04B2989,  152/09.4YFLSB8  e 105-I/2001.C1.S1 e Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, 3ª ed. P.52/53.

E esta má fé tem de existir tanto na actuação dos vendedores como na dos compradores; ambas as actuações têm de preencher esse requisito subjectivo. O acto oneroso só está sujeito a impugnação pauliana  se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé -  nº 1 do citado art. 612º.

Acresce que a prova do requisito da má fé incumbe ao credor, ou seja, à recorrida, na situação em apreço, segundo a regra geral do nº 1 do art. 342º C.C.

6.1.2.

A distinção entre negócios onerosos e negócios gratuitos, cifra-se, lato senso, na existência, ou não, de contrapartida, patrimonial ou não, para o respectivo outorgante.

Diz-nos a experiencia da vida que, nas hodiernas sociedades, a regra é a da onerosidade dos actos ou negócios, sendo a gratuitidade dos mesmos a excepção.

E quando está em apreciação a natureza - onerosa ou gratuita – do acto, o ónus da prova do "animus donandi" ou do "espírito de liberalidade", cumpre ao beneficiário ou de quem dele pode aproveitar, no quadro do artigo 342º do CC. – Ac. do STJ de 12.01.1999, dgsi.pt, p. 99B512.

A hipoteca é uma garantia especial de obrigações assumidas.

Ela pressupõe a existência de um crédito concedido ao devedor, o qual, para garantir o pagamento de tal crédito, hipoteca, ie. adstringe, onerando, certo bem imóvel, pelas forças do qual o credor é pago com  preferência sobre os demais credores comuns – artº 686º do CC.

Ou seja, por via de regra ou na esmagadora maioria das situações, a hipoteca é um acto oneroso.

6.1.3.

In casu.

Provou-se que a constituição da hipoteca resultou de uma reestruturação de créditos do Banco R. sobre a 3ª R. de que o 1º R. marido era sócio e legal representante.

Ou seja, a hipoteca foi constituída para garantir o pagamento de créditos, sendo, pois, onerosa na sua génese e finalidade – cfr. Acs. do STJ de 26.02.2009 e de 17.09.2009,  dgsi.pt,  ps. 09B0347 e 267/09.9YFLSB.S1.

Pode contrapor-se: mas não foi em benefício do 1º réu, mas de um terceiro.

Não colhe o argumento.

O 1º réu era sócio e legal representante da sociedade directamente beneficiada; logo, o benefício ou prejuízo desta repercute-se, pelo menos indirecta e mediatamente, na esfera jurídica patrimonial daquele. Desde logo porque, atenta a sua qualidade, receberá uma remuneração da sociedade.

É o quanto baste para que a hipoteca também lhe aproveite e deva taxar-se de acto oneroso.

 Não se pode acompanhar pois, salvo o devido respeito, a posição do Sr. Juiz a quão quando expende: «nada aponta para que se esteja perante um acto oneroso, mesmo em relação ao D....: trata-se da constituição de uma hipoteca para garantia de dívidas de outrem, dívidas que à data da constituição da hipoteca já existiam (o D.... falava de uma reestruturação de débitos, não da concessão de um empréstimo em simultâneo coma constituição da hipoteca). Não se indicia qualquer correspectividade que torne oneroso o acto em causa…»

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, certo é que, na economia da figura e do regime jurídico da impugnação, a gratuitidade da hipoteca favorecia e facilitava a pretensão da autora, pelo que a ela aproveitava; logo, sobre a mesma impendia, como se viu, o ónus de provar este cariz.

Mas não logrou cumprir tal ónus.

O qual, no caso vertente, resultava acrescido, considerando a especificidade da situação a qual clama a conclusão, dimanante de uma presunção quasi natural, de que a constituição da hipoteca também aproveitou ao 1º réu.

6.2.

Segunda questão.

Concluindo-se pela onerosidade do acto, a prova da actuação em má fé dos réus, impunha-se, nos termos e dentro dos parâmetros supra expostos.

E de tal necessidade a autora pareceu dar-se conta pois que na petição inicial alegou factos consubstanciadores de tal actuação.

Tais factos foram levados à base instrutória nos artºs 10º a 17º.

Todos esses factos foram dados como não provados.

Assim sendo, meridianamente se alcança que falece um dos requisitos da impugnação pauliana.

A acção deveria, pois, ter improcedido.

O recurso merece provimento.

6.3.

Sumariando:

I -Na impugnação pauliana, discutindo-se a gratuitidade ou onerosidade do acto impugnado e porque aquela – porque dispensa a prova do requisito má-fé - beneficia ou aproveita ao autor, impende sobre este o ónus da prova do "animus donandi" ou do "espírito de liberalidade".

II -Constituída hipoteca pelo devedor para garantia de crédito concedido a terceiro que é uma sociedade em que aquele é sócio e legal representante, há para este, pelo menos, um aproveitamento ou interesse mediato ou indirecto, o que basta para afastar a gratuitidade do acto.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, consequentemente, na revogação da sentença, absolver os réus do pedido.

Custas pela autora.

Coimbra, 2009.11.03