Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3926/16.6YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: COOPERATIVA
ÓRGÃOS SOCIAIS
COMPETÊNCIAS
OBRIGAÇÃO
MORA
Data do Acordão: 05/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: CÓDIGO COOPERATIVO ( LEI Nº 51/96 DE 7/9, LEI Nº 119/2015 DE 31/8), ARTS.777, 805 CC
Sumário: 1.- Na determinação dos valores a pagar anualmente a cada um dos cooperadores como contrapartida pelas entregas de fruta produzida por cada um deles ( ou os critérios para o respectivo cálculo, bem como o modo e tempo de pagamento ) é da competência exclusiva da assembleia geral.

2.- A posterior decisão no sentido de, face às dificuldades económicas que atravessa e não dispondo de meios económicos para fazer face à totalidade das suas obrigações vencidas, escolher quais merecem prioridade em termos de pagamento, já caberá à administração da Cooperativa ( pela Direcção, enquanto órgão executivo)..

3.- Ocorrido o vencimento da obrigação, a posterior decisão da Cooperativa, tomada pela direcção e ainda retificada pela assembleia, não impede o decurso da mora.

Decisão Texto Integral:






                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

A (…) intentou o presente procedimento de injunção a prosseguir como ação especial nos termos do DL nº 269/98, de 01.09, contra a Cooperativa Agrícola dos Produtores de Fruta dos Concelhos (…),

alegando que, na qualidade de associado da Ré, lhe vendeu fruta por si produzida, na campanha de 2010-2011, no valor de 9.073,08 €, que se encontra por pagar.

Pedindo a condenação da Ré a da ré a pagar-lhe a quantia de €9.073,08, acrescida de juros de mora legais, comerciais, sucessivamente em vigor, já vencidos, à data de 14.01.2016, no montante global de €3.074,00, e ainda nos vincendos, desde a citação, à mesma taxa, até integral pagamento.

A Ré deduziu oposição, alegando, em síntese:

a Ré é uma cooperativa que presta apoio à produção, tratamento e comercialização dos produtos dos seus associados, como é o caso do autor;

o autor não vendeu como fornecedor a fruta em apreço mas entregou-a, como é sua obrigação estatutária, para que a ré a tratasse e comercializasse; no final da campanha, os cooperadores, entre os quais o autor, recebem o respetivo crédito;

os créditos dos cooperadores são pagos em função das condições financeiras da ré, mediante decisão dos seus órgãos;

em 2011 a ré atravessava dificuldades financeiras, pelo que os seus órgãos deliberaram não pagar a qualquer cooperador créditos da campanha de 2010-11, apenas o imposto lançado nas faturas;

o crédito do autor existe mas não está vencido, nem é exigível, e só será pago quando a ré, através dos seus órgãos, assim o deliberar, concluindo pela sua absolvição do pedido.

Na pendência da ação, a Ré procedeu ao pagamento parcial da quantia peticionada, no montante de 5.443,83 €.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a presente ação, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de €3.629,25 acrescida de juros de mora vencidos desde 28.01.2016 até 19.09.2016, à taxa de 4% ao ano, sobre o montante de €9.073,08, e nos vincendos, desde esta última data em diante, à mesma taxa, sobre o montante de €3.629,25, absolvendo-a do demais peticionado;


*

Inconformada com tal decisão, a Ré dela interpõe recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem parcialmente[1]:

(…)


*

O autor apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, nos termos previstos no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da sentença.
2. Se os factos dados como provados impunham decisão diversa.
3. Relevância da deliberação social tomada na pendência da ação.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidade da sentença por contradição entre os factos e a decisão

Invoca a Apelante a nulidade da sentença recorrida com fundamento no artigo 615º, nº1, al. c), do CPC, porquanto os factos dados como provados estariam em flagrante oposição coma decisão recorrida: como consta da motivação da matéria de facto, o facto provado 14 (A Ré decidiu que a Campanha de 2010/2011 seria paga logo que houvesse disponibilidade financeira para o efeito) resultou da decisão da Direção da Ré tomada no final da campanha de 2010/2011, Direção que nos termos estatutários, enquanto órgão social de administração e de representação da Cooperativa, é o competente para decidir sobre o tempo e o modo de pagamento dos créditos dos seus associados.

