Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1429/07.9PBCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MOREIRA MIRA
Descritores: PENA DE MULTA
SUBSTITUIÇÃO DA PENA
TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Data do Acordão: 04/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 48º E 58º,NºS 3 E 4 DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. - A prisão resultante da conversão da pena de multa não está para com esta numa relação de alternatividade, mas de subsidiariedade, já que só se autonomiza, para ser cumprida, depois de esgotados todos os outros meios de cumprimento da multa.
II. – A teleologia que se depreende da sistematização conferida pelo legislador ao regime de pagamento/substituição da pena de multa nas normas, conjugadas, dos artigos 48.º e 58.º, n.º 4, do Código penal, aponta no sentido de que a determinação dos dias de trabalho a favor da comunidade deve ser feita por referência à pena de multa fixada e não à pena de prisão que daquela seja subsidiária.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

1. No 4.º Juízo Criminal de Coimbra, em processo sumário, por sentença de 29 de Setembro de 2007, A…, devidamente identificado nos autos, foi condenado nos seguintes termos:

a) Pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de € 7,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses;

b) Pela prática, em autoria material, de um crime de injúria, p. p. pelos artigos 181.º, 184.º, com referência à alínea l) do artigo 132.º, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à razão diária de € 7,00; e

c) Pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. p. pelo artigo 347.º do Código Penal, com referência ao artigo 386.º, ambos do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão, substituída por igual tempo de multa, à razão diária de € 7,00.

Operado o cúmulo jurídico das penas parcelares de multa (principais), referidas na alíneas a) e b), ficou o arguido A... condenado na pena única de 150 dias de multa, acrescida de 120 dias de multa de substituição, num total de 270 dias de multa, à razão diária de € 7,00.


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2. A requerimento do arguido, o tribunal de 1.ª instância substituiu a totalidade da pena de multa fixada por trabalho a favor da comunidade, cuja duração fixou em 220 horas.

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3. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – Nos presentes autos, foi o arguido A… condenado, em cúmulo, numa pena única de 150 dias de multa, acrescida de 120 dias de multa de substituição, num total de 270 horas de multa, à razão diária de € 7,00.

2.ª – Porque o arguido o requereu, foi autorizada a substituição da totalidade da multa por trabalho a favor da comunidade.

3.ª – Assim, e “ao abrigo do disposto no artigo 58.º, n.º 3, do Código Penal, aplicável por força do disposto no artigo 48.º, n.º 2, do mesmo diploma” foi determinado que o arguido cumprisse 220 dias (duzentas e vinte) horas de trabalho a favor da comunidade.

4.ª – Com efeito, entendeu a M.ma Juiz que, tendo sido aplicada ao arguido uma pena de 150 dia de multa, a que correspondem 100 dias de prisão (artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal), teria este de cumprir, em substituição desta multa, 100 horas de trabalho a favor da comunidade.

5.ª – Não obstante, entendemos que, no presente caso, não foi devidamente aplicado o disposto no citado artigo 48.º, n.º 2, do Código Penal.

6.ª – Na verdade, quando aí se diz “é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58.º, n.º 3” quer dizer que este último normativo se aplica, mutatis mutandis, ou seja, com as necessárias adaptações.

7.º - Ou seja, no presente caso, o que se pretende é que se aplique apenas a regra da correspondência aí prescrita, ou seja, uma hora de trabalho para cada dia de multa.

8.ª – Aliás, se assim não fosse, bastaria ao legislador ter referido no citado artigo 48.º, n.º 2 que era aplicável o disposto no artigo 58.º, n.º 3, sem a palavra “correspondentemente”.

9.ª – Ao dizer expressamente e sem mais “é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58.º, n.º 3” o legislador só pode ter querido dizer que, no caso da substituição da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade, deveria aplicar-se a regra e proporção aí referida, ou seja, uma hora por cada dia (neste caso, dia de multa).

10.ª – A regra que aqui tem de ser aplicada é a de fazer corresponder uma hora a um dia (dia esse que poderá ser de prisão ou de multa, conforme estejamos a aplicar directamente o disposto no n.º 3, ou por força da remissão do artigo 48.º, n.º 2).

11.ª – Não sendo esta a vontade do legislador, deveria, então, ter dito que “era aplicável o disposto no artigo 58.º, n.º 3, depois de feita a conversão do artigo 49.º, n.º 1”.

12.ª – E, não tendo utilizado esta fórmula, entendemos não ser aceitável a interpretação e aplicação efectuada pela M.ma Juiz.

13.ª – Assim, a M.ma Juiz deveria ter ordenado o cumprimento, não das 220 horas de trabalho, mas antes, de 270 horas de trabalho.

14.ª – Não o tendo feito, entendemos que a douta decisão recorrida violou o disposto no citado artigo 48.º, n.º 2, do Código Penal.

Termos em que deverá dar-se provimento ao recurso e revogar-se a douta decisão recorrida, no que concerne ao número de horas (100) aplicadas ao arguido em substituição da pena de 150 dias de multa, condenando-se o arguido nos termos supra expostos.
3. Cumprido que foi o disposto no art. 411.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu ao recurso.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, em douto parecer, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
Notificado, então, nos termos e para os efeitos consignados no art.º 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II. Fundamentação:
1. Poderes cognitivos do Tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência uniforme dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

No caso sub judice, a única questão que cumpre decidir consiste em determinar a duração do trabalho a favor da comunidade decorrente da substituição da pena principal, de multa (150 dias), imposta ao arguido. 

