Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1481/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
SUPRIMENTO
Data do Acordão: 05/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZOS CÍVEIS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL N.º 484/99, DE 10.11; ARTIGOS 5º, 6º, 7º, 8º, 20º, 288º, N.º3 E 265º, N.º2, TODOS DO CPC
Sumário: 1. A Direcção Geral de Viação carece de personalidade judiciária, quer à face da sua Lei Orgânica, constante do DL n.º 484/99, de 10.11, quer à luz do disposto no n.º2 do art. 20º do CPC.
2. A personalidade judiciária coincide sempre com a personalidade jurídica, e apenas é estendida às entidades referidas nos arts. 6º e 7º do CPC, que se mostram desprovidas de personalidade jurídica.

3. A falta de personalidade judiciária é, em regra, insusceptível de suprimento, conduzindo à absolvição da instância.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)-A.... instaurou, nos Juízos Cíveis do Tribunal de Coimbra, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra a DIRECÇÃO GERAL DE VIAÇÃO, visando a resolução de um contrato de arrendamento celebrado a 27.09.1943 e consequente despejo de um prédio urbano sito na Avenida Navarro, números 59 e 60, desta cidade.
Regularmente citada, a Ré contestou por excepção e por impugnação, concluindo pela absolvição da instância ou então pela absolvição do pedido. Em matéria de excepção, invocou a falta de personalidade judiciária e capacidade judiciária da Ré e, ainda, a caducidade do direito de pedir a resolução do contrato de arrendamento.
A Autora respondeu, concluindo pela improcedência das mencionadas excepções.
Após audiência preliminar, onde foi tentada, sem êxito, a conciliação das partes, foi proferido despacho saneador a absolver a Ré da instância, com fundamento na procedência da excepção dilatória da falta de personalidade judiciária da Ré.