Não assiste, contudo, qualquer razão à apelante.

Dando como “não provado” que o crédito do autor se vencesse a 30 dias, e igualmente como “não provado” que a Ré teria “decidido” não pagar qualquer crédito a qualquer operador com respeito à campanha de 2010/2011, com exceção do valor do IVA, o juiz a quo, ao subsumir os factos ao direito, considerou que, não se tendo apurado que tenha sido aprovado em Assembleia Geral que a Cooperativa só deve pagar aos operantes quanto dispuser de condições económicas para tal [al. a) dos factos não provados], ónus da prova que incumbia à Ré, serão devidos juros de mora desde a data da citação.

Ou seja, de acordo com o pensamento exposto na sentença recorrida, a tal “decisão” da Ré seria irrelevante na ausência de prova de que a mesma tenha sido objeto de aprovação por parte da Assembleia Geral, tornando a obrigação de pagamento em causa como uma obrigação sem prazo, vencendo-se com a interpelação judicial para cumprir.

Tal raciocínio, assentando num discurso perfeitamente lógico, pode estar certo ou errado face às normas legais aplicáveis. Contudo, um eventual erro de julgamento seria, a este nível, perfeitamente irrelevante.

Como é entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência, apenas a contradição lógica integra o fundamento da nulidade da sentença previsto na alínea c), do nº1 do artigo 615º:

“Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta; quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante um erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se[2]”.

Não se reconhece a verificação da invocada nulidade da sentença.


*

A. Matéria de facto

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida, que aqui não foram objeto de impugnação:

1. A ré é uma cooperativa que tem por objeto principal efetivar as operações consistentes no apoio à produção, receção, tratamento, frigorificação e comercialização, respeitantes à natureza dos produtos, hortícolas e frutícolas, provenientes das explorações dos cooperadores;

2. O autor era, em 2010 e 2011 cooperador da ré, com o número 482;

3. O autor dedica-se à produção de pomóideas e viticultura;

4. O autor, no exercício da sua atividade, produziu maçãs e peras durante a campanha de 2010-2011 e entregou-as à ré;

5. Esta campanha teve início a 01.08.2010 e termo a 31.07.2011;

6. O valor do fornecimento referido em 4 foi fixado no montante de €9.073,08;

7. A este valor acresceu IVA no valor de €544,38;

8. A ré pagou este valor do IVA ao autor através da fatura n.º 0012 que lhe foi enviada a 31.07.2011;

9. O valor de “€9.073,08” foi inscrito num documento, emitido e entregue pelo autor à ré, denominado “fatura”, com o número “0012”, com data de “31.07.2011”, onde foi mencionado a quantidade “1” e a designação “pagamento da campanha 2010/2011”;

10. A entrega, pelo autor à ré, dos produtos indicados supra em 4, foi efetuada com o objetivo desta lhe dar o tratamento necessário e a comercializasse;

11. Os créditos dos cooperadores são pagos em função das condições financeiras da cooperativa autora, mediante decisão dos próprios cooperadores, tomada pelo órgão próprio;

12. No verão do ano de 2011 a ré atravessou dificuldades financeiras resultantes de encargos mensais que suportava decorrentes de empréstimos bancários por si contraídos;

13. A ré decidiu não pagar qualquer crédito a qualquer cooperador com respeito à campanha de 2010-2011, com exceção do imposto supra referido em 7;

14. A ré decidiu que a campanha de 2010-2011 seria paga logo que houvesse disponibilidade financeira para o efeito;

15. A ré pagou ao autor, em 19.09.2016, por conta do montante indicado supra em 6, a quantia de €5.443,83;

16. A ré foi citada para os termos da presente ação no dia 28.01.2016.


*

B. O Direito

O Autor intenta a presente ação pedindo a condenação da Ré no pagamento do valor respeitante ao fornecimento de fruta que efetuou na temporada de 2010/2011, acrescido do valor dos juros vincendos desde a data de emissão da fatura (31-07-20011).

