Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1001/21.0T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
EXTEMPORANEIDADE
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1104.º E 588.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I –  Com a reforma da Lei 117/2019, prevendo o artigo 1104º um prazo único de 30 dias para a dedução de contestação ao requerimento inicial do inventário e para o articulado apresentado pelo cabeça de casal nos termos do art. 1102º, e eliminada a norma que permitia que as reclamações contra a relação de bens fossem apresentadas posteriormente, decorrido aquele prazo de 30 dias, precludida fica a faculdade de apresentar reclamação contra a relação de bens.

II – Ressalvada a possibilidade de partilha adicional a que se reporta o artigo 1129º CPC, e sob pena de perturbações na marcha do processo de inventário, que o legislador pretendeu expressamente evitar, a possibilidade de reclamação posterior encontrar-se-á sujeita às regras gerais do processo, pela via de articulado superveniente a que se reporta o artigo 588º do CPC, ou seja, em caso de superveniência subjetiva ou objetiva.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo nº 1001/21.0T8PBL.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Paulo Correia

2º Adjunto: Helena Melo

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de inventário para partilha do património hereditário por óbito de AA, o interessado/Requerente, BB veio reclamar contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal, CC:

- pugnando pela exclusão da verba n. 21, bem como das verbas um a nove do passivo, por terem sido pagas com dinheiro da herança;

- impugnando o valor da verba nº1;

- acusando a falta de relacionação de um terreno urbano da herança onde o filho DD tem implantada a sua habitação, bem como de vários bens móveis, de um prédio rústico, e de todos os montantes existentes na CCA;

- acusando a existência de débitos da herança ao Requerente/reclamante;

- acusando a existência de créditos da herança sobre a cabeça de casal (art. 27º);

- acusando a existência de um crédito da herança sobre o interessado EE (artigo 26º).

Pelo juiz a quo foi proferido Despacho, a considerar tal reclamação extemporânea, por apresentada depois de decorrido o prazo de 30 dias a contar da notificação do reclamante, nos termos do artigo 1104º, nº1 do CPC, determinando o seu desentranhamento.


*

Não se conformando com o decidido, o Requerente/Reclamante, dela interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

1.ª - Ora, o douto despacho datado de 22.06.2022, e notificado em 27.06.2022 que rejeitou o articulado de reclamação contra a relação de bens, por manifesta extemporaneidade e ordenou o desentranhamento do dito articulado apresentado sob a ref.ª: ...15, salvo o devido respeito, que é muito, deriva fundamentalmente de uma incorreta interpretação do disposto no art. 1104.º do CPC e de todo o regime do processo de inventário como um todo e da violação do princípio da economia processual.

2.ª - Antes da realização da conferência de interessados, o interessado e aqui recorrente, BB apresentou uma reclamação contra a relação de bens, isto porquanto, a cabeça de casal apresentou com inexatidão a relação de bens.

3.ª - Na relação de bens foram relacionados bens que não existem no acervo da herança, outros que, existem mas os mesmos foram indevidamente descritos e mal relacionados, ainda outros que não foram relacionados e por fim, outros cujo valor patrimonial dos mesmos não correspondem a uma atual avaliação.

4.ª- É consabido que nesta sede de sindicância, apresentada a relação de bens são os restantes interessados dela notificados, podendo dela reclamar no prazo, normal, de trinta dias, seja para acusar a falta de bens na relação apresentada e que devam ser relacionados, seja para requer a exclusão de bens indevidamente relacionados.

5.ª - É jurisprudência uniforme, e pese embora a reclamação da relação de bens tenha prazo específico, ela pode sempre ter lugar até ao trânsito em julgado da sentença homologatória de partilha.

6.ª - O art.º 1104.º do CPC admite a reclamação contra a relação de bens apresentada, fora dos trinta dias.

7.ª - O princípio da economia processual, invoca a admissibilidade da reclamação contra a relação de bens, sob pena de se tornar absolutamente inútil, isto é, sem finalidade alguma para os interessados, sendo que à posterior uma eventual procedência do recurso à final determinaria a anulação de todos os atos subsequentemente praticados no processo de inventário.

8.ª - Não é preclusivo do direito de reclamar o prazo estabelecido no n.º 1 do art.º 1104.ºdo CPC, já o sendo a faculdade de reclamar após decisão do incidente transitada em julgado.

9.ª - Pelo que, podemos com segurança concluir, que deve ser a alegada reclamação contra a relação de bens ser aceite, pese embora fora do prazo dos trinta dias, por ser tempestiva.