A Autora não se conformou, interpondo recurso que foi admitido como agravo, pugnando pela revogação do despacho e intervenção do Estado Português.
Rematou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª-A sentença recorrida, tendo como único pressuposto de facto uma leitura muito superficial do que dispõe a Lei Orgânica da Direcção-Geral de Viação, acabou por concluir que a Recorrida não é dotada de personalidade judiciária e que, verificando-se tal excepção dilatória, não será se suprir ou regularizar a instância com a intervenção nos presentes autos do Estado Português;
2ª-A Recorrente peticiona, na presente acção, a resolução do contrato de arrendamento e despejo do prédio urbano, actualmente arrendado e utilizado pelos serviços da Direcção-Geral de Viação, tendo o pedido como causa de pedir a realização de obras pela locatária sem a devida autorização do senhorio;
3ª-Consta alegado e documentalmente provado nos autos que foi a Direcção-Geral de Viação, seus órgãos e serviços, quem outorgou o contrato de arrendamento, quem utiliza o locado e quem autorizou/adjudicou as obras que constituem fundamento da resolução peticionada, e que a Direcção-Geral de Viação é dotada, estatutariamente, de autonomia administrativa e financeira na administração do seu património;
3ª-Tais factos, apesar de oportunamente invocados pela Recorrente em defesa da improcedência da excepção dilatória invocada, foram totalmente desconsiderados pelo Tribunal a quo, pelo que, a sentença recorrida enferma de erro de julgamento quanto à selecção de facto relevante para a apreciação da excepção, tendo sido violados, nomeadamente, os arts. 264º, n.º1, 510º, n.º1, al. b), 511º, 513º, 659º, n.º2 e 660º do CPC;
5ª-Nos termos do art. 20º, n.º2 do CPC, se a causa tiver por objecto bens ou direitos do Estado, que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas entidades constituir advogado que intervenha no processo, para o que serão citadas;
6ª-A Recorrente e a doutrina entendem que o art. 20º, n.º2 do CPC conferem a qualidade de parte - e nessa medida, a personalidade judiciária (cfr. art. 5º do CPA)- às entidades autónomas que administrem ou fruem de direitos sempre que a causa tiver por objecto os referidos bens ou direitos;
7ª-No caso sub judice, resulta em termos inequívocos do estatuto legal da Recorrida que esta é dotada de autonomia na administração e fruição do se património - o qual inclui não só bens, como direitos e obrigações, tais como o direito do arrendamento objecto do presente processo - sendo certo que tal autonomia encontra-se ilustrada dos factos invocados e documentos juntos no presente processo;
8ª-Asssim sendo, considerando que o direito de arrendamento (que constitui o objecto do presente processo) se encontra na “administração e fruição” de uma entidade que, de acordo com a respectiva lei orgânica, goza de autonomia administrativa e financeira, não podemos deixar de concluir que a Recorrida é titular de personalidade judiciária ao abrigo do disposto no art. 20º, n.º2 do CPC;
9ª-O Tribunal a quo ao julgar procedente a excepção dilatória invocada e ao considerar a Recorrida como entidade destituída de personalidade judiciária violou o disposto no art. 20º, n.º2 do CPC;
10ª-Acresce que, mesmo na hipótese de não se considerar admissível a titularidade por parte da Recorrida de personalidade judiciária nos termos previstos no art. 20º, n.º1 do CPC- o que só por dever de patrocínio e sem conceder se admite- a verdade é que, ao contrário do que alega na sentença recorrida, a ausência de personalidade judiciária é susceptível de ser sanada in casu;
11ª-A letra da lei e uma interpretação sistemática das diversas normas aplicáveis apontam para a a existência, como princípio geral, de um dever de suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, e para a existência, também geral, de determinar a realização dos actos necessários à regularização da instância;
12ª-Nalguns casos a lei regulou especificadamente os actos necessários à regularização da instância, noutros casos, competirá ao juiz, no uso da discricionaridade atribuída pelo art. 265º, n.º2 do CPC, decidir quais os actos a praticar com vista à regularização da instância;
13ª-O actual art. 8º foi introduzido no CPC ao abrigo da reforma processual de 1995/1966 a qual foi enformada pela consagração do princípio da necessária prevalência das decisões de fundo sobre as de mera forma com o intuito de diminuir, tanto quanto possível, os casos de absolvição da instância e favorecer, sempre que isso seja viável, a apreciação do mérito;
14ª-Tendo como pano de fundo o mens legislatoris inerente à reforma processual de 1995/1996, temos de concluir que só por mero lapso o legislador não consagrou, de modo expresso, os actos a praticar com vista à citação dos serviços do Estado que não gozem de personalidade judiciária;
15ª-No caso sub judice, somos obrigados a concluir que, in casu, procedem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto noa rt. 8º do CPC (cfr. art. 10º, n.º2 do CC), pelo que, caso se considere que a Recorrida não possui personalidade judiciária, deve-se promover a intervenção do Estado Português nos termos e para efeitos previstos no art. 8º do CPC, aplicável ex vi do art. 10º do CC (o que, aliás, foi requerido no momento da resposta à contestação);
16ª-O Tribunal a quo ao ter concluído pela insupribilidade do pressuposto invocado e pela impossibilidade de regularização da instância, não obstante se ter requerido a intervenção do Estado Português e a, consequente, ratificação ou repetição do processado, violou os arts. 8º, 288º, n.º3 e 265º, n.º2 do CPC e os arts. 9º e 10º do CC;
17ª-A interpretação defendida nas conclusões anteriores é aliás a única que se conforma com a Constituição, na medida em que, a adopção de uma dimensão normativa diferente implica concluir que a norma que se retira dos arts. 8º, 288º, n.º3 e 265º, n.º2 do CPC e dos arts. 9º e 10º do CC é inconstitucional por violar o princípio da igualdade e o princípio da tutela judicial efectiva;
18ª-Os arts. 288º, n.º3 e 265º, n.º2 do CPC e dos arts. 9º e 10º do CC, na dimensão normativa adoptada pelo Tribunal a quo, vedam à Recorrente a possibilidade de regularização da instância quanto à falta de personalidade judiciária, situação que é expressamente admitida no caso análogo previsto no art. 8º do CPC;
19ª-Tal distinção e a diferença não se encontra materialmente fundada porque não existem quaisquer motivos que justifiquem que o legislar exclua a possibilidade de sanação da instância no caso concreto;
20ª-O “princípio do favorecimento do processo” ou o princípio “pro actione” é uma manifestação do princípio jurídico-constitucional do acesso efectivo à justiça e da tutela jurisdicional efectiva consagrado nos arts. 20º e 268º, n.º4 da CRP, o qual aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer a tutela do direito;
21ª-Assim sendo, a norma contida nos arts. 8º, 288º, n.º3 e 265º, n.º2 do CPC e dos arts. 9º e 10º do CC, na interpretação formulada pelo Tribunal a quo, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da CRP, e do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado nos arts. 20º e 268º, n.º4 da CRP;
22ª-Deve ser desaplicada esta norma em sede de fiscalização concreta nos termos do art. 204º da CRP e 70º, n.º1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional.

A Ré contra-alegou em defesa do julgado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, mas sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 690º, n.º1, 684º, n.º3 e 660º, n.º2, parte final, todos do CPC).
Tendo em conta tal regime adjectivo, e analisadas as conclusões, almeja a Agravante pronúncia sobre as seguintes questões:
1ª-Desconsideração de matéria de facto relevante à decisão sobre a invocada excepção de falta de personalidade judiciária da Ré;
2ª- Saber se a Ré goza de personalidade judiciária;
3ª-Sendo a Ré destituída de personalidade judiciária, decidir se a falta de tal pressuposto processual é susceptível de sanação;
4ª- Averiguar se certas normas, na interpretação adoptada na decisão impugnada, padecem de inconstitucionalidade por ofensa aos princípios constitucionais da igualdade e da tutela judicial efectiva.

II- 1)- Vejamos a 1ª questão.
Vem suscitada nas conclusões 1ª a 4ª.
Como proclama o n.º1 do art. 5º do CPC, a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte. Ou seja, só quem goze de personalidade judiciária pode demandar ou ser demandado em tribunal. E nos termos do n.º 2, quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária. Mas os arts. 6º e 7º estendem a personalidade judiciária a entes desprovidos de personalidade jurídica.
Para se aquilatar da natureza jurídica da Ré importa atender à respectiva Lei Orgânica constante do Decreto–Lei n.º 484/99, de 10 de Novembro, prescrevendo o art. 1º, n.º1 que “é um organismo do Estado responsável pela administração do sistema de trânsito e segurança rodoviária, cabendo-lhe estudar, promover e executar medidas adequadas à sua operacionalidade e aperfeiçoamento, bem como à uniformização e coordenação da acção fiscalizadora”. Decorre, ainda, do n.º3 do artigo, que a Ré “é dotada de autonomia administrativa e financeira”.
A Ré é um dos serviços operacionais do Ministério da Administração Interna, estando inserida na sua estrutura organizativa, como estabelece a alínea b) do art. 16º do Decreto-Lei n.º 55/87, de 31 de Janeiro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 92/92, de 23 de Maio, diploma que define a Lei Orgânica do Ministério da Administração Interna. Dentro da estrutura da Administração Pública Portuguesa, a que alude o art. 267º da Constituição, a Ré faz parte da denominada administração directa do Estado cujos serviços e actividade ao Governo compete dirigir, no exercício das suas funções administrativas e como órgão superior da Administração Pública (alínea d) do art. 199º e art. 182º da CRP). Existe uma relação de hierarquia, estando a Ré submetida ordens e instruções superiores.
A Ré, face à sua Lei Orgânica, não pode ser qualificada como uma pessoa colectiva pública dotada de personalidade jurídica, nem tal se controverte.

Mas, afinal, a susceptibilidade de a Ré ser parte em tribunal pode ser inferida de outras normas jurídicas e dos factos alegados pela Ré a que, segundo a Agravante, a decisão impugnada não deu importância?
Concretamente, e segundo a Agravante, a personalidade judiciária deveria depreender-se, para além da autonomia administrativa e financeira de que a Ré é dotada, também dos seguintes factos que alegara:
-Ter a Ré celebrado o contrato de arrendamento cuja resolução peticiona;
-Instalação no prédio locado dos serviços da Direcção Regional de Viação do Centro, desde 1943;
-Autorização de abertura de procedimento por ajuste directo para realização de obras no locado, por despacho do Director Geral de Viação, de 08.01.2003;
-Adjudicação das obras a realizar no locado, conforme despacho do Director geral de Viação, de 13.01.2003.

