Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | TÁVORA VÍTOR | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL PRESCRIÇÃO DANOS FUTUROS RENÚNCIA DIREITOS | ||
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Data do Acordão: | 10/03/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE VAGOS | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 236º, 237º E 498º Nº 1 DO CC | ||
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Sumário: | 1. Releva para imprimir carácter de novidade aos danos sofridos por via de acidente de viação o facto de, sem que seja possível imputar incúria ao Autor, ter sido considerada encerrada a fase do contencioso indemnizatório em que se atribuiu uma indemnização ao autor por todos os danos actuais e os que era possível prever. 2. A declaração de quitação por parte do lesado não pode abranger, pela sua imprevisibilidade, as consequências de danos novos cujo aparecimento nada faria supor à data da celebração do acordo. 3. Só pode falar-se de renúncia abdicativa a um direito indemnizatório a partir do momento em que o direito a que se pretende renunciar se torna actual, de molde a poder concluir-se que foi fundamentada e com conhecimento de causa a posição do renunciante. 4. O lesado pode assim, decorridos que sejam já os três/cinco anos, mas sempre dentro do prazo de prescrição ordinária, pedir indemnização por novo dano que entretanto tenha surgido dentro do nexo causal, desde que o faça dentro de três/cinco anos a partir do conhecimento desse dano. | ||
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Decisão Texto Integral: | 1. RELATÓRIO. Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra. A..., veio propor acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra B..., pedindo seja a mesma condenada a pagar-lhe quantia não inferior a € 76.212,80 por todos os danos patrimoniais e morais alegados ou, em alternativa, a quantia de € 55.000, correspondente ao agravamento da perda de capacidade aquisitiva do Autor e atinente dano moral e ainda no que se vier a liquidar em execução de sentença relativamente aos danos futuros descritos no seu articulado. Fundamenta o seu pedido no contrato de seguro obrigatório de responsabilidade automóvel (titulado pela apólice nº 45/00019150/80, emitida pela Aliança – UAP, esta última incorporada pela Ré) celebrado entre a Ré e o proprietário do veículo segurado – Raul da Rocha Criolo, com a consequente transferência para aquela da responsabilidade emergente de acidentes de viação do veículo automóvel seguro, pelos danos resultantes de um acidente de viação ocorrido a 12 de Novembro de 1997, no qual foi o autor interveniente. Citada a Ré para contestar, veio a mesma, a fls. 20 apresentar contestação e documentos, nos termos do artigo 486º do Código de Processo Civil, deduzindo a sua defesa por excepção, invocando a prescrição do direito alegado pelo Autor e a extinção de tal direito por ter ocorrido já o pagamento dos seus danos presentes e futuros, e por impugnação. Conclui pela procedência das invocadas excepções da prescrição e pagamento e consequente absolvição da ré do pedido formulado pelo Autor. A fls. 37 veio o Autor apresentar réplica, respondendo às excepções deduzidas pela Ré, alegando que só teve conhecimento do direito que lhe assistia aquando da propositura da presente acção não sendo os danos referidos, previsíveis e conhecidos à data do acidente e que, apenas declarou considerar-se indemnizado por crer está-lo ao tempo em que subscreveu o recibo em causa. Conclui pela improcedência das excepções deduzidas pela Ré. Sentindo-se habilitado a conhecer do pedido no saneador, o Sr. Juiz julgou a excepção da prescrição procedente e absolveu a Ré do pedido formulado pelo Autor. Daí o presente recurso de Apelação interposto pelo A., o qual no termo da sua alegação pediu que se considere improcedente a excepção da prescrição e se ordene o prosseguimento do processo. Foram para tanto apresentadas as seguintes, Conclusões. 1) A sentença recorrida julgou procedente a excepção de prescrição com o argumento de que os danos invocados pelo Apelante constituem “agravamento”...de danos anteriores, o que impede a sua qualificação como “novos danos”. Ora, 2) O critério de qualificação dos danos como “novos danos” só pode ser o da respectiva imprevisibilidade. 3) Sendo irrelevante que os danos em questão consubstanciem, ou não, um agravamento dos danos anteriores. 4) Desde que o Apelante alegue e prove que os danos para que reclama indemnização não eram previsíveis há menos de cinco anos, o prazo de prescrição é o prazo ordinário. Sem conceder, 5) Mesmo na tese da sentença recorrida, sempre os danos referidos em 37º a 45º da petição inicial haverão de ser considerados como “novos danos”, uma vez que não correspondem a agravamento de danos anteriores. 