Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
497/03.TBVNO-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: EXECUÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
LITISPENDÊNCIA
Data do Acordão: 10/02/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 810.º, 2, B); 813.º; 816.º DO CÓDIGO DE PRO­CESSO CIVIL
Sumário: Com a alteração introduzida pela reforma processual de 95/96, à al. c) do artº 813º do C.P.Civil [a que corresponde o actual artº 814º al. c)] e perante a exigência constante da al. b) do nº 2 do artº 810º vigente no que concerne ao requerimento executivo, qualquer excepção dilatória, nomeadamente a litispendência, pode servir de fundamento de oposição à execução baseada em sentença e, por maioria de razão, em face do disposto no artº 816 do C.P.Civil, à execução baseada em título extrajudicial.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra :

A..., por apenso à execução para pagamento de quantia certa que contra si instaurou B.., deduziu embargos de executado, em que se limita a invocar a excepção de litispendência, alegando, em resumo, que, na pendência da execução que agora vem embargar, a exequente intentou igualmente contra si uma acção declarativa de dívida, com fundamento nas mesmas facturas que estiveram na base da aceitação da letra dada à execução.
E, concluiu pedindo se julgue procedente a excepção invocada e “consequentemente o executado absolvido do pedido”.
A exequente contestou, alegando, não se verificar a arguida excepção, por não serem os mesmos o pedido e a causa de pedir nos dois processos, já que a dívida não é a mesma e, além disso, na acção comum são as facturas que fundamentam o pedido, enquanto na acção executiva o título é uma letra.
Foi proferido despacho saneador, onde se relegou para final o conhecimento da invocada excepção, procedendo-se, de seguida, à selecção dos factos assentes e dos que passaram a constituir a base instrutória.
Prosseguindo o processo seus ulteriores termos legais, foi proferida sentença julgando improcedente a alegada excepção de litispendência, por não ser o mesmo o pedido nas duas acções, e, consequentemente, improcedentes os embargos.
Inconformada, a executada-embargante interpôs a presente apelação, cuja alegação conclui pugnando pela procedência dos embargos, afirmando que a sentença enferma de erro de julgamento, dado existir uma repetição de acções e, em consequência, litispendência.
Não foram apresentadas contra-alegações
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
**

Os Factos
O tribunal recorrido julgou provados os seguintes factos que as partes não impugnaram nem esta Relação vê motivo para alterar:
1 - A exequente/embargada fabrica e comercializa madeiras;
2 - No exercício da sua actividade forneceu à executada/embargante
diversos produtos da sua actividade para esta transformar e vender;
3 - Para pagamento das facturas a executada/embargante aceitou a
letra, junta como doc. 1, no valor de 8 567,50 euros, com vencimento em 25/12/2002;
4 - Dada a pagamento a mesma veio devolvida pela entidade bancária;
5 - Corre termos no 2º Juízo deste Tribunal sob o nº 493/03.4TBVNO
uma acção declarativa com a forma de processo ordinário, em que é autora B..., e ré Estica - Serração de Madeiras Carpintaria, L.da. Nessa acção, a autora pede seja a ré condenada a pagar-lhe a quantia de 19 534,29 euros, acrescida de juros até integral pagamento, com fundamento em diversos fornecimentos feitos à ré e titulados pelas seguintes facturas:
Factura 2081 de 12 de Março de 2002, no valor de 2 736,85 euros,
Factura 2175 de 15 de Abril de 2002, no valor de 2 573,56 euros,
Factura 2199 de 23 de Abril de 2002, no valor de 2 602,78 euros,
Factura 2224 de 03 de Maio de 2002, no valor de 2 203,64 euros;
Factura 2244 de 14 de Maio de 2002, no valor de 2 408,95 euros,
Factura 2269 de 21 de Maio de 2002, no valor de 2 595,83 euros,
Factura 2357 de 17 de Junho de 2002, no valor de 1 272,35 euros;
Factura 2493 de 05 de Agosto de 2002, no valor de 1 908,52 euros;
6 - Essa acção foi intentada em 24 de Março de 2003, tendo a ré sido
citada em 27 de Março de 2003;
7 - Na presente execução o requerimento executivo foi intentado em 24 de Março de 2003 e a Ré foi citada em 03 de Abril de 2003 para deduzir oposição;
8- A letra dada à execução foi subscrita e aceite pela executada para pagamento parcial das facturas referidas em 5.
**

O Direito
Como é sabido são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso (artºs 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do C. P. Civil), não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.
A única questão suscitada no recurso consiste em saber se, no caso, se verifica ou não a excepção de litispendência e se esta constitui ou não fundamento de oposição à execução.
A decisão recorrida concluiu pela improcedência da referida excepção, por entender que “o pedido executivo (de satisfação coerciva de um crédito à custa do património do devedor, não se confunde com o pedido de condenação no pagamento de determinada quantia e que está subjacente a uma acção declarativa” e que, “sendo os embargos meio de oposição à execução, a sua procedência implica a alegação e prova de um qualquer facto ou de uma excepção susceptíveis de obstar à obrigação exequenda”, o que não acontecia no caso em análise.
Cremos que a Sr.ª Juiz recorrida não tem razão.
Com efeito, antes mesmo da reforma processual de 95/96 e inclusive para alguns daqueles doutrinadores que, na acção executiva, identificavam a causa de pedir com o próprio título executivo, era admissível invocar nos embargos a excepção da litispendência (vide, por exemplo, o Prof. Alberto dos Reis in C.P.Civil Anotado, 3ª ed. vol. III, pag 146 e segs, que admitia expressamente poder verificar-se litispendência entre uma acção declarativa e uma acção executiva). Com a alteração introduzida por aquela reforma à al. c) do artº 813º do C.P.Civil [a que corresponde o actual artº 814º al. c)] e perante a exigência constante da al. b) do nº 2 do artº 810º vigente no que concerne ao requerimento executivo, não oferece dúvida que qualquer excepção dilatória, nomeadamente a litispendência, pode servir de fundamento de oposição à execução baseada em sentença e, por maioria de razão, em face do disposto no artº 816 do C.P.Civil, à execução baseada em título extrajudicial.
A litispendência tal como caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, mas a repetição dá-se em condições diferentes num e noutro caso, pois que enquanto no caso julgado a causa idêntica foi já decidida por sentença transitada em julgado, na litispendência a causa idêntica está ainda pendente ou em curso.
Há repetição quando se propõe uma causa idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
A identidade de sujeitos ocorre quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; a identidade de causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico; e a identidade de pedido, quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (vide artºs 497º e 498º do Código de Processo Civil). Sendo que não prejudica a identidade o facto de numa causa se pedir o todo e na outra parte desse todo.
Como já se disse, na decisão recorrida entendeu-se não haver identidade de pedidos, considerando, para tanto, que “o pedido executivo (de satisfação coerciva de um crédito à custa do património do devedor, não se confunde com o pedido de condenação no pagamento de determinada quantia e que está subjacente a uma acção declarativa”.
A exequente, por seu turno, sustenta na contestação aos embargos que, além disso, não há também identidade de causas de pedir, em virtude de na acção declarativa serem facturas o seu fundamento e na acção executiva, diferentemente, a letra dada à execução.
Salvo o devido respeito, nem a Sr.ª Juiz recorrida nem a embargada têm razão.
Na verdade, diferentemente do que se afirma na sentença recorrida, o pedido da acção executiva de que os presentes autos são apenso e o pedido da acção declarativa nº 493/03.4TBVNO são idênticos, uma vez que o efeito jurídico que em ambas se pretende obter é satisfação da mesma dívida, ou seja, a dívida a que respeitam as facturas juntas com acção declarativa e simultaneamente titulada pela letra dada à execução, sendo que o facto de o valor da acção declarativa ser superior ao valor da letra que está na base da execução apensa não obsta a essa identidade, já que, como acima dissemos, não prejudica a identidade pedir numa causa o todo e na outra parte do todo.
Verifica-se identidade de pedidos – como diz Alberto dos Reis, in C. P. Civil Anotado, vol. III, pag 107 – quando haja “identidade de providência jurisdicional solicitada pelo autor”. O que conta, tanto para o caso julgado, como para a litispendência, é que as causas digam respeito à mesma questão jurídica, à mesma pretensão material, como resulta da al. c) do artº 481º do C. P. Civil.
E, por outro lado, verifica-se também, contrariamente ao que sustenta a embargada contestante, identidade de causas de pedir.
Com efeito, o legislador veio a consagrar no artº 810º nº 2 al. b) do C.P.Civil vigente a corrente doutrinal e jurisprudencial defensora da tese de que na acção executiva a causa de pedir não se identifica com o próprio título executivo, sendo antes constituída pelos factos constitutivos da obrigação reflectidos no título, ao obrigar que, no requerimento executivo, se exponham, ainda que sucintamente, «os factos que fundamentam o pedido, quando estes não constem do título executivo».
Assim e sendo embora indiscutível que a obrigação cambiária, de acordo com os princípios da abstracção e da literalidade, tem justamente ao limites que o conteúdo objectivo do título lhe assinala e é independente da convenção subjacente extra-cartular, certo é também que tal só acontece no domínio das relações mediatas, pois que no domínio das relações imediatas, isto é, no domínio da relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (como é designadamente o caso do sacador-sacado) nas quais os sujeitos cambiários o são simultaneamente de convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, uma vez que as referidas convenções deixam de ser irrelevantes para o portador do título ao qual podem ser opostas as excepções delas decorrentes.
Ora, muito embora se não mostre objectivado na letra dada à execução a sua verdadeira causa de emissão, o negócio que esteve na base da sua aceitação pela embargante, resultou, todavia, da matéria apurada em sede de julgamento que ela foi subscrita e aceite por aquela executada-embargante para pagamento parcial das facturas referidas em 5 dos factos provados.
Quer dizer, apurou-se que, tanto o pedido da acção declarativa nº 493/03.4TBVNO, como o pedido da execução de que os presentes embargos são apenso, têm por base os fornecimentos subjacentes à emissão das daquelas facturas, ou seja, que os dois créditos (o crédito pedido na acção declarativa e o crédito pedido na execução) derivam do mesmo negócio, que o mesmo é dizer, do mesmo facto jurídico.
Verifica-se, assim, além de uma inegável identidade de sujeitos (esta por ninguém questionada), também uma simultânea identidade de pedidos e de causas de pedir entre a execução de que os presentes embargos são apenso e aquela acção declarativa nº493/03.4TB ainda pendente.
Daí que, ao invés do decidido, a excepção da litispendência deva proceder, com a consequente extinção da acção executiva apensa, como manda o nº 4 do artº817º do C.P.Civil.

Decisão
Nos termos expostos, acordam em:
1- julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida;
2-julgar procedentes os embargos, com a consequente extinção da acção executiva apensa.
Custas, em ambas as instâncias, pela embargada.