Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3965/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: SERAFIM ALEXANDRE
Descritores: CRIMES DE BURLA E EMISSÃO DE CHEQUE SEM PROVISÃO
TIPIFICAÇÃO DIFERENTE DOS CRIMES
Data do Acordão: 01/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 217º, N.º 1,DO C. PENAL E 11º. DO D. L. 454/91 (REDACÇÃO DO D. L. 316/97)
Sumário: I- Os crimes de burla e de emissão de cheque sem provisão estão numa relação de especialidade recíproca. No crime de burla o erro ou engano sobre os factos é elemento essencial; no crime de emissão de cheque sem provisão tal elemento essencial consiste no desconhecimento da falta de provisão.
II- A emissão de um cheque sem provisão pode ser um facto da execução de um crime de burla.
III- Para distinguir se os factos integram um crime de emissão de cheque sem provisão ou se são um dos factos da prática de um crime de burla, há que avaliar se a convicção do tomador do cheque se resume à convicção de que o cheque valeria como meio de pagamento ou se é algo mais que, por erro ou engano lhe foi incutido.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:

A..., admitido como assistente nos autos, apresentou queixa contra B..., ambos melhor identificados nos autos, da prática de factos (fls. 2 a 5) que entendeu constituírem o crime p. e p. pelo art.º 217º do C. Penal.
Realizado o Inquérito, o M.º Público, entendendo que tais factos só poderão ser susceptíveis de integrar a previsão do crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11º,n. º 1, al. b) do D. L. n.º 454/91, revisto pelo D. L. 316/97, e porque, neste caso, se tratava de um cheque pós-datado, tal actividade não constituía a prática de qualquer ilícito criminal, atendendo ao disposto no art.º 11º, n.º 3 do citado diploma, pelo que determinou o arquivamento dos autos.
Notificado, o assistente requereu a abertura da Instrução (fls. 48 a 54) pretendendo que o Arguido seja pronunciado pela prática do crime de burla, em cujo requerimento, depois de lembrar o que dispõem os artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.ºs 1 e 2, al. c), do C. Penal, atribui ao arguido os seguintes factos:
10º- O Arguido GUSTAVO, no âmbito de um contencioso do Ofendido contra um cliente seu (do Arguido), para pôr termo ao processo e regularizar o crédito do Ofendido disse que, uma vez que tinha confiança no seu cliente, o devedor, pagaria o débito daquele, que por sua vez o reembolsaria posteriormente.
11º- Levando a que o Ofendido depositasse confiança na palavra do Arguido,
12º- Tanto mais que era um Advogado, e atendendo até a esse facto, não havia razões que justificassem qualquer desconfiança no mesmo.
13º- Neste contexto, o Arguido GUSTAVO, induzindo o Ofendido em erro, e engano sobre factos, com aquela argumentação,
14º- Emitiu o cheque n.º 7311062036, de 1.246,99 euros (mil duzentos e quarenta e seis euros e noventa e nove cêntimos-), datado de 31/01/2003 e sacado sobre a conta n.º 09945418101, de que o Arguido GUSTAVO era titular, no BPN,
15º- Nesse acto o Arguido, que entregou o cheque ao Ofendido, declarou que este o poderia apresentar a pagamento, que o mesmo tinha provisão e seria pago.
16º- Com aquelas afirmações, e a entrega do cheque, o Arguido conseguiu evitar que o Ofendido impedisse o seu (do Arguido) Constituinte, em favor do qual intermediou, de retirar do imóvel que lhe estava arrendado (pelo Ofendido) todos os bens móveis,
17º- O que o Ofendido faria, de modo a garantir o pagamento das rendas em débito, se não fosse a actuação do Arguido,
18º- Que o convenceu de que pagaria o valor das rendas através do cheque dos Autos, assim o enganando astuciosamente e levando a praticar actos que lhe causaram prejuízo directo.
19º- Com efeito, na sequência daquela intervenção astuciosa do Arguido, o Ofendido foi convencido a deixar que o arrendatário em questão retirasse os bens móveis que tinha no arrendado, como retirou,
20º- Assim o deixando privado daquela garantia patrimonial para o pagamento das rendas em dívida.