Em abono da sua tese, a Agravante chama, ainda, à colação o disposto no art. 27º, nas alíneas b), c) e d) do n.º2 do art. 4º, no n.º 1 e na alínea s), do n.º2 e alínea a) do n.º 2 do art. 7º, todos da Lei Orgânica da Ré.
A este respeito, prevê o art. 27º que “o património da DGV é constituído pela universalidade dos seus bens, direitos e obrigações”. As alíneas b), c) e d) do art. 4º estabelecem a competência do Director–Geral, a quem cabe “assegurar as relações da DGV com outros departamentos do Estado e com quaisquer entidades públicas e privadas, podendo corresponder-se com autoridades judiciais, administrativas, militares ou policiais, representar a DGV junto de outros serviços e entidades nacional, estrangeiram e intencionais, adjudicar e contratar estudos, obras, trabalhos, serviços e fornecimentos de materiais e equipamentos necessários ao funcionamento da DGV, dentro dos limites legais”. As citadas alíneas do art. 7º, estipulam que à Direcção de Serviços de Administração da Ré, compete “assegurar os procedimentos legais relativos às aquisições centralizadas de bens e serviços, às adjudicações de obras e aquisição de direitos, bem como contratação de arrendamentos”.

A nosso ver, é por demais evidente que os factos alegados pela Autora, acima expostos e apesar de provados, são de todo irrelevantes ao conhecimento da invocada excepção de falta de personalidade judiciária da Ré, como a existência de tal pressuposto processual não pode extrair-se das normas citadas, que, afinal, pormenorizam a autonomia administrativa e financeira de que a Ré é dotada. Em parte alguma da citada Lei Orgânica vem consagrada a personalidade judiciária da Ré, permitindo apenas ao Director-Geral “corresponder-se com autoridades judiciais”. Dispondo a DGV de “um património constituído pela universalidade dos seus bens, direitos e obrigações”, tal não significa que estejamos perante um património autónomo semelhança à herança jacente, sem titular determinado, a que a alínea a) do art. 6º estende a personalidade judiciária. Aliás, sublinhe-se, a decisão recorrida não deixou de atentar na autonomia administrativa e financeira da Ré. Os patrimónios autónomos, a que alude a lei adjectiva, abrangem as situações em que existe uma massa patrimonial sem titular definido, mas carecendo de um regime jurídico adequado a uma representação que lhes permita actuar validamente e com eficácia em tribunal.
Improcede, destarte, a argumentação vertida nas conclusões 3ª e 4ª.


II-2)- Analisemos, agora, a 2ª questão.
Entende a Agravante que é de reconhecer personalidade judiciária à Ré, ex vi do estatuído na Lei Orgânica da Ré, em conjugação com o disposto no n.º2 do art. 20º do CPC.
A este respeito, o n.º2 do art. 20º reza o seguinte:
“Se a causa tiver por objecto bens ou direitos do Estado, mas que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas constituir advogado que intervenha no processo juntamente com o Ministério Público, para o que serão citadas quando o Estado seja réu; havendo divergência entre o Ministério Público e o advogado, prevalece a orientação daquele”.
Como flui do título aposto nesse artigo, diz o mesmo respeito à representação do Estado em tribunal, impondo a citação daquelas entidades sempre que seja instaurada acção contra o Estado. Nada significa sobre a personalidade judiciária dessas entidades autónomas ou sobre a susceptibilidade de ser, por si sós, parte em processo ou sequer de intervir como parte acessória. A parte acessória é titular de uma situação jurídica conexa com o objecto do processo, ocupando a posição de auxiliar de uma das partes principais. Na hipótese do n.º2 do art. 20º, o conflito de interesses respeita apenas ao Estado demandado como réu e é na sua esfera jurídica que se irá reflectir a decisão judicial, sendo tais entidades autónomas citadas como meros auxiliares do Ministério Público na representação judiciária do Estado. A lei confere, pois, a essas entidades autónomas apenas o poder de representar em tribunal do Estado, em acção contra ele movida.
Assim sendo, é erróneo concluir-se, a partir dessa norma, que a Ré goza de personalidade judiciária, apesar ser dotada de autonomia administrativa e financeira, e o contrato de arrendamento, cuja resolução é pedida, ter sido por si celebrado na qualidade de arrendatária.
Em suma, a personalidade judiciária da Ré teria de ser buscada em norma expressa que a atribuísse, designadamente na respectiva Lei Orgânica, ou, então, nos arts. 5º e 6º do CPC que conferem tal personalidade. Tal como emana do Direito a personalidade jurídica das pessoas colectivas, que estabelece um centro de imputação de relações jurídicas, de direitos e deveres, património e pessoal e órgãos próprios. E já vimos que, apesar de não gozar de personalidade jurídica, também não lhe pode ser estendida a personalidade judiciária, porque a Ré não pode ser qualificada como um património autónomo, semelhante à herança jacente, cujo titular não está determinado.
Improcedem, em consequência, as conclusões 5ª a 9ª, inclusive.

II-3)- Atentemos na 3ª questão.
Segundo a Agravante, a entender-se que a Ré é destituída de personalidade judiciária, então impunha-se que o Tribunal providenciasse pelo suprimento de tal pressuposto processual, promovendo-se a intervenção do Estado Português, tal como foi requerido oportunamente.
A este respeito, e ao abrigo da alínea b) do n.º1 do art. 508º, “findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do n.º2 do art. 265º”.
Estabelecendo o citado n.º2 que “o juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los”.
Mas a falta de personalidade judiciária da Ré é susceptível de suprimento?
Argumenta a Agravante que a regularização da instância encontra apoio nos comandos dos arts. 8º, 288º, n.º3, 265º, n.º2.
O art. 8º prescreve que “a falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representações pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado”, decorrendo do n.º3 do art. 288º que “as excepções dilatórias só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º2 do art. 265º; ainda que subsistam, não terá lugar a absolvição quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da excepção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte”.
Interpretando tais normas adjectivas, conclui a Agravante ser sanável a falta de personalidade judiciária da Ré. Desde já se adianta que não concordamos com tal tese. Tal como vem salientado no preâmbulo do D-L. n.º 329-A/95, de 12.12, “no mesmo sentido de privilegiar a decisão de fundo, imporá consagrar, como regra, que a falta de pressupostos processuais é sanável. Assim, para além de expressamente se consagrar, como princípio geral, que incumbe ao juiz providenciar oficiosamente pelo suprimento das excepções dilatórias susceptíveis de sanação, praticando os actos necessários à regularização da instância, ou, quando estiver em causa a definição das partes, convidando-se a suscitar os incidentes de intervenção de terceiros adequados, prevê-se especificadamente a possibilidade de sanação da falta de certos pressupostos processuais, até agora tida como insanável. Assim, prescreve-se a possibilidade de sanação da falta de personalidade judiciária das sucursais, agências ou filiais…”
Mas do regime plasmado no n.º n.º3 do art. 288º e no n.º2 do art. 265º, e atendendo à natureza do pressuposto processual da personalidade judiciária, não se pode inferir que tal pressuposto, regra geral, seja sanável. Na lição do Prof. Castro Mendes , “a personalidade judiciária ocupa um lugar muito especial entre os pressupostos processuais (como a personalidade jurídica entre os “status”): é o pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos relativos às partes” e, mais adiante, “se faltar a personalidade judiciária, não há parte; falta em rigor o ramo da instância em que essa devia funcionar como sujeito”. Dir-se-á, pois, que, regra geral, a falta da personalidade judiciária é insanável , admitindo-se o seu suprimento nos casos expressamente previstos na lei, como na pendência da acção pode a parte adquirir a personalidade judiciária, cessando, assim, a causa do vício . Na reforma do processo civil de 95/96, admitiu-se, no art. 8º, a sanação da falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representações, como as hipóteses previstas no n.ºs 2 e 3 do art. 371º configuram sanação da personalidade judiciária. Já, porém, era defendida doutrinalmente a sanação acolhida no art. 8º . As hipóteses previstas constituem excepção à regra geral do não suprimento da falta de personalidade judiciária, daí que o art. 8º, como norma excepcional não admita aplicação analógica, como decorre do art. 11º do CC.
Conclui-se, assim, tal como na sentença impugnada, que a falta de personalidade judiciária da Ré é insuprível.