6) Razão pela qual, em relação a estes danos – mesmo na tese da sentença “a quo”, repete-se – não poderá proceder a prescrição. Não houve contra-alegações. Corridos os vistos legais cumpre decidir. + 2. FUNDAMENTOS. 2.1. Factos. Os factos que interessam à decisão da causa cons-tam a fls. 42 ss do despacho agravado. Assim, não tendo sido impugnada a matéria de facto nem havendo tão pouco qualquer alteração a fazer-lhe, nos termos do preceituado no artº 713º nº 6 do Código de Processo Civil, dá-se aqui a mesma por reproduzida. + 2.2. O Direito. Nos termos do precei-tuado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos: - A autonomia dos danos ora registados pelo Autor para fins indemnizatórios. O problema da prescrição. + 2.2.1. A autonomia dos danos ora registados pelo Autor para fins indemnizatórios. O problema da prescrição. O Autor A... intentou a presente acção em que, arvorando como causa de pedir um acidente de viação sofrido em 12 de Novembro de 1977, refere que após se ter dado por ressarcido com o recebimento da quantia de € 14.963,94, viu os seus padecimentos agravados pelo decurso do tempo, situação que o ora requerente não previu nem podia prever ao tempo em que celebrou o dito acordo. Na verdade, ligados ao acidente por nexo de causalidade, surgiram outras sequelas, traduzidas nomeadamente por agravamento das dificuldades de movimentação do membro atingido, incapacidade de extensão adequada do braço e antebraço. O Autora apresenta actualmente uma limitação funcional do referido membro entre 60% a 120%, deixando de conseguir fazer força com o braço esquerdo e de levantar e suportar pesos. Evidencia pseudo-artrose da articulação do cotovelo esquerdo à radiografia. Foi-lhe aconselhada nova cirurgia para consolidação da fractura referida. A Autora apresenta actualmente uma incapacidade permanente parcial de 35%. Tudo isto se traduzirá em despesas e incómodos. O Sr. Juiz entende que os danos em causa se filiam no mesmo acidente, o qual por traduzir a prática de um crime veria o seu prazo prescricional alargado para cinco anos – lapso de tempo já decorrido desde data da propositura da acção. Na tese do despacho recorrido os danos registados não se apresentam como novos mas como mera decorrência dos emergentes do acidente já verificados anteriormente. Não nos parece; naquele sentido não nos deve impressionar a expressão usada pelo Autor na sua PI ao falar de agravamento das consequências do acidente; na verdade o que releva em termos de novidade dos danos é a circunstância de não ser previsível à data da primitiva indemnização, que se tornassem a verificar outras consequências filiadas no mesmo acidente, ainda que traduzindo-se em idênticos sofrimentos aos já antes verificados. Lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 1994 “o carácter eventual de um dano futuro pode conhecer vários graus; desde um grau de menor eventualidade, de menor incerteza, em que não se sabe se o dano se verificará imediatamente, mas pode prognosticar que o prejuízo venha a ocorrer num futuro mediato em que mais não há que um recuo. Naquele grau de maior incerteza o dano futuro deve considerar-se previsível e equiparado ao dano certo indemnizável. Em tal grau, o dano eventual, esse que mais não seja que um receio, deve equiparar-se ao dano imprevisível não indemnizável antecipadamente (isto é só indemnizável na hipótese da sua efectiva ocorrência)”[ Cfr. CJ S Ano II, Tomo III, 1994, pags, 84 e Ac. STJ de 24-II-1999 in BMJ 484, 366.]. O que conta para imprimir carácter de novidade aos danos é também o facto de sem que seja possível imputar incúria ao Autor, ter sido considerada encerrada a primeira fase do contencioso indemnizatório a qual com toda a verosimilhança ao tempo se apresentava como definitiva. Nesta conformidade, atenta a forma como o Autor configura a relação jurídica estão em causa danos novos actuais e futuros. Estatui o artigo 498º nº 1 do Código Civil que “O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso”. Significa isto que “pode o lesado, decorridos que sejam já os três anos, mas sempre dentro do prazo de vinte anos de prescrição ordinária, pedir indemnização por novo dano que entretanto tenha surgido dentro do nexo causal, desde que o faça dentro de três anos a partir do conhecimento desse dano”[ Cfr. Dario Martins de Almeida “Manual de Acidentes de Viação, Almedina, Coimbra, 3ª Edição, 1987, pags. 285. ]. Na linha deste entendimento se vê que os danos, tal como nos são apresentados pelo Autor, não se afiguram como mero agravamento dos já verificados, mas antes como novas ocorrências em relação aos anteriores. Todavia ainda que se defendesse ou defenda esta tese não poderá