21º- Subsequentemente, antes da apresentação do cheque a pagamento, o que ocorreria na data nele aposta (31/01/2003), o Arguido solicitou ao Ofendido que não depositasse ainda o cheque,
22º- Que aguardasse mais uns dias, pois lhe comunicaria a data em que o poderia fazer.
23º- Após sucessivos pedidos do Arguido, no sentido de ser adiada a apresentação do cheque a pagamento, este disse ao Ofendido, em Maio de 2003, que o poderia depositar, pois já dispunha de fundos na conta para aquele fim.
24º- Porém o Arguido antes de informar o Ofendido de que poderia apresentar o cheque, havia já dado instruções ao Banco sacado para o não pagar, com o fundamento de que se encontrava revogado por falta ou vício na formação da vontade,
25º- O que fez com que o pagamento do cheque viesse a ser recusado pelo Banco sacado, com aquele fundamento.
26º- Sendo verdade que, quando procurado pelo Ofendido no sentido de regularizar o cheque, o Arguido lhe afirmou expressamente que dera o cheque como extraviado e que não o pagaria.
27º- Com a emissão do cheque o Arguido, conforme referido, quis enganar o Ofendido para evitar que este exercesse os seus direitos sobre um Cliente daquele,
28º- Com os sucessivos pedidos de adiamento de apresentação do cheque a pagamento, o Arguido pretendeu evitar que o Ofendido obtivesse a aposição do carimbo de falta de provisão em tempo útil, de modo a obstar o exercício da acção penal contra si (Arguido) pela emissão de cheque sem provisão;
29º- Com as instruções junto do Banco sacado no sentido da revogação do cheque por falta ou vício na formação da vontade, o Arguido pretendeu evitar que o Ofendido obtivesse o pagamento da importância titulada pelo mesmo, que se comprometera pagar em benefício do se (do Arguido) cliente.
30º- Isto é, o Arguido programou e planeou astuciosa, intencional e conscientemente, todos os actos supramencionados, que tiveram em vista, através de erro e engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar o Ofendido à prática de actos que lhe causaram e estão a causar prejuízo patrimonial não inferior ao valor titulado pelo cheque,
31º- Actuação que o arguido teve aproveitando-se da confiança que o Ofendido nele depositou.
32º- Sendo certo que ainda não reparou o dano causado ao Ofendido.
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Foi então proferido o despacho de folhas 60 a 66, no qual, entendendo-se que os factos integrariam não a prática de um crime de burla mas sim, em princípio, o de emissão de cheque sem provisão e que este, por emitido com data posterior à da sua entrega, não é punível, rejeitou, por inadmissiblidade legal, o requerimento para abertura de instrução.
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É deste despacho que recorre o assistente Sebastião, concluindo:
Considerando que
1º- Da simples leitura do art.º 127º do Cód. Penal resulta que, para haver crime de burla, é necessário que se verifiquem 3 requisitos essenciais, requisitos esses cumulativos, a saber: que o agente tenha intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, que com tal objectivo, astuciosamente, induza em erro ou engano o ofendido sobre factos e que assim determine o mesmo ofendido à prática de actos que causem a este, ou a outra pessoa, prejuízos patrimoniais (Ac. da RC. de 01.07.83, in CJ, VIII, Tomo 3,99)
2º- Com a conduta por si protagonizada, ampla e correctamente descrita nos Autos pelo Assistente, o Arguido preencheu integralmente a previsão do crime tipificado e punido pelo art.º 217º do Cód. Penal.
3º- Face ao estabelecido no n.º 3 do art.º 287º do Cód. Proc. Penal, é obvio que a situação presente não se enquadra em nenhuma das hipóteses ali consignadas, pois que “A rejeição por inadmissibilidade legal de instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v.g. ilegitimidade do requerente (MP.) ou inadmissibilidade legal da instrução (v.g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais)” — Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 1999, 10ª Edição, p. 544.