A Ré opõe-se a tal pretensão com a alegação de que, sendo o autor um seu cooperante e tendo entregado à Ré a fruta que produziu na campanha de 2010/2011, para que esta lhe desse o necessário tratamento e a comercializasse, os créditos deste e dos demais cooperadores seriam pagos em função das condições financeiras da cooperativa que integram, mediante decisão dos próprios cooperadores, tomada no órgão próprio; no verão de 2011, a Direção da Cooperativa tomou a decisão de liquidar parte das responsabilidades bancárias, pelo que não foi então possível pagar aos cooperadores a campanha de 2010/2011, apenas tendo sido pago o valor do imposto lançado nas faturas, o que mereceu a concordância dos cooperadores, designadamente na assembleia de 14-07-2012; o crédito do autor só se vencerá a só será exigível quando os órgãos sociais da ré deliberarem pelo pagamento da campanha de 2010/2011 aos seus cooperadores, o que não aconteceu.

O Juiz a quo considerou que, não existindo qualquer prazo para pagamento do fornecimento da quantidade de fruta entregue pelo autor relativa à campanha de 2010/2011, e não se apurando que a Assembleia Geral tenha aprovado a chamada cláusula cum potuerit (artigo 778º, nº1 CC), a Ré será devedora do capital peticionado e respetivos juros legais desde a data da citação, por ser este o momento em que a obrigação, primitivamente sem prazo convencionado – uma obrigação pura –, se vence, ou seja, em que a prestação se torna exigível. 

A Ré insurge-se contra tal entendimento com a alegação de que o juiz a quo labora em confusão sobre a competência dos órgãos sociais da Ré e mesmo em contradição com o que consta da motivação do ponto 14 da matéria de facto dada como provada – a ré decidiu que a campanha de 2010/2011 seria paga logo que houvesse disponibilidade financeira para o efeito –, porquanto a decisão da Ré, tomada no final da campanha de 2010/2011, pela Direção que nos termos estatutários, enquanto órgão social de administração e de representação da cooperativa seria o competente para decidir sobre o tempo e o modo de pagamento dos créditos dos seus associados.

Ora, em nosso entender, quem “labora em erro” relativamente a tal questão não será o juiz a quo, mas a própria Ré, porquanto, uma coisa é, não havendo recursos financeiros para proceder ao cumprimento de todas as suas obrigações vencidas, incumbir à Direção – enquanto órgão executivo da Ré – a decisão sobre quais os créditos que hão de ser pagos em primeiro lugar e, questão completamente distinta, a quem incumbe a determinação do valor e do modo de distribuição dos excedentes pelos cooperadores (calculado em função do valor do produto entregue por cada um), decisão esta que caberá à assembleia geral.

Ou seja, haverá que distinguir entre os dados respeitantes à constituição da obrigação da cooperativa perante os seus associados como contrapartida das entregas de fruta por parte dos cooperadores (respeitantes ao valor do preço por quilo, qual o montante a pagar a cada um dos cooperantes e a partir de que momento são devidos os valores a receber por cada um deles), da competência exclusiva da assembleia, da posterior decisão da administração da Ré (tomada pela Direção, enquanto órgão executivo) no sentido de, face às dificuldades económicas que atravessa e não dispondo de meios económicos para fazer face à totalidade das suas obrigações vencidas, escolher quais lhe merecem prioridade em termos de pagamento.

As cooperativas são organizações democráticas geridas pelos seus membros, os quais participam ativamente na formulação das suas políticas e na tomada de decisões (artigo 3º, nº2 do Código Cooperativo – CC –, aprovado pela Lei nº 51/96, de 07 de setembro).

