Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
833/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: BORDALO LEMA
Descritores: BOMBEIRO VOLUNTÁRIO DO QUADRO ACTIVO COM VINCULO LABORAL
Data do Acordão: 10/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: DL Nº 421/83, DE 2/12 E ARTº 45º DA LCT .
Sumário: I – Ao contrário dos bombeiros profissionalizados, a actividade de bombeiro voluntário não emerge duma relação de emprego, nem do contrato de trabalho, mas sim do voluntariado, ou seja, de uma disponibilidade livremente manifestada e livremente aceite pela corporação .
II – Por razões de interesse público, a valência/qualidade de “ bombeiro voluntário “ deverá prevalecer sobre a de trabalhador contratado, decorrente de um contrato privado .
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. A... veio instaurar contra a B... a presente acção declarativa com processo comum, em que pede que a Ré seja condenada (a) a ver declarado nulo o processo disciplinar que lhe instaurou e, consequentemente, (b) nula e de nenhum efeito a sanção que lhe foi aplicada de suspensão do trabalho pelo período de 90 dias com perda de vencimento e, bem assim, (c) a pagar-lhe a quantia global de 13.470,87 Euros a título de retribuições e de subsídio de alimentação de Janeiro a Março de 2002, prémios não pagos nas férias e subsídios de férias e de Natal de 1997 a 2001 e ainda trabalho extraordinário prestado no período de 23.12.1996 a 28.12.2001, (d) tudo acrescido de juros de mora.
Alegou para tanto, em síntese e de relevante, que trabalha por conta, sob a autoridade e direcção da Ré desde 01.11.1983, desempenhando as funções de "motorista", mediante retribuição; que no dia 28.12.2001, a Ré comunicou-lhe a sua suspensão pelo período de 90 dias, com início em 01.01.2002 e termo em 31.03.2002, não lhe dando mais trabalho a partir de 01.01.2002 até à data da propositura da acção; que a Ré não lhe enviou qualquer nota de culpa nem a suspensão antes referida foi precedida de processo disciplinar; que desde 01.01.1997 recebeu da Ré mensalmente um prémio que, todavia, não lhe foi pago como componente da retribuição de férias e dos subsídios de férias e de Natal; e que a partir de 23.12.1996, por ordem e exigência da Ré, passou a trabalhar integrado num horário com escalas de serviço e prestou-lhe trabalho suplementar, sem que a Ré lhe tenha pago as retribuições correspondentes.
Após audiência prévia, a Ré veio contestar a acção, dizendo, em resumo e no essencial, que e parte ilegítima em relação aos factos que se prendem com o processo disciplinar instaurado ao A. pela hierarquia do Corpo de Bombeiros e no âmbito das relações jurídicas existentes entre ambos, sendo a Ré alheia ao processo disciplinar e aos factos nele versados e à respectiva sanção; que, ainda que assim fosse, a sede própria para aquilatar da validade ou justeza daquele processo disciplinar era o prévio recurso hierárquico necessário; que o Tribunal não está vocacionado para dirimir litígios no âmbito da prestação voluntária do trabalho; que a importância entregue ao A. a título de prémio constitui um suplemento do subsídio de alimentação; que não pagou ao A. as retribuições referentes ao período de 01.01.2002 a 31.3.2002 porque este não lhe prestou, durante esse período, qualquer serviço; que todo o trabalho suplementar cujo pagamento o A. peticiona foi por ele prestado na qualidade de bombeiro voluntário vinculado ao Corpo Activo, sendo que a Ré sempre retribuiu a prestação de trabalho do A. decorrente da sua qualidade de assalariado.
O A., na resposta à contestação, manteve a posição aduzida na petição, concluindo pela legitimidade da Ré.
Após julgamento, foi proferida sentença em que se decidiu julgar parcialmente procedente a acção, declarando-se nulo e de nenhum efeito o processo disciplinar instaurado ao A. e, concomitantemente, nula a sanção disciplinar que lhe foi aplicada, condenando-se a Ré a pagar ao A. a quantia de 2.176,59 Euros, acrescida de juros de mora; e julgar improcedente a parte restante do pedido, absolvendo-se a Ré do mesmo nessa parte.