4º- Ao decidir nos termos constantes da douta Sentença de fls. andou manifestamente mal o Tribunal “A Quo” que violou o disposto no art.º 217º, n.º 1 do Cód. Penal e art.º 287º, n.º 3 do Cód. Proc. Penal
NESTES TERMOS, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, revogando a douta Decisão em recurso, substituindo-a por outra que admita e receba o requerimento para abertura de instrução, Vªs. Exas. farão, como sempre, a habitual JUSTIÇA
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Respondeu o M.º Público, entendendo que o recurso não merece provimento.
Igualmente, nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, concordando com a argumentação expandida no despacho impugnado, emite parecer no sentido de improvimento do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
Há factos que ninguém contesta e que são os seguintes:
- O arguido assinou, preencheu e entregou o cheque que consta a fols. 6;
- A favor do assistente, Sebastião Marabuto da Silva;
- Tal cheque tem a data de 2003-01-31;
- No valor referido de 1.246,99 euros;
- Do seu verso consta que foi devolvido, em 9 de Maio de 2003, por falta ou vício na formação da vontade;
- Que, como referiu o assistente nos autos (fls. 40) o cheque foi preenchido em princípios do mês de Janeiro de 2003 e que lhe foi entregue uns dias antes da data mencionada no mesmo.
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Isto é, tal cheque, não integra os elementos factuais necessários e suficientes para por eles se perseguir criminalmente o arguido pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão, uma vez que não só não foi apresentado a pagamento nos oito dias posteriores à sua emissão, como também foi emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador.
E isto, efectivamente, não é contestado.
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O que está em causa é, pois, saber se os factos invocados pelo assistente integram a prática de um crime de burla.
O assistente entende que sim e o despacho recorrido entendeu que não.
Vejamos:
Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido..”.
É assim que é tipificado, no art.º 217º, n.º 1, do C. Penal, o crime de burla. Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:
a)- emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia...que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;
b)- ....
c)- ...
se o cheque for apresentado ....é punido...”.
É assim que se tipifica hoje o crime de emissão de cheque sem provisão.
Se é certo que o crime de burla é um crime contra o património (em geral) e que, no crime de emissão de cheque sem provisão, o elemento prejuízo patrimonial faz hoje parte integrante da sua definição, tornando-o um crime de dano, também é certo que o elemento interesse público da circulação do cheque como meio de pagamento continua a ter relevância.
Entre ambos os crimes há, ainda hoje, apesar da progressiva aproximação, diferenças essenciais (veja-se G. M. da Silva, in Crimes de emissão de cheques sem provisão, 1995 e Regime Jurídico-Penal dos Cheques sem Provisão, 1997):
- no crime de burla exige-se a cooperação de outrem, aquele que pratica “actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”; essa cooperação não é elemento necessário no crime de emissão de cheque sem provisão;
- na burla o agente induz a vítima em erro sobre factos; na emissão de cheque sem provisão o erro do tomador não é elemento necessário; o que o é, é o desconhecimento de que o cheque seja pago;
- no crime de burla exige-se a intenção de enriquecimento; no crime de emissão de cheque sem provisão, basta o dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto;
- O crime de emissão de cheque sem provisão apresenta-se como interferindo no crime (mais geral) de burla, numa relação de especialidade recíproca.
O crime de emissão de cheque sem provisão pode ser uma forma especial do crime de burla, uma forma de o executar, e isto quando o erro ou engano, com intuito de conseguir enriquecimento ilegítimo, se traduza precisamente na entrega fraudulenta de um cheque. Este aparece, então, apenas como um modo, um meio de executar o crime de burla.
Neste caso, para se diferenciar os crimes, ter-se-á que diferenciar a convicção do tomador.
Se esta consiste apenas na convicção de que o cheque vale como meio de pagamento, estamos perante um crime de emissão de cheque sem provisão. Se, pelo contrário, a convicção do tomador não é apenas essa mas outra que astuciosamente lhe foi incutida pelo emitente do cheque, aparecendo o cheque apenas como um de outros factos que fundamentaram essa outra convicção, então o crime poderá ser o de burla.
