Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
127/10.0TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PRESTAÇÃO SOCIAL
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
REGIME APLICÁVEL
Data do Acordão: 10/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DECRETO-LEI Nº 322/90, DE 18 DE OUTUBRO; DECRETO REGULAMENTAR Nº 1/94, DE 18 DE JANEIRO; ALÍNEA E) DO ARTº 3, EX VI ARTº 6º, DA LEI Nº 7/2001, DE 11 DE MAIO; LEI N.º 23/2010, DE 30 DE AGOSTO.
Sumário: I - A Lei nº 135/99, de 28 de Agosto, posteriormente revogada e substituída pela Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, veio enunciar num só diploma os diversos direitos atribuídos por lei às pessoas que vivam em união de facto, tendo previsto este último diploma, no art.º 3º, al. e), o direito à protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social, estabelecendo o artigo 6º que beneficiava desse direito quem reunisse as condições constantes no art.º 2020º do C. Civil, devendo o mesmo efectivar-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição.

II - No novo regime é a entidade responsável pelo pagamento das prestações que, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação, sendo certo que essa possibilidade já não se coloca nas situações em que a união de facto tiver durado pelo menos 4 anos – dois anos após o decurso do prazo estipulado no n.º 2 do artigo 1º.

III - O regime legal aplicável aos requisitos de atribuição aos unidos de facto das prestações sociais por morte de um dos membros da união, relativamente aos processos pendentes à data da entrada em vigor da Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, é o definido por este diploma, mesmo que a morte do beneficiário tenha ocorrido em data anterior a 1 de Janeiro de 2011.

IV - Relativamente à pensão de sobrevivência há que ter em conta que a pró­pria Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, definiu o momento da produção dos seus efeitos no que respeita aos preceitos com repercussão orçamental.

V - Ora a aplicação, por força do disposto no artigo 6º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, com a alteração introduzida pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, do regime desta lei à situação da Autora, membro sobrevivo de união de facto dissolvida por óbito de beneficiário da segurança social, leva a que os efeitos deste último diploma se produzam com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor, conforme resulta expres­samente do disposto no artigo 6º da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto.

VI - Só a partir desse Orçamento, que naturalmente não pôde deixar de entrar em linha de conta com o aumento de despesa originado pelo necessário incremento da atribuição de pensões de sobrevivência em função do amplo campo previsional consagrado com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, à Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, é que a Autora terá direito à atribuição de pensão de sobrevivência, isto é, a partir de 1 de Janeiro de 2011.

VII - É possível incluir, por integração analógica, a união de facto do alimentado nas causas legais de cessação da obrigação alimentar do ex-cônjuge, pelo que a remissão do art.º 2020º para as pessoas referidas na alínea a) do artigo 2009º, ambos do C. Civil, não inclui o ex-cônjuge, uma vez que invocando o pretendente às prestações sociais por morte precisamente a existência duma relação de união de facto com o beneficiário falecido, nunca poderia obter alimentos do ex-cônjuge.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora intentou a presente acção com processo ordinário, pedindo que seja reconhecida como titular das prestações da pensão de sobrevivência, no âmbito do regime de segurança social, e respectivo pagamento decorrentes do falecimento de F...
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese:
Ø  A Autora e F…, ambos com o estado civil de divorciados, viveram como se marido e mulher fossem um do outro durante vários anos, com início em 1996, e até à morte deste, ocorrida em 12.11.2008.
Ø  Presentemente a Autora, desempregada desde o ano de 2007, encontra-se em situação de não possuir bens ou rendimentos que lhe permitam fazer face às despesas correntes do seu quotidiano e do seu agregado familiar, composto por si e por um filho menor, de nome J…, o qual é filho também do referido F...
Ø A Autora, dentre os seus diversos familiares, não tem ninguém com possibilidade de lhe prestar alimentos.
Ø  Da herança deixada pelo falecido não constam bens ou rendimentos que permitam suportar o pagamento da pensão de alimentos de que carece.

O Réu contestou, impugnando diversa factualidade alegada pela Autora, concluindo que a acção seja julgada de acordo com a prova a produzir em audiência de julgamento.
Veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada.
Inconformada com a decisão a Autora recorreu, formulando as seguintes conclusões:
...
Conclui pela procedência do recurso.