Quer o A., quer a Ré não se conformaram com a aludida sentença e, por isso, dela vieram recorrer.
Por despacho transitado em julgado, o Mmo Juiz "a quo" decidiu não admitir o recurso interposto pela Ré, tendo em conta que a parte da sentença objecto do respectivo recurso se reportava à sua condenação no pagamento ao A. da importância de 1.720,68 Euros, valor inferior a metade da alçada do Tribunal, sendo certo, por outro lado, que não se verificava "in casu" nenhuma das situações que determinam o afastamento do critério da sucumbência previstas no nº2 do art.º 678º do Cod. Pr. Civil e no art.º 79º "a contrario sensu" do Cod. Pr. Trab.
O recurso interposto pelo A. foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Nas suas alegações o A., formulou as seguintes conclusões:
" 1- Entre o Autor e a Ré foi celebrado um contrato de trabalho que teve o seu início em 1 de Novembro de 1983 nos termos do qual o Autor se obrigou, mediante retribuição, a prestar a sua actividade de motorista, sob autoridade, direcção e fiscalização da Ré, Associação Humanitária dos Bombeiros de Carregal do Sal, contrato que encontra a sua definição no art.º 1º do Dec.Lei nº 49.408 e art.º 1152º do Cod. Civil."
"2- O Autor além de motorista ‚ também bombeiro voluntário do Corpo de Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal, fazendo parte do seu Corpo activo."
"3- Ao contrato de trabalho celebrado entre o Autor e a Ré em 1 de Novembro de 1983 é aplicável o Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, a Lei de Duração do Trabalho (LDT) e outros diplomas complementares."
"4- Afigura-se ao Autor, salvo o devido respeito por opinião contrária, que o horário de trabalho a cumprir ao serviço da Ré é o de 40 horas por semana, 8 horas por dia distribuídas por cinco dias da semana nos termos do Dec.Lei 409/71 de 27 de Setembro."
"5- As escalas de serviço previamente determinadas e impostas ao Autor pela Ré e que esta apelida de "Escalas de Serviço para Profissionais" ‚ o horário de trabalho que a Ré impôs coactivamente ao Autor e que este foi e é obrigado a cumprir, sendo que em tais escalas o Autor aparece identificado pela letra "D".
"6- O horário de trabalho imposto pela Ré ao Autor e inserto nas ditas "escalas de serviço para profissionais" ultrapassa manifestamente a duração máxima diária e semanal do período de trabalho prescrito na Lei (art.º 5º nº1 do Dec.Lei nº 409/71)."
"7- O trabalho prestado pelo Autor para além da duração máxima permitida por Lei‚ trabalho suplementar e extraordinário e, como tal, dever ser retribuído (art.º 2º nº1 do Dec.Lei nº 421/83 de 2 de Dezembro)."
"8- O facto de o Autor, além de motorista, ser também bombeiro voluntário do Corpo Activo dos Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal, tal situação não pode sobrepor-se à sua qualidade de trabalhador da Ré de modo a permitir a esta o não cumprimento das suas obrigações como entidade patronal, nomeadamente o não cumprimento do horário legal de trabalho, permitindo-se a esta impor arbitrariamente horários de trabalho manifestamente ilegais sob a capa de pretenso trabalho voluntário."
"9- Os serviços prestados pelo Autor, na valência de bombeiro voluntário, no tempo e modos descritos nas escalas de serviços de fim de semana, não colidem, nem podem colidir nem tão pouco se devem confundir com o trabalho prestado pelo Autor como assalariado da Ré, porquanto ali se trata de trabalho voluntário prestado naquela valência e aqui se trata de trabalho subordinado em resultado de um contrato de trabalho validamente celebrado com a Ré."
"10- O único "trabalho voluntário" prestado pelo Autor e ao qual ele deu e dá o seu acordo é o resultante das escalas de serviço de fim de semana, escalas juntas aos autos a título exemplificativo, serviços que o Autor prestou e vem prestando à Ré na qualidade de bombeiro voluntário em pé de igualdade com os demais colegas."