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Ora, no caso presente, diz (resumindo) o assistente que:
- tinha (ele assistente) um contencioso com um cliente do arguido, devendo-lhe este umas rendas de um imóvel;
- o arguido (advogado do devedor) disse-lhe que pagaria tal débito e que o seu cliente depois o reembolsaria;
- porque confiou no advogado (arguido) aceitou o referido cheque para tal pagamento;
- antes da apresentação do cheque a pagamento, que ocorreria no data nele aposta (31.1,2003), o arguido solicitou-lhe que ainda não o depositasse;
- solicitando-lhe vários adiamentos da apresentação, veio a dizer-lhe que o poderia apresentar em Maio de 2003;
- foi o que fez;
- mas já antes, o arguido tinha dado instruções ao banco para o não pagar;
- o cheque não lhe foi pago pelas razões que consta no seu verso e que o arguido lhe disse que o não pagaria e ainda não reparou o dano;
- que com tal actuação, o arguido conseguiu evitar que ele (assistente) impedisse o devedor (cliente do arguido) de retirar do imóvel todos os bens móveis e assim garantir o pagamento das rendas em débito.
Partindo do pressuposto que tudo isto corresponde à verdade, de que é que o assistente se convenceu face ao comportamento do arguido? Apenas de uma coisa: que o cheque tinha provisão, que lhe seria paga a quantia nele titulada. Nada mais se descortina relativamente à convicção do tomador do cheque (a assistente). Tanto assim é, que se o cheque tivesse sido pago o assistente não se consideraria enganado.
O arguido, mesmo que tenha tido toda a intenção que lhe é imputada e que tenha actuado com a finalidade que é referida, outra coisa não fez que não fosse incutir no assistente a convicção de que o cheque lhe seria pago. Atitude censurável, sem dúvida, mas apenas isso.
(Repare-se que a lei (art.º 11º, n.º 1, al. b) do D. L. 454/91, na redacção do D. L 316/97) integra na tipificação do crime de emissão de cheque sem provisão os actos que são atribuídos ao arguido tendentes ao não pagamento do cheque em causa).
O dizer-lhe que tina provisão é engano próprio do crime de cheque sem provisão E os sucessivos pedidos de adiamento da apresentação do cheque a pagamento, mais a mais de um cheque que havia sido aceite como pós-datado, também não integram engano de natureza e alcance diferentes.
Erros e enganos a que o assistente, aliás, deu azo (e, nessa medida, se reduzem) ao aceitar um cheque nas condições em que o aceitou.
Não houve, assim, outro qualquer erro ou engano para além do que é típico do crime de emissão de cheque sem provisão.
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E à mesma conclusão se chegará se olharmos os prejuízos alegados.
Na verdade, é irrelevante a alegada não satisfação do seu eventual direito de retenção. Primeiro, porque não passa de um eventual direito, quer porque não se sabe se seria exercido, quer porque, mesmo sendo-o, se seria reconhecido, quer ainda porque nunca foi alegado que tal seria o único meio de que o assistente tinha para se fazer pagar do valor das rendas. Em segundo lugar, porque, havendo pagamento do cheque, nunca tal direito existiria.
Isto é, tudo se resume ao prejuízo correspondente ao valor titulado pelo cheque, como, aliás, o assistente reconhece.
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Em resumo:
1- Dos factos alegados resulta que:
- a intenção do arguido e a obtenção de enriquecimento ilegítimo;
- os erros e enganos levados a cabo pelo arguido; e
- os actos praticados pelo ofendido (nomeadamente a aceitação do cheque);
foram todos típicos do crime de emissão de cheque sem provisão e não do crime de burla;
2- e como para a punição de tal crime faltam elementos essenciais, faltam os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido.
3- o que integra a falta de tipicidade (factos não correspondentes a infracção criminal) que é um dos pressupostos de inadmissibilidade legal da instrução.
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Nestes termos, julgando o recurso por não provido, se confirma o despacho recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs.
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Coimbra: