Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
118/07.9YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
Data do Acordão: 05/02/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE RECUSA DE PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES
Decisão: DEFERIDO O PEDIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 135º DO C. P. PENAL
Sumário: Face à invocação do sigilo bancário, o juiz ou considera tal recusa ilegítima e então ordena o depoimento sobre o que lhe é perguntado, ou a considera legítima (com cobertura legal) e então impõe-se a imediata abertura do incidente perante o tribunal superior.
Decisão Texto Integral: Acordam, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. – Relatório.

O Exmo. Senhor Juiz do Tribunal Criminal da Figueira da Foz, suscitou o incidente de levantamento do segredo profissional, por haver sido deduzida oposição e escusa, pela instituição bancária ”A...” à colaboração que lhe foi requestada de prestação de informações e elementos respeitantes a movimentos de carregamento de um telemóvel com o nº 914443965 de conta bancária existente na instituição requerida.

A instituição bancária havia declinado o pedido de colaboração com o fundamento no segredo bancário, inspirando-se e amparando-se em dispositivo legal vigente, qual seja o artigo 78º do DL nº 298/92, de 31 de Dezembro.

Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto emitiu douto parecer em que opina que:”no caso dos autos os elementos solicitados destinam-se a um processo em que se pretende averiguar um crime de furto qualificado, previsto no art. 204º, 1, al. f) do Código Penal e punido com pena de prisão até 5 anos.

Ora o interesse que se prossegue com a informação solicitada à instituição bancária é o da descoberta da verdade e da boa administração da justiça penal, (descoberta dos agentes de um crime e sua punição), interesse público, que nos parece ser manifestamente superior ao tutelado pelo segredo bancário que tem natureza privada.

Daí que, se nos afigure, ser de dispensar a A... do dever de sigilo bancário no caso dos presentes autos e, consequentemente, fornecer ao Ministério Público os elementos pretendidos – art. 135.º nº 3 do Código de Processo Penal”.

II. – Elementos Adjuvantes para a decisão.

«- Por ofício dirigido ao serviço do Ministério Público, junto do tribunal da Figueira da Foz, a A..., declinou o pedido que lhe havia sido endereçado pelos mencionados serviços para prestarem informações acerca do titular da conta a partir da qual terão sido efectuados carregamentos no IMEI nº 354321006571337, relativo ao nº de telefone +351913850405;

- Requerimento do Ministério Público – cfr. fls. 20 a 23 – cujo teor se deixa transcrito.

«Por ofício datado de 30.01.2007, o Banco solicitado respondeu que não poderia satisfazer o requestado por o pedido não se enquadrar nos crimes de catálogo que refere (cheques sem provisão – art. 13º-A do Decreto-Lei nº 454/91, de 28. 12; Crime de tráfico de estupefacientes – art. 60º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01; crime de branqueamento de capitais – art. 9º da Lei nº 11/2004, de 27.03; crimes elencados no nº1 do art. 1º da Lei 5/2002, de 11.01 – Combate á Criminalidade Organizada e Económico-Financeira).

- Dispõe o artigo 78º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo D.L nº 298/92, de 31/12 (doravante designado por RGICSF), que os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos ou outras pessoas que lhes prestem serviço a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, estando, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.

Fora dos casos em que há autorização do cliente, transmitida à instituição, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados nos termos previstos na lei penal e de processo penal (cfr. art. 79º, nºs 1 e 2, al. d), do referido diploma legal).

Assim a obtenção de quaisquer elementos nesse domínio deverá fazer-se mediante autorização do respectivo titular da conta ou por decisão do tribunal superior (cfr. artigos 135°, nos 2 e 3 e 182°, n° 2, ambos do Código de Processo Penal).

Em face do regime consagrado no artigo 135º do C.P.P, se for invocada escusa para a não prestação das informações, cabe à autoridade judiciária averiguar da legitimidade do fundamento e, caso conclua pela sua ilegitimidade, ordenar que as mesmas sejam prestadas; caso se conclua pela legitimidade da escusa deve ser suscitado perante o tribunal imediatamente superior o competente incidente, o qual, após ponderar os interesses em questão, determinará ou não a quebra do segredo bancário.

O interesse da boa administração da justiça é manifestamente superior ao da manutenção de um clima de confiança na banca. Daí que, visando-se em processo crime a averiguação de factos susceptíveis de levar à incriminação de agente do crime, se justifique que a banca preste a informação solicitada para tal efeito.