10.ª - Em consequência, dúvidas não restam que o douto despacho que antecede enferma de irregularidades, que devem inequivocamente provocar a aceitação e consequente admissão da invocada reclamação à relação de bens apresentada, bem como os meios de prova nela consignados, e ser revogado o despacho que ordenou o desentranhamento do articulado de reclamação contra a relação de bens apresentado sob a ref.ª ...15, o que desde já se almeja.

11.ª - Pelo acima exposto, deverão V. Exas declarar que se encontram violadas todas as disposições e considerações referidas anteriormente, que aqui se reproduzem na íntegra para todos os efeitos legais, e decidirem em conformidade com o ora invocado.

12.ª - Ora, salvo o devido respeito, não andou bem o Tribunal “a quo”, na medida em que não é preclusivo do direito de reclamar o prazo estabelecido no n.º 1 do art.º 1104.º do CPC, já o sendo a faculdade de reclamar após decisão do incidente transitada em julgado, razão pela qual deverá o Tribunal “ad quem”, proferir um acórdão que anule a decisão ora sindicada e tudo sob as legais consequências.

Nestes termos e nos melhores de Direito e Doutamente supridos por V. Exas Venerandos Desembargadores, deverá o presente recurso merecer provimento, conforme conclusões supra e a decisão ora recorrida ser revogada e substituída por outra que ordenará a prolação de despacho que admita o articulado de reclamação contra a relação de bens, a prova requerida e entre outros em nome da efetiva descoberta da verdade material e da boa decisão da causa, que atendendo aos princípios existentes no nosso ordenamento jurídico e aqui aplicáveis, deve o julgador procurar oficiosamente, mesmo para além do contributo das partes tendo com fim último a justa composição do litígio e a realização da costumada Justiça.


*

Não foram apresentadas contra-alegações

Dispensados foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº4, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se a reclamação à relação de bens é de não admitir por extemporânea.

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III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

É o seguinte o teor da decisão objeto de recurso:

“Tendo em conta que o despacho que ordenou a citação/notificação dos interessados nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1104.º, n.º 1 do Código de Processo Civil foi proferido a 22.03.2022, assim como que o reclamante BB foi notificado do mesmo no dia 24.03.2022, é manifesto que o prazo de 30 dias para a apresentação da reclamação contra a relação de bens se encontra ultrapassado.

Considerando a data em que o interessado BB veio apresentar a sua reclamação (17.06.2022), parece-nos que o mesmo laborou erradamente no pressuposto de que poderia apresentar aquele articulado fazendo-se valer do prazo concedido ao últimos dos interessados citados, ou seja, do Sr.º DD, o qual apenas foi citado a 13.05.2022 (ref.ª ...86), faculdade essa que apenas se encontra prevista para a apresentação de contestação no âmbito do processo declarativo comum (art. 569.º, n.º 2).

Sucede que a norma constante no art. 1104.º, n.º 1 do Código de Processo Civil constitui norma especial em relação àquela norma geral, não tendo o legislador previsto neste normativo disposição idêntica para efeitos de reclamação contra a relação de bens. Como refere Abrantes Geraldes, posição com a qual concordamos na integra “não sendo o articulado de oposição qualificado legalmente como contestação e existindo frequentemente conflito de interesses entre os vários interessados, não é aplicável – na falta de específica previsão no âmbito do processo de inventário – regime constante do art. 569.º, n.º 2. O referido prazo corre separadamente para cada um dos interessados citados” (O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil. Almedina, 2021, p. 80).

Isto para dizer que, tendo o reclamante sido notificado a 22.03.2022, claramente que se encontra ultrapassado o prazo preclusivo de 30 dias para o efeito previsto no art. 1104.º do Código de Processo Civil, razão pela qual declaro extinto o direito do interessado BB em apresentar reclamação contra a relação de bens, por manifesta extemporaneidade.

Desentranhe o dito articulado apresentado sob a ref.ª ...15.”

Insurge-se o Apelante contra a decisão de não admitir a sua reclamação à relação de bens, por extemporânea, apoiando-se nos seguintes fundamentos:

- pese embora a reclamação à relação de bens tenha um prazo específico, é jurisprudência uniforme que ela pode sempre ter lugar até ao trânsito em julgado da sentença homologatória de partilha;

- o artigo 1104º do CPC admite a reclamação contra a relação de bens, fora dos 30 dias, não sendo aquele prazo preclusivo do direito de reclamar.

Não pondo em causa que a sua reclamação à relação de bens foi apresentada depois de decorrido o prazo de 30 dias previsto no nº1 do artigo 1104º do CPC, a questão a decidir no presente recurso circunscreve-se a determinar se, decorrido tal prazo, é ainda possível a apresentação do articulado de resposta a que se reporta tal norma.

São os seguintes os Factos com interesse para a apreciação da questão em apreço:

1. A 24-03-2023, foi enviada a seguinte notificação ao mandatário do Requerente:

Fica notificado(a) na qualidade de Mandatário do requerente do inventário acima identificado, nos termos e para os efeitos do n.º 1 e 2 do art.º 1104.º do Código do Processo Civil, podendo, no prazo de 30 dias:

· Deduzir oposição ao inventário;

· Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros;

· Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações;

· Apresentar reclamação da relação de bens que se junta cópia;

· Impugnar os créditos e as dívidas da herança

2. O Requerente apresenta a sua reclamação a 17 de junho de 2022, depois de decorridos os 30 dias do prazo que para tal lhe fora concedido, mas numa altura em que se encontrava ainda a correr o prazo concedido a um dos interessados para igual efeito.

Desde já se adianta que a alegação do Apelante – de que, pese embora a reclamação à relação de bens tenha um prazo específico, é jurisprudência uniforme que ela pode sempre ter lugar até ao trânsito em julgado da sentença homologatória de partilha, se era verdadeira ao abrigo do disposto do anterior regime do processo de inventário –, ignora as alterações nele introduzidas pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro.

Para melhor enquadramento da questão, passemos o olhar pelo tratamento da questão dado pelo legislador ao longo do tempo.

No regime do inventário constante do Código de Processo Civil de 1961, podendo os interessados dizer o que se lhes oferecesse quanto à relação de bens de bens ou à sua falta, no prazo para exame do processo, a falta de descrição podia ser acusada “posteriormente” ao prazo previsto no artigo 1340º, nº1 do CPC, para o efeito, mas o “arguente procurará convencer de que só teve conhecimento da existência dos bens na altura em que deduz a arguição”.

Tal previsão veio substituir o disposto no artigo 1379º-§ único do Código de 1939º, onde se dizia “em qualquer altura”[1], sendo que, a eliminação de tal expressão, não delimitando o momento temporal até ao qual é possível acusar a falta de relacionação, deixou em aberto a questão, aceitando a doutrina e a jurisprudência maioritárias que a reclamação poderia ser apresentada até ao trânsito em julgado da partilha[2].

A reforma do processo de inventário introduzida pelo DL 227/94, de 28 de setembro, continuou a prever a possibilidade de as reclamações à relação de bens poderem ser apresentadas “posteriormente”, com o aditamento de que “o reclamante será condenado em multa, exceto se demonstrar que a não pode oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável (nº6 do artigo 1348º).

Tal redação assim se manteve até à Lei nº 23/2013, de 5 de março – que procedeu à desjudicialização do processo de inventário, atribuindo a competência para a instauração e respetivos termos para os Cartórios Notariais –, que, ao determinar  que as reclamações à relação de bens podem ainda ser apresentadas “até ao momento do início da audiência preparatória” (embora sob a condenação em exceto se demonstrar que a não pôde oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável), lhes fixou pela primeira vez um limite temporal.

No regime anterior entendia-se que, em caso de reconhecimento da omissão de um bem no decurso do inventário, por força de acusação da falta da sua descrição com base no art. 1348º, ou na sequência de decisão “nos meios comuns”, isto é, seja qual for a fase em que o inventário se encontrasse, não se procedia a partilha adicional: “enquanto há possibilidades de incluir na primeira partilha bens cujo conhecimento surge no processo de inventário, muito embora o seu conhecimento aí advenha depois da fase da descrição – a v.g. adjudicações – deve procurar partilhar-se nesse inventário os aludidos bens, suspendendo-se, inclusivamente, os ulteriores termos do inventário para aí serem contemplados, estimados, licitados e partilhados conjuntamente com os restantes[3]”.

Com o atual regime do processo de inventário, introduzido pela Lei 117º, 2019, de 13 de setembro, para além do recuo na tentativa de desjudicialização do processo, e da sua reintrodução no texto do Código de Processo Civil, houve a intenção expressa de aproximação do seu regime ao da ação declarativa e às regras gerais do processo nesta fase inicial dos articulados (que engloba a fase inicial dos articulados e a das oposições e verificação do passivo), na qual se há de concentrar a discussão das questões essenciais relevantes – admissibilidade do inventário, identificação dos interessados, identificação dos bens a partilhar, dívidas e encargos da herança[4].

Dispõe o atual artigo 1104º, do Código de Processo Civil (CPC), sob a epígrafe “Oposição, impugnação e reclamação”:

1 - Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação:

a) Deduzir oposição ao inventário;

b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros;

c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações;

d) Apresentar reclamação à relação de bens;

e) Impugnar os créditos e as dívidas da herança.

2 - As faculdades previstas no número anterior também podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário ou pelo cabeça de casal, contando-se o prazo, quanto ao requerente, da notificação referida no n.º 3 do artigo 1100.º e, quanto ao cabeça de casal, da citação efetuada nos termos da alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo.

3 - Quando houver herdeiros legitimários, os legatários e donatários são admitidos a deduzir impugnação relativamente às questões que possam afetar os seus direitos.”

No regime anterior, a dedução de oposição ao inventário, impugnação da legitimidade dos interessados, a competência do cabeça de casal e a invocação de quaisquer outras exceções dilatórias, eram sujeitam a tratamento distinto do que incidia sobre a reclamação à relação de bens.

A oposição ao inventário em sentido lato era consentida no prazo de 20 dias após a citação (artigo 30º da Lei nº 23/2013, de 5 de Março, e anterior artigo 1343º, do CPC), e apresentada a relação de bens, eram os interessados notificados de que podiam reclamar contra ela no prazo de 20 dias (art. 32º da Lei 23/2013) ou de 10 dias (artigo 1348º CPC), acusando a falta de bens que devem ser relacionados, requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados ou arguindo qualquer inexatidão na descrição de bens que releve para a partilha.

Atualmente encontra-se previsto um prazo único de 30 dias para o exercício de todas as faculdades previstas nas als. a a e) do nº1 do artigo 1104º do CPC – a) deduzir impugnação ao inventário, b) impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros; c) impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações; d) apresentar reclamação à relação de bens; e) impugnar os créditos e as dívidas da herança.

E, ao contrário do que constitui o regime regra na ação declarativa comum (artigo 569º, nº2), o prazo de 30 dias corre autonomamente para cada um dos interessados, sem que se possa socorrer do prazo que eventualmente se encontre ainda a correr para algum dos demais.

O regime atual afasta-se, ainda, do anterior ao eliminar de vez a possibilidade (prevista no nº6 do artigo 1348º do CPC e depois no nº5 do art. 32º) de as reclamações contra a relação de bens poderem ser apresentadas posteriormente (embora sob a condenação de multa, exceto se demonstrar que a não pode oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável).

De tal alteração, o primeiro olhar da doutrina maioritária vai no sentido de que o recurso de tal prazo perentório faz precludir o direito de apresentar reclamação à relação de bens.

Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[5], sustentam que uma vez citados, os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar numa única peça todos os meios de defesa que considerem oportuno, em face dos factos alegados na petição inicial ou do que foi complementado pelo cabeça de casal, tendo o decurso do prazo de 30 dias efeitos preclusivos quanto a tai iniciativas. Segundo tais autores, “contrariando a solução prevista no artigo 1348º do CPC 1961, a reclamação relativa à relação de bens não suporta o diferimento que tal regime permitia. Uma vez que os bens são relacionados pelo cabeça de casal e só depois se procede à citação dos interessados, facilmente se compreende que também tenha sido marcado um prazo perentório para o exercício do direito de defesa mediante reclamação, de modo que, uma vez exercido o direito do contraditório e produzidas as provas pertinentes, as questões atinentes ao ativo e passivo da herança estejam definitivamente decididas quando for convocada a conferência de interessados”.

Também Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego e Pedro Pinheiro Torres, sustentam que, no atual sistema, o momento das reclamações é necessariamente o previsto no nº1, sob pena de preclusão do direito de reclamar, ainda que, naturalmente, sem prejuízo da invocação de uma situação de superveniência (cfr. artigo 588º, nº2).[6]

Por via do artigo 1104º, nº1 do CPC, ocorre a concentração de todos os meios de defesa, quer quanto à delimitação do objeto da partilha, quer quanto aos sujeitos por que a mesma irá ser repartida.

Visando a que as questões atinentes ao ativo e ao passivo da herança estejam definitivamente decididas quando for convocada a conferência de interessados, o legislador eliminou intencionalmente a possibilidade de reclamação contra a relação de bens, fora do prazo de 30 dias concedido a cada interessado ao abrigo do disposto no nº1, al. d), do artigo 1104º.