"11- Se o Autor não cumprir o horário que a Ré previamente lhe impõe através das escalas de serviços para os profissionais que esta apelida de "voluntário", incorre aquele em infracção disciplinar, sendo leviana a afirmação da Ré ao qualificar tal trabalho como voluntário."
"12- Encontra-se provado que o Autor prestou no período de 23 de Dezembro de 1996 até 28 de Dezembro de 2001 trabalho suplementar prestado em dias de descanso semanal obrigatório e complementar (sábados e domingos) e feriados, e que prestou à Ré trabalho extraordinário, tudo discriminado nas denominadas escalas de serviços para os profissionais juntas aos autos, todos que o Mmo Juiz "a quo" acolheu e deu como provados."
"14- (...)."
"15- Foram assim violados, entre outros, as disposições dos artºs 1º nº1, 5º, 6º, 11º nºs 1 e 2, 39º e 44º do Dec.Lei nº 409/71 de 27 de Setembro, artºs 1º, 2º e 7º do DEc.Lei nº 421/83 de 2 de Dezembro, art.º 661º nº1 alínea b) e c) do Cód. Pr. Civil e art.º 59º da CRP."
Nas suas contra-alegações, a Ré defendeu a improcedência do recurso.
O Exmo Sr. Procurador da República junto desta Relação emitiu douto parecer, defendendo que o recurso merece provimento.
Foram corridos os vistos legais.

II. Na 1ª instância consideraram-se provados os factos seguintes:
a)- O A. é bombeiro voluntário do quadro activo do Corpo de Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal. Foi admitido como aspirante em 04.06.1972 e veio a ser promovido a bombeiro de 3ª classe em 05.04.1976 e, em razão da respectiva progressão, à categoria de chefe em 03.11.1991.
b)- O A., considerada ainda a sua qualidade de bombeiro voluntário do quadro activo, foi contratado pela Ré em 1983 para prestar serviços de "quarteleiro" sob a sua autoridade, direcção e fiscalização; a partir de 1996, aquando da mudança para o novo quartel (inaugurado em 21.04.1996) - e até ao presente -, passou a exercer as tarefas de "motorista" assalariado ao serviço da Ré, conduzindo veículos ligeiros (ambulâncias) no transporte de sinistrados e pessoas doentes para os diversos serviços de saúde.
c)- Enquanto exerceu aquela 1ª função, o A. permanecia no quartel e aí residia com a sua família, recebendo ainda a remuneração acordada entre as partes; quando passou a desempenhar a função actual, o A. deixou de residir no quartel e continuou a ser remunerado em virtude do serviço prestado como assalariado da Ré.
d)- Em Dezembro de 2001 a Ré pagou ao A. (último salário recebido à data da proposição da acção) o vencimento mensal de 446,42 Euros (Esc. 89.500$00), a importância de 94,97 Euros (Esc.19.040$00) a título de subsídio de alimentação e 32,17 Euros (Esc.6.450$00) como gratificação.
e)- Em finais de Dezembro de 2001, o Comando do Corpo de Bombeiros de Carregal do Sal chamou o A. à sua presença para lhe comunicar a sua suspensão pelo período de 90 dias com início em 01.01.2002 e termo em 31.03.2002, sanção disciplinar que lhe fora aplicada enquanto bombeiro voluntário, pelo comandante do referido Corpo de Bombeiros no desfecho do processo disciplinar a que respeita o documento de fls. 1103 a 1133 e de cuja decisão (fls. 1132 e 1133) tomou então conhecimento.
f)- Em consequência do cumprimento da dita sanção, o A., além do mais, ficou impedido de exercer a sua actividade de "motorista" ao serviço da Ré e de entrar no quartel no período de 01.01.2002 a 31.03.2002; a Ré não lhe pagou a retribuição correspondente àquele período, findo o qual o A. retomou a sua actividade de bombeiro voluntário e "motorista" ao serviço da Ré.
g)- O mencionado Comando remeteu ao A. cópia da "nota de culpa" de fls. 1125 a 1126, através de carta registada com aviso de recepção, expedida em 30.10.2001, mas o A. não procedeu ao levantamento da respectiva correspondência (cfr. fls.1127 a 1129).Porém, e até finais de Dezembro de 2001 o A., encontrando-se normalmente ao serviço da Ré, deslocava-se e permanecia nas instalações do quartel onde esta se encontra sedeada.
h)- O A., no período de 01.01.1997 a 31.12.2001, recebeu da Ré mensalmente a gratificação mencionada em d); ao longo dos anos de 1997,1998,1999,2000 e 2001, a Ré pagou ao A., a esse título, os montantes mensais de 28,55 Euros (Esc.5.724$00), 29,33 Euros (Esc.5.880$00), 30,21 Euros (Esc.6.056$00), 30,96 Euros (Esc.6.207$00) e 32,17 Euros (Esc.6.450$00), respectivamente.
i)- O A. (e os colegas motoristas assalariados) sempre considerou tais montantes como fazendo parte do seu salário.
j)- A Ré não pagou ao A. tais quantias nas férias e nos subsídios de férias e de Natal.
l)- Os vencimentos base mensais que a Ré pagou ao A. Nos anos de 1997, 1998, 1999, 2000 e 2001 foram respectivamente de 389,66 Euros (Esc.78.120$00), 400,39 Euros (Esc.80.270$00), 412,40 Euros (82.678$00), 427,36 Euros (Esc.85.678$00) e 446,42 Euros (Esc.89.500$00).
m)- No período compreendido entre 23.12.1996 e 28.12.2001, o A. e os seus três colegas "motoristas" desenvolveram a sua actividade ao serviço da Ré de acordo com as escalas de serviço de fls. 171 a 236, sendo o A. identificado em tais escalas pela letra "D".
n)- De Dezembro de 1996 a 5 de Abril de 1998 os quatro bombeiros voluntários do quadro activo do Corpo de Bombeiros da Ré e ao serviço desta como "motoristas" (em virtude dos acordos celebrados com a associação Ré) deviam encontrar-se no quartel ou em actividade segundo o seguinte regime de permanência, de 2ª a 6ª feira: quatro motoristas, das 8 às 13 horas; três das 13 às 18 horas; um, das 18 às 24 horas; e dois, das 24 horas às 8 horas do dia seguinte.
o)- No período compreendido entre 06.04.1998 e 31.12.2001 o regime de permanência passou a ser o seguinte, de 2ª a 6ª feiras: dois motoristas, das 8 às 10 horas; três, das 10 às 18 horas; um, das 18 às 20 horas e um, das 20 horas às 8 horas do dia seguinte.
p)- O A. e os três colegas "motoristas", além de cumprirem o regime de permanência aludido em n) e o) - e que, de harmonia com as mencionadas escalas de serviço, incluía também os sábados até às 20 horas (até 29.03.1998) e, depois, ainda, o período das 20 horas às 24 horas de Domingo (a partir de 05.04.1998) - integravam igualmente as escalas de serviço de fim de semana juntamente com os demais bombeiros voluntários do Corpo de Bombeiros pertencente à associação Ré, tal como consta dos documentos de fls. 133 a 141.
q)- As mencionadas escalas de serviço de fins de semana são elaboradas/concretizadas pelos chefes de secção, entre os quais o A. e que depois verificam a sua observância; as referidas em m) foram elaboradas/concretizadas pelo A. na sua qualidade de assalariado da Ré, dado que entre os bombeiros assalariados era o A. quem tinha o posto mais graduado, e na sua qualidade de elemento activo do Corpo de Bombeiros.
r)- Ambas as escalas têm por base os "modelos" aprovados pela Direcção da Ré, sendo que em Março de 1998 o A. apresentou uma contraproposta em relação ao projecto de escala de serviço gizada pelo Comando do Corpo de Bombeiros e que foi objecto de discussão numa reunião em que aquele participara.
s)- Aprovada a referida escala de serviço delineada pelo Corpo de Bombeiros - que vigorou a partir de 1 de Abril de 1998 -, a Direcção da Ré endereçou ao A. a carta de fls. 242 dando-lhe conta daquela decisão/deliberação e do propósito de encetar diligências no sentido de encontrar uma solução indo ao encontro do proposto pelo A., o qual, reiterando o comportamento já adoptado aquando da reunião havida por ocasião da mudança para o novo quartel, pretendia ver reduzidos os períodos de permanência ao serviço da Ré por parte dos quatro "motoristas" assalariados.