Perante este quadro legal, perfilhamos o entendimento que ao tribunal de primeira instância apenas cabe a verificação dos pressupostos formais da escusa deixando ao tribunal superior a aferição sobre a relevância dos motivos invocados, a equação dos interesses em presença e a decisão sobre a prevalência do interesse superior.

Nos presentes autos de inquérito afigura-se, nos termos fácticos supra expostos que aqui damos por reproduzidos), de toda a utilidade a recolha de elementos respeitantes às contas bancárias de que possam ser titulares os indivíduos identificados nos autos.

Por seu turno, as informações que importam obter juntando cópia dos códigos de utilização de cartões Multibanco utilizados no carregamento do telemóvel em causa, de fls. 29 a 31, solicitar informação sobre quais as entidades bancárias e os números de conta de onde foram efectuados os carregamentos nos cartões de telemóvel utilizados desde 17.06.2006, após o que se solicitará à SIBS a sua decifração e posterior informação) contendem com elementos sujeitos a segredo bancário, havendo por tal fundamento legítimo para a verificação de escusa.

Estão, assim, reunidos os pressupostos legais para que seja suscitado perante o Tribunal da Relação de Coimbra o incidente de quebra de segredo bancário.

Pelo exposto, em conformidade com as disposições legais supra citadas, o Ministério Público requer que seja suscitado, perante o Tribunal da Relação de Coimbra, o incidente de quebra de segredo bancário, relativo às contas bancárias associadas às referências de carregamento constantes de fls.38 devendo aquela instituição fornecer a identidade do titular das contas de onde foram realizados os carregamentos em causa”.

- Despacho do Mmo. Juiz de Instrução Criminal, cujo teor se transcreve, em seguida.

“Investiga-se no presente inquérito a prática de eventual crime de furto de telemóvel, sendo que a informação sobre a identificação da conta bancária domiciliada na A..., a partir da qual foi efectuado um carregamento desse telemóvel, pode contribuir decisivamente para a descoberta do eventual autor dos factos denunciados.

Solicitada à A... a identificação de tal conta bancária negou-se tal instituição a fazê-lo. Invocando para tanto o respectivo sigilo bancário (cfr. fls. 54).

Evidentemente que a A... tem legitimidade formal e substancial para recusar a prestação da informação solicitada. Face ao segredo bancário a que estão sujeitas as instituições de crédito e sociedades financeiras. Nos termos do disposto no art. 78º do DL. Nº 298/92, de 31.12.

O segredo bancário comporta, porém, derrogações, como resulta do disposto nos arts. 135º, nº 3 do Código de Processo Penal e 36º, nº 1 do Código Penal, quando se dirija ao cumprimento de um dever ou à satisfação de um interesse preponderante.

No caso concreto, investiga-se a eventual prática de um crime de furto, sendo que a informação bancária solicitada e recusada pode contribuir decisivamente para a descoberta do eventual agente de tal crime.

Entendemos, pois, que no conflito entre o direito dos clientes de instituições bancárias à confidencialidade dos seus dados bancários, e o interesse público na boa administração da justiça e à descoberta dos agentes de um crime e sua punição, deverá prevalecer este último.

Assim, não obstante se considerar a escusa legitima, entendemos que, no caso concreto, a quebra do segredo profissional se mostra justificada face às normas e princípios aplicáveis à lei penal. Nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante.

Pelo exposto, decido suscitar perante o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra o incidente a que se refere o art. 135º, nº 3 do Código de Processo Penal, com vista a que a caixa A... preste as solicitadas informações».

III. – Fundamentação.

Na doutrina espanhola, JiMENEZ DE PARGA define o secreto bancário como sendo «eI conocimiento que posee com exclusividad un Banco en reIación com Ias operaciones que com éI realiza un cliente». EI conocimiento exclusivo de estos datos impone una determinada actitud de discreción, que corresponderá a aquella persona que, ajena com anterioridad a su existência, haya adquirido conocimiento de éstos, actitud misma que se traduce al tiempo, por un lado, en un deber de mantener silencio sobre estos datos y, por outro, en un derecho a negar su comunicación a terceros, salvo disposición legal expresa en contra o interés privado superior que lo justifique»1.

“Para uma parte da doutrina, o segredo bancário constitui uma manifestação do direito fundamental da intimidade da vida privada, nele encontrando agasalho constitucional, […] havendo autores que defendem uma concepção estrita do direito à intimidade, reduzido aos aspectos pessoais, o acesso a elementos/documentos protegidos pelo segredo bancário é visto como uma “penetração” na “zona mais estrita da vida privada”, enquanto outra aparte defende “uma concepção ampla do direito à intimidade, no sentido de nele estarem (também) abrangidos os dados relativos à situação económica de uma pessoa, facilmente estabelece a relação entre o segredo bancário e aquele direito. Neste caso, o segredo bancário, concebido como manifestação da intimidade económica constitucionalmente protegida, apresenta-se como instrumento de garantia directo daquele direito”.

Em sentido diametralmente oposto, autores que, entre nós, mais acerrimamente recusam associar o segredo bancário ao direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, destaca-se Saldanha Sanches. Severamente crítico quanto ao resultado da actividade interpretativa do conceito constitucional (e material) de intimidade da vida privada levada a cabo pelo nosso TC, em acórdão já analisado, este autor advoga uma distinção entre a intimidade da vida pessoal e familiar e a reserva que pode acompanhar a vida privada, consideradas como duas esferas que fariam parte integrante de um direito mais amplo à privacidade. Na perspectiva deste autor, a intimidade, apelidada de conteúdo essencial do dito direito à privacidade, apenas abrange “questões claramente íntimas no sentido de questões conexas com as escolhas e vivências mais impregnadas de subjectividade de um qualquer cidadão”, dela se excluindo, por princípio, os aspectos ou reflexos de natureza patrimonial. Com base nesta delimitação, defende o autor que) segredo bancário, embora integrado e beneficiando da protecção conferida pelo (amplo) direito à privacidade, “não é, não pode ser, uma concretização do principio constitucional do direito à intimidade”.

Recentemente, alguns sectores da doutrina, que, por princípio, recusam o associar o segredo bancário – e os dados que se encontram a seu coberto – ao direito fundamental à intimidade, tendo em conta o fenómeno crescente informatização dos dados tributários, tendem a transladar a tutela constitucional desses mesmos dados do direito à intimidade para o direito à liberdade informática ou também designado direito à autodeterminação informativa (Recht auf informationelle Selbstbestimmung).

[…] O segredo bancário, por um lado, está associado a interesses públicos do regular funcionamento da actividade bancária e do sistema financeiro, seja como instrumento fundamental no domínio do incentivo do aforro (artigo 101.º da Constituição da República Portuguesa) ou ainda na prevenção de distorções ao funcionamento do mercado. Por outro lado, no que diz respeito à categoria de interesses privados, quer na perspectiva do cliente bancário, como elemento fundamental do direito à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.0) e suportado ainda (constitucionalmente) no direito ao livre desenvolvimento da personalidade e, subsidiariamente, no direito geral de personalidade2/6, quer na perspectiva da instituição bancária e financeira, enquanto manifestação da liberdade de iniciativa económica privada artigo 61.º, nº 1) e do direito da personalidade ao bom nome e reputação (artigo 26º)2.

Na legislação indígena “os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços” –nº 1 do art. 78º do DL 298/92, de 31 de Dezembro – estando “designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias” – nº2 do citado preceito.

Esta regra pode ser excepcionada, nos termos do artigo 79º, nº2, alíneas d) e e), quando, respectivamente, possam ser revelados (os preditos elementos), nos termos previstos na lei penal e processo penal – al.d) – e “quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo”.

A lei consagra o dever à reserva da vida privada, onde soe incluir-se o direito ao dever de reserva das instituições de crédito relativamente aos dados pessoais e de porte financeiro de cada cidadão. Este direito, como ainda há pouco tempo fazia notar o comentarista político, Nuno Brederode Santos, nas crónicas que assina dominicalmente no “Diário de Noticias”, é um direito que tem que estar compaginado com um dever, qual seja o de que o titular do direito não haja infringido nenhuma regra ou norma que o coloque em contravenção ou antinomia com a lei penal. A não ser assim o direito a não cometer crimes que qualquer cidadão deve observar, para que possa ser estar concertado com o viver societário, ficaria frustrado pois que o crime cometido poderia ficar impune, dado o dever de sigilo relativamente ás contas que detivesse numa instituição bancária. (Pensamos não estar a defraudar o sentido do escrito, dada a impossibilidade de nos socorrermos da crónica). Mais recentemente escreveu este jurista (DN, de 8.X.2006), numa crónica intitulada “Dilema do senhor Director”, “importa que ele sinta à sua volta a protecção e o cerco de uma cultura de exigência civil. No Estado ou na empresa, tanto faz. Uma cultura de combate ao poder burocrático. De transparência no exercício dos inevitáveis poderes discricionários. De dessacralização das origens dos meios de fortuna. De recusa do sigilo bancário como quase direito da personalidade. De operacionalidade efectiva da policia económica, dos tribunais, da administração fiscal.”

Também a nós nos parece, na esteira do que vimos defendendo desde 1992, que ocorre no caso do direito à reserva relativa aos elementos bancários de alguém que está indiciado numa investigação criminal, um manifesto exagero na tutela ilimitada deste direito pessoal, que poderia redundar num abuso de direito, atentos os valores em equação. De um lado a defesa de valores que a lei tutela e protege através do ordenamento jurídico-penal, por outro o direito de alguém poder obstaculizar e/ou ir adiando uma investigação, a coberto e sob o pretexto de reserva, traduzido na negação ao acesso às suas contas bancárias, onde pode ter acumulado o produto da actividade criminosa sob investigação.

Já em 1992, defendíamos que os valores da investigação criminal se deviam sobrepor aos valores dos particulares. O argumento em que nos ancorávamos sustinha-se no paralelismo que encontrávamos com outros contratos inter-individuais, v.g. contratos de compra e venda de imóveis, constituição de sociedades comerciais de mútuo com escritura pública que são acessíveis a qualquer cidadão, necessitando tão só de solicitar uma certidão no Cartório Notarial em que essas escrituras foram realizadas. Como assim para este tipo de negócios, porque não para um contrato de depósito celebrado entre um particular e uma instituição bancária? Porquê uma maior reserva para um contrato depósito e outros tipos de negócios ou contratos que podem ser do conhecimento de qualquer cidadão? O que tem de peculiar e especial o dinheiro ou valores depositados num banco relativamente ao dinheiro com que são adquiridos outros bens imóveis? Muitas mais perguntas poderiam ser equacionadas, e todas em sentido idêntico, ou quiçá mais especulativas ou provocadoras mas fiquemo-nos por esta amostragem.

A vigência deste anacronismo ético-institucional ilaqueia e dessora a actividade investigativa dos órgãos de policia criminal e inviabiliza ou esmorece a acutilância e profundidade dos processos em que estão em causa crimes de natureza económico-financeira, nomeadamente de branqueamento de capitais, e os ilícitos que lhe subjazem, tráfico de droga, tráfico de armas, tráfico de seres humanos, prostituição, auxilio à imigração ilegal, corrupção, evasão e fraude fiscais e outros, alguns dos quais ainda não catalogados.

Perante esta pletora de criminalidade surge-nos o sigilo bancário, na acepção quase totalitária como vem sendo defendida, como um escolho e um empeço que radicando na luminosidade valorativa do liberalismo e o pós-modernismo teima em manter e perpetuar, para salvaguarda e gáudio de alguns.

Não se constitui, para nós, como questão dilemática, como resulta evidente do exposto supra, que a prevalência dos valores da investigação criminal superam os valores privados que se pretendem resguardar com o sigilo bancário.

À guisa de parêntesis, seja-nos permitido manifestar a estranheza pelo procedimento estabelecido no ordenamento processual penal para a entidade competente para a decisão do incidente de dispensa de recusa de quebra do sigilo bancário. Cometer-se a decisão de um incidente com esta singela e pífia importância a um colectivo de três juízes de um tribunal de recurso é, no mínimo risível e pasmosa.

Nem se entende que a administração fiscal (ou se adrega, entende) para quebrar o sigilo bancário se possa socorrer de um ditame de um tribunal de primeira instância – cfr. art. 146º-C do Código de Procedimento e de processo Tributário -, isto quando não o é por iniciativa do director-geral dos Impostos ou da alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo –cfr. Art. 63º-B da Lei Geral Tributária, e uma entidade jurisdicional que tutela o inquérito tenha de se socorrer de um tribunal de 2ª instância para conseguir idêntico desiderato. Só a miopia de um legislador acuado e acaudatado a valores extremos de liberalismo serôdio e caduco pode justificar tamanha incongruência para com a perseguição de ilícitos criminais.

Não sucede assim em legislações avançadas, mas que seja pela dignificação dos tribunais.

Quanto à competência do tribunal para determinar a quebra da recusa considerada ilegítima, pronunciou-se em recente aresto o nosso mais Alto Tribunal, de que se respinga o troço sequente:«[O tribunal da Relação] — ou aceita como legítima a escusa e aí o respondente deve silenciar sobre os factos sigilosos de que tiver conhecimento, sob pena de se sujeitar às penas correspondentes ao crime de violação de segredo do artigo 195.º do Código Penal;

— ou entende que a escusa é ilegítima e então ordena, após as necessárias averiguações, que o respondente deponha sobre o que lhe é perguntado (art. 135.º, nºs 2 e 5), cometendo o crime de recusa de depoimento se o não fizer (art. 360.º, n.º 2, do C. Penal).

— ou suscita ao tribunal competente que ordene a prestação de depoimento, se tiver que se quebrado o segredo profissional (art. 135.º, nºs 2 e 5).

Então é convocado o n.º 3 do preceito, que se debruça sobre uma segunda fase do incidente de prestação de depoimento em casos de segredo profissional e que surge num momento posterior, ou seja, quando a autoridade judiciária, aceitando que a escusa de depor é legítima, pretende, contudo, que, dado o interesse da investigação, se quebre o segredo profissional obrigando-se o escusante a depor.

A decisão sobre o rompimento do segredo é da exclusiva competência de um tribunal superior ou do plenário do STJ se o incidente se tiver suscitado perante este tribunal.

Esta questão não é nova, tendo já sido apreciada por este Supremo Tribunal de Justiça que, como lembra o Ministério Público na Relação, decidiu (AcSTJ de 6.2.2003, proc. n.º 159/03, em que foi 1.º adjunto o aqui relator) neste mesmo sentido. Nesta mesma direcção apontam Simas Santos e Leal-Henriques (Código de Processo Penal Anotado, I volume, 2.ª edição, págs. 742) citados naquele aresto.

Também neste sentido se pronunciou um outro acórdão deste Tribunal (AcSTJ de 28.6.2006, proc. n.º 2178/06-3), com o seguinte sumário:

«1 — O dever de sigilo bancário é uma manifestação da tutela do direito ao bom nome e reputação e reserva da vida privada, reconhecido pelo art. 26.º, n.º 1, da CRP, e visa proteger as relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes, tidas como indispensáveis ao normal desenvolvimento do modelo económico adoptado.

2 — Como qualquer direito constitucionalmente consagrado, só pode ser restringido para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, conforme o disposto no art. 18.º, n.º 2, também da Lei Fundamental.

3 — O dever de sigilo por parte de entidade bancária e seus funcionários só pode ser postergado, para além dos casos em que o próprio cliente consente na sua dispensa, quando um tribunal superior — tribunal da Relação ou STJ — decida pela sua quebra, verificada que seja a indispensabilidade da medida para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos axiologicamente mais valiosos e, em contraponto, o direito ao bom nome e à liberdade e segurança por parte dos ofendidos e o correspondente dever de colaboração com a realização da justiça, com vista ao cumprimento do dever de punir.»

Ora, como consta dos autos, o escusante (M... B...), assentando em que os elementos solicitados, nos termos dos art.s 78.º e 79.º do diploma que regulamenta o regime geral das instituições de crédito, se encontram no âmbito do segredo bancário, não sendo susceptíveis de serem revelados sem autorização do cliente, negou-se a prestar as informações bancárias que lhe foram solicitadas relativamente a tal conta.

O Senhor Juiz teve explicitamente por legítima a recusa e socorreu-se do incidente perante o tribunal superior. E face à invocação de tal sigilo e o reconhecimento forçoso de que a recusa tinha cobertura legal impunha-se, como se viu, a imediata abertura do incidente perante o tribunal competente — no caso a Relação.

E, sendo assim, não tem fundamento legal o caminho seguido pelo acórdão recorrido ao não conhecer de tal incidente e considerar como ilegítima a recusa, havida por legítima pelo Juiz que suscitou o incidente, numa posição que esvazia de conteúdo a prescrição do n.º 3 do art. 135.º do CPP («3. O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento»)».3

No caso concreto a investigação do crime que se pretende levar a efeito e que se encontra peada pela recusa avançada pela instituição requerida tem prevalência relativamente ao resguardo do sigilo de identidade do respectivo titular, pelo que deverá ser ordenado o seu levantamento, com a consequente obrigatoriedade da instituição requerida disponibilizar todos os elementos solicitados pela autoridade judiciária competente para obtenção de todos os elementos que permitam o apuramento da responsabilidade criminal do autor(es) do ilicito denunciado.

III. – Decisão.

Na defluência do exposto, decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em.

- Julgar justificado o pedido de dispensa de recusa de levantamento do sigilo bancário oposto pela instituição bancária requerida, ordenando que sejam fornecidos todos os elementos que no âmbito deste processo de inquérito lhe venham a ser requestados pela autoridade judiciária competente.

- Sem tributação.