É certo que continua a prever no nº1 do artigo 1129º a possibilidade de partilha adicional – “Quando se reconheça, depois de feita a partilha, que houve omissão de alguns bens, procede-se a partilha adicional no mesmo processo” (em conformidade com o disposto no artigo 2122º do CC, que dispõe que a omissão de bens da herança não determinada a nulidade da partilha, mas apenas a partilha adicional dos bens omitidos).

O incidente de partilha adicional respeita aos casos em que, na partilha realizada no processo de inventário, tenham sido omitidos alguns bens, independentemente dos motivos que a isso conduziram[7] (ou seja, não é necessária a alegação da superveniência subjetiva ou objetiva).

Tal partilha processa-se por meio de um incidente cuja tramitação implica que sejam relacionados os bens omitidos (arts. 1097º, nº3, al. c) e 1098º), com audição dos interessados e tramitação subsequente, até à sentença homologatória da partilha, sendo praticados relativamente aos bens em falta, todos os atos que marcaram a descrição, avaliação e licitação, incluindo a partilha, na qual serão introduzidas as alterações pertinentes[8].

A falta de acusação da existência de determinado bem da herança no momento previsto no nº1 do artigo 1114º, não preclude, assim, o direito a fazê-lo no próprio processo de inventário, embora apenas através de incidente a processar após o transito em julgado da sentença homologatória da partilha.

Antes de tal momento e sob pena de perturbações na marcha do processo de inventário, que o legislador pretendeu expressamente evitar, a possibilidade de reclamação posterior apenas se poderá verificar nos termos gerais do processo, pela via de articulado superveniente a que se reporta o artigo 588º do CPC[9], ou seja, em caso de superveniência subjetiva – quando estejam em causa bens de que o reclamante apenas tomou conhecimento após o decurso do prazo legal para apresentar reclamação à relação de bens – ou superveniência objetiva – quando estejam em causa factos supervenientes, apenas ocorridos após o prazo legal[10].

Como tal, na ausência de alegação de qualquer facto que justificasse a sua junção fora do prazo de 30 dias a contar da sua citação, a reclamação do interessado Apelante era de rejeitar, por extemporânea, tal como foi decidido pela 1ª instância.

A Apelação é de julgar improcedente.


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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo Apelante.                 

Coimbra, 10 de janeiro de 2023                                              


 V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…)





[1] Na sua vigência a doutrina e a jurisprudência orientaram-se no sentido de o poderia ainda ser depois de proferido o despacho de partilha, chegando mesmo a sustentar-se que a reclamação podia deduzir-se até transitar em julgado a sentença homologatória dela, e depois do termo do próprio processo – Augusto Lopes Cardoso, “Partilhas Litigiosas”, Vol. I, Almedina, Janeiro de 2018, p. 713-714.
[2] João António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Vol. I, Reimpressão da 4ª ed. De 1990, Almedina, pp. 524-528, em especial nota 1535.
[3] Ac. TRL de 11.11.1939, sum in RJ 25-62, citado por Augusto Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Vol. III, 6ª ed. – 2015, p. 194.
[4] António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, p. 521.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, p.570.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, p. 81.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, p. 149.
[8]António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, anotação ao artigo 1129º, p. 624.
[9] Neste sentido, cfr., António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe de Sousa, obra citada, p. 570, nota 14 ao artigo 1104º. Em sentido contrário, de que, embora essa possibilidade não tenha expressão no vigente regime de inventário – de acusação da omissão de um bem depois do termo do prazo para as reclamações (art. 1104º, nº1, CPC) e antes da prolação da sentença que homologue a partilha –, “a sua admissão, à vista do artigo 1129º, 1, não parece questionável para o limitado efeito de comunicar aos autos a descoberta de um bem que não fora relacionado pelo cabeça de casal”, se pronuncia JOÃO ESPÍRITO SANTO, “Inventário Judicial e Notarial”, AAFD L Editora, pp. 185-186.
[10] Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, dão como exemplo de superveniência objetiva, o cabeça de casal ter relacionado o prédio Y, o qual foi entretanto objeto de expropriação, devendo por isso ser substituído pelo montante indemnizatório recebido pelo mesmo – “Manual de Processo de Inventário à luz do Novo Regime Aprovado pela Lei nº 23/2013, de 26 de agosto e Regulamentado pela Portaria nº 278/2013, de 26 de Agosto, Coimbra Editora, p. 106.