O Réu apresentou resposta, defendendo a confirmação da decisão recorrida.

1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações da recorrente cumpre apreciar a seguinte questão:
A Autora demonstrou que se verificam os requisitos necessários ao reconhecimento do direito invocado?

2. Os Factos
Os factos provados são os seguintes:
...
3. O Direito Aplicável
A Autora na presente acção pretende que lhe seja reconhecida a titulari­dade das prestações por morte no âmbito dos regimes de Segurança Social previstos no Decreto-Lei nº 322/90, de 18 de Outubro, no Decreto-Regulamentar nº 1/94, de 18 de Janeiro e na alínea e) do nº 3, ex vi artigo 6º, da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, em resultado da morte de F…, com quem vivia em união de facto.
A decisão recorrida recusou-lhe esta pretensão com fundamento em que a Autora não demonstrou que não pudesse obter alimentos do ex-cônjuge.
Como expressão de um Estado-Providência este assegura, desde há muito, no nosso sistema, a protecção por morte dos beneficiários abrangidos pelo regime geral de segurança social, mediante a concessão aos familiares próximos do falecido de prestações continuadas, embora não necessariamente vitalícias - as pensões de sobrevivência e os subsídios de assistência - e de uma prestação única - o subsídio por morte.
Contudo, as relações de comunhão de vida não formalizadas não foram sempre reconhecidas para este efeito.
Em Portugal, até à profunda reforma do Direito de Família operada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, aprovada na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, essas situações apenas eram consideradas, excepcional­mente, para a consagração de efeitos completamente alheios ao reconhecimento de qualquer estatuto jurídico a essa realidade (v.g. os artigos 1860.º, c), e 1862.º, do C.C. que incluíam como uma das situações em que se admitia a acção de investiga­ção de paternidade, a existência duma comunhão duradoura de vida em condições análogas às dos cônjuges).
Contudo, a crise do casamento que se manifestou nas últimas décadas do século passado, acompanhada duma crescente opção pelo estabelecimento de relações de união de facto, deu força a uma realidade social cuja importância não podia mais deixar de suscitar a intervenção do Direito.
E foi esse reconhecimento jurídico, normalmente obtido através da exten­são aos membros destas uniões dos mais diversos direitos atribuídos pela ordem jurídica aos cônjuges, que começou a ser reclamado, em nome de uma visão alar­gada do direito à protecção da família.
O referido Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, iniciou um movi­mento legislativo de atribuição de efeitos jurídicos às relações de união de facto, com a consagração no artigo 2020º do C.C., de um direito a alimentos por morte de um dos seus membros ao companheiro sobrevivo, a satisfazer pela herança daquele.
Na sequência desta inovação legislativa e após o pagamento de pensões de sobrevivência às pessoas que vivam com o falecido, em condições análogas às dos cônjuges, mas não eram casadas, ter sido introduzido pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79, de 25 de Junho, que alterou a redacção dos art.º 40º e 41º do Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de Março, no âmbito do funcionalismo público, o Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, que uniformizou as regras relativas às mencionadas prestações por morte no âmbito do regime geral da segurança social, veio reconhecer aos unidos de facto, que reunissem determinadas condições, o direito de também beneficiarem dessas prestações.
Na verdade, o art.º 8º, n.º 1 deste diploma estendeu o direito às presta­ções por morte de beneficiário do regime geral da segurança social às pessoas que se encontrassem na situação prevista no art.º 2020º do C. Civil, remetendo o n.º 2 do mesmo artigo para regulamento posterior, o processo de prova dessas situações e a definição das condições de atribuição das prestações.
A situação prevista no art.º 2020º do C. Civil é a daqueles que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, viviam com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, e necessitando de alimentos, não os podiam obter dos familiares referidos nas alíneas a) a d) do art.º 2009º do C. Civil, sendo-lhes reconhecido o direito a exigi-los da herança do falecido.
A regulamentação do direito reconhecido no art.º 8º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, foi efectuada pelo Decreto Regulamentar nº 1/94, de 18 de Janeiro, que no seu art.º 3º estabeleceu que o direito às referidas prestações ficava dependente do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra a institui­ção de segurança social competente para a sua atribuição.