a questão (que é de prescrição) ser resolvida sem produção de prova. Por último a Ré B... na sua contestação invoca como facto extintivo do direito do Autor o facto de este haver recebido da Companhia a importância de € 14.963,94 dando-se por indemnizado de todos os seus danos presentes e futuros, como pode ver-se do documento de fls. 30. Este documento consubstancia uma declaração e uma renúncia; mas se a primeira não oferece qualquer dúvida, já a interpretação da segunda carece de alguma atenção. O que deverá entender-se por válida renúncia à indemnização por danos futuros? Pela mesma não poderá entender-se um comportamento realizado sem conhecimento de causa movendo-se no campo da mera abstracção. Sempre ao acto terá em nossa óptica que presidir o conhecimento dos pressupostos de tal declaração da vontade. Significa isto que na interpretação da declaração negocial consubstanciada no documento supracitado terá que entender-se que tal renúncia só vale em relação aos danos futuros emergentes de uma determinada base factual cujos contornos são os conhecidos pelo renunciante. Ou seja e concretamente, a renúncia do Autor só é operante quanto aos danos futuros previsíveis à data da situação clínica em que o Autor se encontrava quando aceitou a indemnização da Ré B.... Mas este acordo não pode abranger, pela sua imprevisibilidade, danos novos cujo aparecimento nada faria supor[ A lógica da argumentação da Ré levaria à impossibilidade de indemnização da ocorrência posterior da morte filiada no mesmo acidente, o que é inaceitável – Cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 05-12-2000 (R. 5098/99) in Col. de Jur., 2000, 5, 120. ]. Tocamos aqui o problema geral da renúncia abdicativa a direitos. Nesse aspecto tem-se entendido e bem que de renúncia apenas se poderá falar com propriedade a partir do momento em que o direito a que se pretende renunciar se torna actual, i.e. “quando atingir um grau suficiente de apropriação privada”[ Cfr. Francisco Pereira Coelho “A Renúncia Abdicativa no Direito Civil”, Studia Iuridica, Coimbra Editora 1995, pags. 147.] de molde a poder concluir-se que foi fundamentada a posição do renunciante, neste sentido se entendendo por um direito futuro aquele que se não encontra ainda na esfera jurídica do seu titular e insusceptível de ser por este reconhecido. Nestas condições se encontram os direitos indemnizatórios emergentes das lesões que por último se manifestaram no Autor as quais sempre seriam de previsão inexigível a este último pelo que a consideração da sua eficaz renúncia sempre teria que ser encarada pela ordem jurídica com as maiores restrições. Este entendimento é aliás também aquele que se impõe pelos cânones interpretativos do artigo 236º e 237º do Código Civil. Tal entendimento é efectivamente o que seria de supor da parte de um declarante e declaratário normais, colocados na posição dos intervenientes no documento em causa. E ainda que dúvida houvesse, sempre prevaleceria o entendimento conducente ao maior equilíbrio das prestações, o qual é na nossa óptica o que deixámos explanado. Nesta conformidade o recurso procede na medida em que não é possível decidir nesta fase do processo pela verificação da prescrição, devendo o processo prosseguir a sua tramitação desde logo com a prolação do despacho saneador nos termos que se julgarem adequados sem prejuízo do que aqui se irá decidir. Poderá assim concluir-se o seguinte: 1) Releva para imprimir carácter de novidade aos danos sofridos por via de acidente de viação o facto de sem que seja possível imputar incúria ao Autor, ter sido considerada encerrada a fase do contencioso indemnizatório em que se atribuiu uma indemnização ao Autor por todos os danos actuais e os que era possível prever. 2) A declaração de quitação por parte do lesado não pode abranger, pela sua imprevisibilidade, as consequência de danos novos cujo aparecimento nada faria supor à data do acordo. 3) Só pode falar-se de renúncia abdicativa a um direito indemnizatório a partir do momento em que o direito a que se pretende renunciar se torna actual, de molde a poder concluir-se que foi fundamentada e com conhecimento de causa a posição do renunciante. 4) O lesado pode assim decorridos que sejam já os três anos/cinco anos, mas sempre dentro do prazo de vinte anos de prescrição ordinária, pedir indemnização por novo dano que entretanto tenha surgido dentro do nexo causal, desde que o faça dentro de três/cinco anos a partir do conhecimento desse dano. * 3. DECISÃO. Pelo exposto acorda-se em conceder provimento ao agravo e revogando o despacho de fls. 42 ss por não poder considerar-se verificada a prescrição, determina-se que o Sr. Juiz elabore o despacho saneador nos termos que entender adequados. Sem custas. |