II-4)-Examinemos, por fim, a 4ª e última questão.
As normas dos arts. 8º, 288º, n.º3 e 265º, n.º2 estão feridas de inconstitucionalidade material, na interpretação conferida pela decisão recorrida?
Na sentença impugnada concluiu-se, pois, pela falta de personalidade judiciária da Ré e insusceptibilidade de suprimento de tal falta. Tal julgamento, na opinião da Agravante, viola o princípio da igualdade previsto no art.13º e o da tutela jurisdional efectiva previsto nos arts. 20º e 268º, n.º4, todos da CRP.
A norma do art. 8º prevendo a sanação da falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representações, é de carácter excepcional, porque, regra geral, a falta de tal pressuposto é insanável. Tais entidades estão já dotadas de personalidade judiciária (art. 7º), e os efeitos da decisão do pleito em que demandem ou sejam demandadas são oponíveis à sociedade que é o verdadeiro sujeito da relação jurídica. São entidades que representam em juízo, por força da lei, a sociedade ou pessoa colectiva no âmbito local enquanto a sociedade ou pessoa colectiva se lhe não substituir na acção . A Ré, diversamente e como vimos, enquanto serviço operacional do Ministério da Administração Interna, não goza de personalidade judiciária, uma vez que não pode demandar ou ser demandada em tribunal, e gozando de autonomia administrativa e financeira, apenas pode intervir no processo, em que é parte o Estado, como representante auxiliar do Ministério Público, e subordinado a este em caso de divergência de orientação, como estabelece o n.º2 do art. 20º. Não se encontra, pois, a Ré, face ao respectivo Ministério, na mesma posição em que estão as entidades mencionadas no art. 8º face à sociedade ou pessoa colectiva, pelo está materialmente justificada a diferença que obsta à sanação da falta de personalidade judiciária da Ré. São situações desiguais, num plano valorativo, a que teria de corresponder um tratamento desigual, não sendo, por isso, arbitrária a solução adjectiva. Interpretado, pois, o art. 8º, por forma a excluir da sua previsão a sanação da falta de personalidade judiciária da Ré, não ocorre qualquer violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP.

Mas a interpretação feita dos arts. 288º, n.º3 e 265º, n.º2 fere o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva?
Vem tal princípio consagrado, nomeadamente, no art. 20º da CRP. Ora, não sendo regularizada a instância, apesar do disposto nos artigos citados que obriga o juiz a promover oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, não se vislumbra de que jeito, no caso ajuizado, resulte ofendido tal princípio constitucional que garante a todos o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. A interpretação feita de tais normativos não belisca minimamente todo o complexo de direitos e aspectos que tal princípio fundamental envolve . O direito à tutela jurisdicional efectiva concretiza-se fundamentalmente através de um processo jurisdicional equitativo. O direito à tutela jurisdicional não se confunde com o direito de obter, a todo o transe, uma decisão favorável, antes se reconduz ao direito de obter uma decisão fundada no direito sempre que se verifiquem os requisitos legalmente exigidos. Aliás, a sentença impugnada ao absolver a Ré da instância, por falta do aludido pressuposto insanável, não afectou a acção em si, não negou a existência da acção, apenas afirmando que a acção, caso exista, não pode fazer-se valer naquele processo, nada obstando a que se faça valer, logo a seguir ou mais tarde, noutro processo. A absolvição da instância, fundada na invalidade da relação processual, não extingue a acção, só diferindo o seu exercício (n.º1 do art. 289º). A decisão impugnada, na dimensão interpretativa dos normativos citados e recusando a regularização da instância, não ofendeu, pois, o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.
Improcedem, em consequências, as conclusões 17ª a 22ª.

III- Nos termos e pelos motivos expostos, acorda-se em:
a)- Negar provimento ao recurso.
b)- Confirmar o saneador-sentença impugnado.
c)-Condenar a Agravante nas custas do recurso.
COIMBRA,

(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj.- Des. Helder Roque)

(2º Adj.- Des. Távora Vítor)