 A Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, posteriormente revogada e substituída pela Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, veio a enunciar num só diploma os diversos direitos atribuídos por lei às pessoas que vivam em união de facto, tendo previsto este último diploma, no art.º 3º, al. e), o direito à protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social, estabelecendo o artigo 6º que beneficiava desse direito quem reunisse as condições constantes no art.º 2020º do C. Civil, devendo o mesmo efectivar-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição.
Foi neste quadro legislativo que foi proposta a presente acção.
Nesta provou-se que a Autora vivia com beneficiário do regime geral da segurança social, em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos, e que se encontra numa situação de carência económica, mas não se provou que a Autora não possa obter alimentos do ex-cônjuge.
Entretanto, na pendência da acção, entrou em vigor a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, que, no que aqui interessa, alterou substancialmente o regime jurídico das uniões de facto consagrado na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, no Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, no Código Civil (designadamente o artigo 2020°) e no Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de Março, e revogou, de forma tácita, vários dispositi­vos do Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro.
O artigo 3º, da Lei n.º 7/2001, na redacção introduzida pela recente alte­ração, passou a dispor que “as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a: ... e) Protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei.”
E o art.º 6º da mesma Lei, relativo ao regime de acesso às prestações por morte, passou a dispor do seguinte modo:
1- O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º, independentemente da necessidade de alimentos.
2- A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3°, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação.
3- Exceptuam-se do previsto no n.º 2 as situações em que a união de facto tenha durado pelo menos dois anos após o decurso do prazo estipulado no n.º 2 do artigo 1º.
Por sua vez, o novo art.º 2º-A, relativo à Prova da união de facto dispõe que:
1-Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova docu­mental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissí­vel.
2- No caso de se provar a união de facto por declaração emitida pela junta de freguesia competente, o documento deve ser acompanhado de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registo de nascimento de cada um deles.
3- Caso a união de facto se tenha dissolvido por vontade de um ou de ambos os membros, aplica-se o disposto no número anterior, com as necessárias adaptações, devendo a declaração sob compromisso de honra mencionar quando cessou a união de facto; se um dos membros da união dissolvida não se dispuser a subscrever a declaração conjunta da existência pretérita da união de facto, o interessado deve apresentar declaração singular.
4- No caso de morte de um dos membros da união de facto, a declaração emitida pela junta de freguesia atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento, e deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registo de nascimento do interessado e de certidão do óbito do falecido.
Finalmente deve referir-se que o artigo 8º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, também foi alterado e passou a estabelecer o seguinte:
1- O direito às prestações previstas neste diploma e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que vivam em união de facto.
 2- A prova da união de facto é efectuada nos termos definidos na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que adopta medidas de protecção das uniões de facto.
Em resumo, estas alterações legislativas acabaram com dois dos grandes obstáculos legais que até aqui se colocavam à pretensão da pessoa que vivia em união de facto de receber as prestações por morte do outro membro da união entre­tanto falecido:
- um de ordem substantiva, que consistia no facto de serem elementos constitutivos deste direito a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter dos familiares referidos nas alíneas a) a d) do art.º 2009º.
- outro de ordem procedimental, que residia na necessidade de instaurar uma acção judicial para ser reconhecido que se encontrava em condições de benefi­ciar dessas prestações.
Relativamente ao primeiro obstáculo, a titularidade do direito às presta­ções por morte de um dos unidos de facto, passou a depender apenas da duração dessa convivência.
No tocante à necessidade da acção judicial, substituiu-se o regime ante­cedente pela suficiência da produção de qualquer meio de prova perante a entidade responsável pelo pagamento das prestações, revogando-se, assim, tacitamente, o Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro, na parte em que previa essa acção.
No novo regime é a entidade responsável pelo pagamento das prestações, que, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação, sendo certo que essa possibilidade já não se coloca nas situações em que a união de facto tiver durado pelo menos 4 anos – dois anos após o decurso do prazo estipulado no n.º 2 do artigo 1º.
Sendo a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, omissa quando ao reflexo destas alterações nos processos pendentes, cumpre aplicar as regras gerais sobre a aplicação das leis no tempo.
Em primeiro lugar, há que verificar se o reconhecimento da qualidade de titular das referidas prestações sociais deve ser feita à luz do regime substantivo vigente até à entrada em vigor da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, ou deve tomar-se em consideração as alterações introduzidas por este diploma quanto aos requisitos dessa titularidade.
Sobre esta questão seguimos aqui a posição perfilhada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5 de Julho de 2011 [1] , segundo a qual o regime legal aplicável aos requisitos de atribuição aos unidos de facto das prestações sociais por morte de um dos membros da união, relativamente aos processos pendentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, é o definido por este diploma, mesmo que a morte do beneficiário tenha ocorrido em data anterior a 1 de Janeiro de 2011 [2], aderindo integralmente à sua fundamentação.
Mas a Autora peticiona o reconhecimento da titularidade das prestações por morte no âmbito dos regimes de Segurança Social previstos no Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, no Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro, e na alínea e) do artº 3º, ex vi artigo 6º, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, em resultado da morte de F...
As prestações por morte previstas no Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, são o subsídio único por morte, destinado a compensar o acréscimo dos encargos decorrentes da morte do beneficiário, tendo em vista facilitar a reorganiza­ção da vida familiar; a pensão de sobrevivência, que visa compensar a perda de rendimentos do trabalho que o beneficiário auferia; e o subsídio por assistência de terceira pessoa, que pretende minimizar os encargos resultantes das situações de dependência dos pensionistas de sobrevivência – art.º 4º.
Relativamente a esta última prestação não foi alegada e consequente­mente demonstrada a circunstância que justificava a sua atribuição, ou seja a referida situação de dependência.
Quanto ao subsídio único por morte, a sua natureza de prestação única, atribuída por causa da morte do beneficiário e destinada a facilitar a reorganização da vida familiar, não reúne as características de uma prestação duradoura e periódica que visa fazer face a uma situação subsistente justificativa da aplicação da lei nova aos seus requisitos de atribuição.
Também relativamente à pensão de sobrevivência há que ter em conta que a pró­pria Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, definiu o momento da produção dos seus efeitos no que respeita aos preceitos com repercussão orçamental. Ora a aplicação, por força do disposto no artigo 6º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, com a alteração introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, do regime desta lei à situação da Autora, membro sobrevivo de união de facto dissolvida por óbito de beneficiário da segurança social, leva a que os efeitos deste último diploma se produzam com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor, conforme resulta expres­samente do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto.
Só a partir desse Orçamento, que naturalmente não pôde deixar de entrar em linha de conta com o aumento de despesa originado pelo necessário incremento da atribuição de pensões de sobrevivência em função do amplo campo previsional consagrado com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, à Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, é que a Autora terá direito à atribuição de pensão de sobrevivência, isto é, a partir de 1 de Janeiro de 2011.
Assim, das prestações por morte cuja titularidade a Autora reclamava, a aplicação da lei nova apenas lhe confere o direito à pensão de sobrevivência desde 1 de Janeiro de 2011, sem que lhe seja exigível demonstrar qualquer situação de carência de alimentos e, consequentemente, a situação de impossibilidade das pessoas obrigadas à sua prestação o fazerem.
Quanto ao direito à prestação única por morte e às prestações da pensão de sobrevivência anteriores a 1 de Janeiro de 2011, a verificação da sua existência deve ser feita à luz do regime anterior à Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto.
A decisão recorrida não reconheceu o direito da Autora a receber da Segurança Social qualquer prestação por morte do seu beneficiário F…, por esta não ter logrado demonstrar que o seu ex-cônjuge estava impossibilitado de lhe pagar alimentos, revelando implicitamente o entendimento que a remissão constante do artigo 2020.º para a lista das pessoas constante das alíneas a) a d) do art.º 2009º, ambos do C. Civil, abrangia também o ex-cônjuge.
A possibilidade da pessoa que vivia em união de facto com terceiro poder reclamar alimentos do ex-cônjuge, anteriormente à alteração efectuada pela referida Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, era uma questão envolta em alguma polémica.
França Pitão [3] limitava-se a considerar que não era eticamente correcto que o julgador, confrontado por semelhante situação, viesse a obrigar o ex-cônjuge a prestar alimentos ao outro, que entretanto vivia maritalmente com outra pessoa.
Salter Cid [4] dissertava nos seguintes termos:
Mas onde está a justificação atendível para o legislador se ter atrevido “a levar a solidariedade até ao ponto de a fazer sobreviver” à união de facto ou nova união de facto do credor (ex-cônjuge somente, cônjuge sobrevivo ou sobrevivo de união de facto). Somos, pois, levados a pensar: se pode considerar-se razoável a solução de fazer cessar o direito a alimentos no caso de o alimentado contrair casamento, i. e., conferir à sua nova união o estatuto que o legislador propõe como modelo para “constituir família mediante uma plena comunhão de vida” (cfr. art. 1577.° do C.C.), já o mesmo se não pode dizer da solução de, a um tempo, não fazer cessar tal direito caso o alimentado decida “desenvolver a sua personalidade” instaurando uma união de facto (ou uma nova união de facto) em detrimento da opção de contrair casamento (ou de celebrar segundas núpcias), quem sabe se com o único propósito de não perder o direito a alimentos. Este tratamento mais favorável da união de facto em relação ao casamento deve ser considerado injustificado; e para obviar ao resultado inaceitável a que conduz, enquanto o legislador ordinário se revela demasiadamente absorvido no tratamento de favor das uniões de facto, parece-nos bem pugnar-se pela aplicação analógica do art. 2019.° do C.C. e julgar-se no sentido de o direito a alimentos cessar, tanto no caso de o alimentado contrair casamento (caso previsto), como no caso de o alimentado instaurar uma união de facto (caso não previsto, mas análogo, para o efeito) ou, evidentemente, “se tomar indigno do benefício pelo seu comportamento moral” (caso previsto).
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira [5] apenas advogavam a inclusão da união de facto nas causas de cessação da obrigação de alimentos do ex-cônjuge de iure constituendo.
Na jurisprudência, nas vésperas da aprovação do Código Civil de 1966, encontram-se decisões negando a obrigação de prestar alimentos pelo ex-cônjuge a quem vivia “amancebada” com outra pessoa, por considerarem que se estava perante um caso de indignidade [6].
Na vigência do C. Civil de 1966, após a reforma de 1977, os acórdãos da Relação de Lisboa de 12.2.1987 [7] e de 19.11.1991 [8], este confirmado pelo acórdão do S.T.J. de 22.10.1992 [9], e da Relação de Évora de 4.10.2001 [10], pronunciaram-se nesse mesmo sentido, entendendo este último aresto que era possível incluir, com recurso à analogia, nos casos de cessação da obrigação de alimentos, a hipótese do seu credor viver em união de facto com terceira pessoa.
Contudo, o acórdão da Relação de Lisboa de 10.4.2008 [11], apoiando-se na posição de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, pronunciou-se em sentido contrário.
Esta questão encontra-se hoje ultrapassada, uma vez que a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, alterou a redacção do art.º 2019º do C. Civil, introduzindo como causa de cessação da obrigação de alimentos pelo ex-cônjuge o início duma relação de união de facto pelo credor dessa obrigação.
Todavia, uma vez que a verificação do direito à prestação única por morte e às prestações da pensão de sobrevivência anteriores a Janeiro de 2011 deve ser feita à luz do regime anterior à Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, é incontornável tomar posição na referida polémica.
Para isso é necessário verificar os fundamentos da atribuição ao ex-cônjuge duma obrigação de alimentos e as razões da sua cessação, de modo a verificar se é possível estender essa cessação às hipóteses em que o credor de alimentos passa a viver em união de facto com terceira pessoa.
O Decreto de 3 de Novembro de 1910 que introduziu o divórcio em Portugal, previu como seu efeito a possibilidade de qualquer um dos ex-cônjuges exigir do outro que lhe preste alimentos, se deles carecer (art.º 29º), cessando essa obrigação, além dos casos em que desaparece a necessidade de alimentos ou a possibilidade de os prestar, se aquele que os receber contrair casamento ou se se tornar indigno pelo seu comportamento moral (art.º 32º).
Esta solução que durante a vigência da apelidada Lei do Divórcio foi alvo de críticas, por não relevar a culpa pelo divórcio [12], estendeu a ideia de solidariedade familiar ao ex-cônjuge, em nome de um passado de comunhão de vida, justificativo da manutenção de uma obrigação de apoio, para além do termo do casamento, em situações de necessidade.
Apesar do Código Civil de 1966 (art.º 2016º) ter introduzido na constituição desta obrigação alimentar a relevância da culpa pelo decretamento do divórcio litigioso, que se manteve após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, isso não alterou os seus fundamentos, não se justificando a adesão a uma qualquer concepção indemnizatória desta obrigação [13] .
Continuou a ser o dever ético-jurídico da solidariedade, invocado em nome duma anterior comunhão de vida, a justificar a obrigação do ex-cônjuge acorrer à situação de necessidade do seu antigo consorte, apesar da culpa pelo divórcio poder ter aqui um papel correctivo, refinando o apuramento desse dever ético-jurídico.
Sendo este o fundamento da obrigação de alimentos por parte do ex-cônjuge, o legislador, além dos casos em que desaparece a necessidade de alimentos ou a possibilidade de os prestar, previu como circunstâncias justificativas da cessação desta obrigação, o casamento do ex-cônjuge credor de alimentos e a indignidade do benefício, em resultado do seu comportamento moral (primeiro no art.º 32º da Lei do Divórcio, e após a aprovação do Código Civil de 1966 no art.º 2019º deste diploma).
Afastada liminarmente está a possibilidade do início duma relação de união de facto com terceira pessoa poder ser qualificada como um comportamento socialmente censurável que possa tornar indigno o recebimento de alimentos por parte do ex-cônjuge. Mas já parece possível equiparar essa situação ao casamento do ex-cônjuge credor de alimentos com terceira pessoa, para efeitos de cessação dessa obrigação.
Na verdade, o casamento com terceiro não determina a cessação da obrigação de alimentos por parte do ex-cônjuge, devido ao facto de na relação conjugal existir um dever de alimentos recíproco que tornaria desnecessário o recurso à contribuição do ex-cônjuge, ao contrário do que sucede nas relações de união de facto, uma vez que não se exige que o novo cônjuge tenha capacidade para prestar esses alimentos. O fundamento da cessação reside antes na perspectiva de que, tendo o credor de alimentos iniciado uma comunhão de vida análoga à comunhão conjugal, perde sentido o apelo à anterior comunhão conjugal para justificar um dever de apoio do ex-cônjuge. Existindo uma nova situação de comunhão de vida, mesmo sem deveres institucionalizados, num juízo ético-jurídico, numa sociedade monogâmica, deixa de ser possível apelar à memória da anterior relação para fazer funcionar um dever de solidariedade. A relevância desse passado, face ao nascimento de uma nova relação de comunhão, desaparece.
Daí que a não vinculação jurídica dos parceiros de uma união de facto a formas de comportamento recíproco, nomeadamente ao dever de prestar alimentos, não pode, pois, ser invocada para afastar a sua equiparação ao casamento, com base na inexistência de um estatuto vinculativo.
O que releva é que, embora não estando sujeitos a deveres nesse sentido, os unidos de facto adoptaram espontaneamente um modo de relacionamento que os faz cair numa situação “análoga à dos cônjuges”. Analogia que se estende a todas aquelas esferas que são denotadas quando a relação, tanto a conjugal como a de união de facto, é qualificada como de “vida em comum”. A união de facto não é uma pura e imaterializada “comunidade de afecto”. Ela corporiza-se em laços reais entretecidos por uma constante e duradoura entreajuda e comunhão de interesses, sem as quais não há união. O ser esta de facto não a diferencia, no plano da realidade relacional, de uma união juridicamente vinculada, pelo casamento. Daí que, tendo-se iniciado uma relação com um conteúdo material análogo ao da relação conjugal, as razões que levaram o legislador a determinar a cessação dos alimentos a prestar pelo ex-cônjuge quando o credor de alimentos contraia novo matrimónio com terceiro, também impõem que quando inicia uma relação de união de facto esse dever também cesse.
Por este motivo é possível incluir, por integração analógica, a união de facto do alimentado nas causas legais de cessação da obrigação alimentar do ex-cônjuge, pelo que a remissão do art.º 2020º para as pessoas referidas na alínea a) do artigo 2009º, ambos do C. Civil, não inclui o ex-cônjuge, uma vez que invocando o pretendente às prestações sociais por morte precisamente a existência duma relação de união de facto com o beneficiário falecido, nunca poderia obter alimentos do ex-cônjuge. 
Assim sendo, mesmo no domínio da legislação anterior à aprovação da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, à Autora logrou demonstrar todos os requisitos da atribuição das prestações sociais por morte de F…, uma vez que não lhe era exigível que provasse que não podia obter alimentos do ex-cônjuge, dado que, tendo vivido em união de facto com o referido F…, a respectiva obrigação de alimentos já havia cessado.
Por este motivo tem também direito a receber a prestação única por morte de F… e as prestações da pensão de sobrevivência anteriores a 1 de Janeiro de 2011, pelo que o recurso deve ser julgado totalmente procedente, tal como a acção por si intentada.
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Decisão
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em conse­quência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se a acção totalmente procedente, reconhecendo-se à Autora o direito às prestações sociais por morte de F...