3. Elemento relevantes a considerar:

- Na sequência da condenação que lhe foi imposta, supra referida, o arguido AA … requereu, em 3 de Outubro de 2007, nos termos do disposto no artigo 48.º do Código Penal e 490.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a substituição da pena de multa por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social;

- No conhecimento do requerido, foi proferido despacho, o recorrido, do seguinte teor:

«(…).

No caso dos autos consideramos que se encontram preenchidos todos os requisitos previstos nesta norma, pois o arguido foi condenado numa pena de multa e o trabalho a favor da comunidade realiza de forma adequada e suficientes as finalidades da punição, face às reduzidas exigências de prevenção especial.

Com o actual regime previsto no artigo 58.º, n.º 3, do Código Penal (aplicável por força da remissão do artigo 48.º, n.º 2 do mesmo diploma) a cada dia de prisão corresponde uma hora de trabalho a favor da comunidade.

Assim, sendo a pena aplicada ao arguido de 120 dias de multa de substituição e 150 dias de multa, o que corresponde a 100 dias de prisão (artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal) terá este de cumprir 220 horas de trabalho a favor da comunidade.

Posto isto, ao abrigo do disposto no artigo 58.º, n.º 3, do Código Penal, determino que o arguido cumpra 220 (duzenta e vinte) horas de trabalho a favor da comunidade, nos termos e modos constantes de fls. 55 e 56».

6. Do mérito do recurso:

Dispõe o artigo 48.º do Código Penal:

«A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 – É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 58.º e no n.º 1 do artigo 59.º».

Nos seus n.ºs 3 e 4, estatui o artigo 58.º do citado diploma (redacção da Lei 59/2007, de 4 de Setembro):

«3 - Para efeitos do n.º 1, cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas.

4 – O trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável».
A letra do citado artigo 48.º do CP, como ponto de partida da interpretação da norma, aponta decisivamente no sentido de ser a pena de multa, e não a prisão resultante da sua conversão, o ponto referencial determinante do número de dias de trabalho a favor da comunidade.

Na realidade, para o referido efeito, a norma alude a «pena de multa» e não a pena subsidiária da multa ou a expressão equivalente.

Mas também o elemento teleológico, sustentado no elemento sistemático de interpretação, não permite retirar da norma outro sentido e alcance. 

Como se colhe expressamente do relatório que antecede a sua publicação, foi propósito confessado do CP/82 abandonar definitivamente a concepção segundo a qual à pena pecuniária estava reservado um papel marginal e subsidiário no sistema sancionatório português, e dar expressão prática à convicção da superioridade político-criminal da pena de multa face à pena de prisão no tratamento da pequena e da média criminalidade[1].

Corporizando essa ideia, o legislador explicitou as operações de determinação da pena de multa, os seus critérios próprios de afirmação e alargou o âmbito da sua aplicação e execução.

«Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços (…)», prescreve o artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal.

Dado o carácter pecuniário da multa, o legislador previu um sistema múltiplo e com etapas sucessivas para o pagamento: a) pagamento voluntário, no prazo legalmente estabelecido no artigo 489.º do Código de Processo Penal; b) pagamento diferido ou pagamento em prestações (artigo 47.º do CP); c) substituição por trabalho a favor da comunidade (artigos 49.º, n.º 1, do CP, e 490.º do CPP).

Esgotadas as duas primeiras hipóteses e não sendo requerida a substituição da multa por trabalho, sucede-se a via processual tendente à cobrança coerciva da multa (artigo 49.º, n.º 1, do CP, e 491.º do CPP).

 Assim, a prisão resultante da conversão da pena de multa não está para com esta numa relação de alternatividade, mas de subsidiariedade, já que só se autonomiza, para ser cumprida, depois de esgotados todos os outros meios de cumprimento da multa.

Nestes termos, a sistematização conferida pelo legislador ao regime de pagamento/substituição da pena de multa não deixa dúvidas quando à teleologia presente nas normas, conjugadas, dos artigos 48.º e 58.º, n.º 4, do Código penal, qual seja: a determinação dos dias de trabalho a favor da comunidade deve ser feita por referência à pena de multa fixada e não à pena de prisão que daquela seja subsidiária.

Daí que o n.º 2 do artigo 48.º do CP acentue que à situação concreta que regula “é correspondentemente aplicável o disposto” no texto-norma do artigo 58.º, n.º 4.

Em face do exposto, relativamente à pena (principal) de multa que ao arguido foi imposta, é de 150 dias o número de horas de trabalho a favor da comunidade, cifrando-se em 270 horas a duração global da prestação do trabalho.

O recurso é, deste modo, procedente.

III. Decisão:

Posto o que precede, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, fixa-se em 270 horas a totalidade da duração do trabalho a prestar pelo arguido A.....  

Sem tributação.


[1] Cfr., Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 117.