A assembleia geral é o órgão supremo da cooperativa (a par do órgão da administração e do conselho fiscal), na qual participam todos os cooperadores (art. 27º CC).

E segundo o artigo 49º do CC (artigo 38º do Código atual, aprovado pela Lei nº 119/2015, de 31 de Agosto), são da competência exclusiva da assembleia geral, entre outras:

b) Apreciar e votar anualmente o relatório de gestão e documentos de prestação de contas, bem como o parecer do órgão de fiscalização;

c) Apreciar a certificação legal de contas, quando a houver;

d) Apreciar e votar o orçamento e o plano de atividades para o exercício seguinte;

e) Fixar as taxas dos juros a pagar aos membros da cooperativa;

f) Aprovar a forma de distribuição dos excedentes;”

g) Aprovar a forma de distribuição dos excedentes;

(…)

A determinação dos valores a pagar anualmente a cada um dos cooperadores como contrapartida pelas entregas de fruta produzida por cada um deles (ou a forma para o respetivo cálculo, bem como o modo e tempo de pagamento) terá de constar obrigatoriamente quer do orçamento, quer das contas apresentados anualmente, a aprovar em assembleia geral.

No caso em apreço, não se discutem os montantes a pagar, mas, tão só, o tempo de cumprimento, ou seja, o momento de vencimento de tal obrigação.

Não tendo sido dado como provado o estabelecimento de qualquer prazo para pagamento em causa (facto alegado pelo autor), nem a existência de qualquer deliberação da assembleia geral no sentido de que a cooperativa só pagaria quando reunisse meios para tal (facto alegado pela Ré), a obrigação não se encontrava sujeita a qualquer prazo, constituindo aquilo que a doutrina denomina de obrigação pura[3], nos termos do nº1 do artigo 777º do Código Civil:

Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como, o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela”.

Assim sendo, tal como foi decidido pela sentença recorrida, tal obrigação venceu-se com a interpelação para cumprir feita através da citação efetuada no âmbito da presente ação (artigo 805º, nº1, CCivil).

2. Deliberação tomada na pendência da presente ação.

Por requerimento de 16 de setembro de 2016, a Ré veio requerer a junção aos autos de duas deliberações, por “terem manifesto interesse para a decisão da causa”:

- na reunião realizada a 17 de julho de 2016, que teve como ponto único de ordem de trabalhos o pagamento aos cooperadores da campanha de 2010/2011, por insuficiência de meios para pagar a totalidade dos valores a todos os associados, decidiu a Direção proceder ao pagamento a cada um do montante correspondente a 60% do respetivo crédito, sendo o remanescente liquidado logo que a cooperativa reúna condições;

- por proposta desta Direção, esta decisão ficou condicionada à sua retificação em assembleia geral, que entretanto teve lugar no dia 3 de setembro de 2016 e na qual por unanimidade os cooperadores da Ré ratificaram aquela decisão da Direção sobre o valor a pagar na campanha de 2010/2011 (doc. 2).

Tendo-se a obrigação por vencida com a citação para a presente ação – pelas razões já expostas no ponto anterior –, a circunstância de, na pendencia da presente ação e posteriormente à citação da Ré, a assembleia ter deliberado que só procederia ao pagamento a cada um dos associados do montante correspondente a 60% dos respetivos créditos, sendo o remanescente pago quando reunir condições para tal, é absolutamente irrelevante para efeitos de obstar à constituição da devedora em mora.

            A apelação será de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela apelante.                      

Coimbra, 09 de maio de 2017

Maria João Areias ( Relatora)

Vítor Amaral

Luís Cravo


[1] Face ao nítido incumprimento pelo Apelante do ónus de sintetizar os fundamentos do recurso imposto pelo nº1 do artigo 639º CPC.
[2] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de processo Civil Anotado”; Vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora 2008, p.704.
[3] As obrigações sem designação do tempo de cumprimento, têm o nome corrente de obrigações puras, por oposição às obrigações a termo ou a prazo – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 24.