Custas do recurso pelo Réu.



Sílvia Pires (Relator)

Henrique Antunes

Regina Rosa


[1] Relatado por Sílvia Pires, em www.dgsi.pt.

[2] No mesmo sentido, os seguintes Acórdãos, todos acessíveis em www.dgsi.pt:
- da Relação de Coimbra, de 8.2.2011, relatado por Manuel Capelo, proc. n.º 986/09.0TBAVR.
- da Relação de Coimbra, de 15.2.2011, relatado por Fonte Ramos, proc. n.º 121/09.4T2ILH.
- da Relação de Coimbra, de 15.3.2011, relatado por José Eusébio, proc. n.º 139/09.7TBACN.
- da Relação de Coimbra, de 29.3.2011, relatado por Francisco Caetano, proc. n.º 459/10.8T2AVR.
- do S.T.J., de 7.6.2011, relatado por Salazar Casanova, proc. n.º 1877/08.7TBSTR.
- do S.T.J., de 6.7.2011, relatado por Sérgio Poças, proc. n.º 1038/08.5TBAVR
- do S:T.J., de 6.7.2011, relatado por Pires da Rosa, proc. n.º 23/07.9TBSTB.
- do S.T.J., de 6.9.2011, relatado por Azevedo Ramos, proc. n.º 322/09.5TBMNC.
Em sentido contrário, defendendo que é o momento da morte que determina a lei aplicável, pronunciaram-se os seguintes Acórdãos, todos acessíveis em www.dgsi.pt:
- da Relação de Lisboa, de 15.2.2011, relatado por Maria do Rosário Morgado, proc. n.º 23648/09.3T2SNT.
         - do S.T.J., de 24.2.2011, relatado por Granja da Fonseca, proc. n.º 116.08TBMAI.
- da Relação do Porto, de 15.3.2011, relatado por Pinto dos Santos, proc. n.º 10027/09.1TBMAI.
- da Relação de Lisboa, de 3.5.2011, relatado por Tomé Gomes, proc. n.º 6290/09.6TVLSB.
- da Relação do Porto, de 5.5.2011, relatado por Carlos Portela, proc. n.º 420/10.2TBESP.
- da Relação de Lisboa, de 24-5-2011, relatado por Roque Nogueira, no proc. n.º 6014/09TVLSB.
- da Relação de Guimarães, de 16-6-2011, relatado por Helena Melo, no proc. n.º 1364/10TBBRG.

[3] In Uniões de facto e economia comum, pág. 193, ed. de 2002, Almedina.

[4] In A comunhão de vida à margem do casamento: entre o facto e o direito, pág. 577, ed. de 2005, Almedina.
[5] Em Curso de direito de família, vol. I, pág. 107 e 688, 2.ª ed., da Coimbra Editora.

[6] Vide, o Acórdão da Relação de Lisboa de 12-6-1964, na Jurisprudência das Relações, Ano 10.º, pág. 525, confirmado pelo Acórdão do S.T.J., de 8-1-1965, relatado por Lopes Cardoso, no B.M.J. n.º 143, pág. 227.

[7] Relatado por Vaz de Sequeira, na C.J., Ano XII, tomo 1, pág. 120.

[8] Relatado por Sousa Nogueira, sumariado em www.dgsi.pt.

[9] Relatado por Ricardo da Velha, sumariado em www.dgsi.pt.

[10] Relatado por Borges Soeiro, na C.J., Ano XXVI, tomo 4, pág. 266.

[11] Relatado por Sousa Pinto, em www.dgsi.pt.

[12] Leia-se Cunha Gonçalves em Tratado de direito civil em comentário ao Código Civil Português, vol. VII, pág. 118 e seg., ed. de 1933, da Coim­bra Editora, e R.L.J, Ano 96, pág. 355.

[13] Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil anotado, vol. IV, pág. 617, ed. de 1995, Coimbra Editora.