t)- O A. subscreveu e dirigiu à Direcção da Ré o "plano de férias para o ano de 1998 do pessoal assalariado/motoristas" a que se refere o documento de fls. 126.
u)- O processo disciplinar mencionado em e) teve o seu início com o "auto de notícia" de fls. 1111, datado de 10.09.2001, que refere que o A., na qualidade de bombeiro voluntário, não justificou as suas faltas à instrução, apesar das convocatórias que lhe haviam sido dirigidas para o efeito.
v)- Em 14.09.2001 foi enviada ao A. uma carta registada com aviso de recepção, dando-lhe conhecimento de que tinha sido dado início à instrução do dito processo disciplinar, correspondência que foi recebida pelo seu filho, Samuel Dinis, que residia com o A.;a instauração do referido processo foi publicitada através da "ordem de serviço" de fls. 1113.
x)-O A., antes de ser assalariado da Ré, prestava já serviço como "voluntário" do Quadro Activo do Corpo de Bombeiros da Ré; após a admissão como assalariado, e à semelhança dos demais colegas com o estatuto de assalariados e bombeiros voluntários, continuou a prestar serviço nesse âmbito e nessa qualidade de "voluntário".
z)- Nas Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários do Distrito de Viseu (maxime de Mortágua, Canas de Senhorim, Viseu, Santa Comba Dão e Nelas) ‚ normalmente considerado, quer pelas respectivas Direcções, quer ainda pelos elementos assalariados do Corpo Activo de Bombeiros, que o trabalho extraordinário (fora do horário normal de trabalho) eventualmente prestado pelos voluntários assalariados é feito sempre em regime de voluntariado.
aa)- Na execução da actividade aludida nas alíneas m) a p), o A. realizou diversas deslocações tripulando viaturas da Ré, tal como resulta dos documentos de fls. 374 e sgs.
bb)- A Ré remeteu ao IDICT - Delegação de Viseu o mapa de quadro de pessoal e o horário de trabalho do pessoal da secretaria a que aludem os documentos de fls. 1075 a 1077.

III.1.O objecto do presente recurso reporta-se à parte da sentença em que se absolveu a Ré do pedido de pagamento do trabalho suplementar e trabalho extraordinário peticionado pelo A.

2.1. Vejamos, antes de mais, qual o contexto factual em que deve ser equacionada tal questão.
O A. é bombeiro voluntário do quadro activo do Corpo de Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal.
Atenta a sua qualidade de bombeiro voluntário do quadro activo - se nela não estivesse investido, nunca poderia estabelecer-se qualquer vínculo juslaboral entre ele e a Ré-, foi contratado pela Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal , a partir de 1996, para exercer as tarefas de "motorista" assalariado ao serviço da Ré, conduzindo veículos ligeiros (ambulâncias) no transporte de sinistrados e pessoas doentes para os diversos serviços de saúde.
Auferia, à data da instauração da acção, o salário mensal de 446,42 Euros (Esc. 89.500$00), a importância de 94,97 Euros (Esc.19.040$00) a título de subsídio de alimentação e 32,17 Euros (Esc.6.450$00) como gratificação.
O A., antes de ser assalariado da Ré, prestava já serviço como "voluntário" do Quadro Activo do Corpo de Bombeiros da Ré; após a admissão como assalariado, e à semelhança dos demais colegas com o estatuto de assalariados e bombeiros voluntários, continuou a prestar serviço nesse âmbito e nessa qualidade de "voluntário".
No período compreendido entre 23.12.1996 e 28.12.2001, o A. e os seus três colegas "motoristas" desenvolveram a sua actividade ao serviço da Ré de acordo com as escalas de serviço de fls. 171 a 236, sendo o A. identificado em tais escalas pela letra "D".
De Dezembro de 1996 a 5 de Abril de 1998 os quatro bombeiros voluntários do quadro activo do Corpo de Bombeiros da Ré e ao serviço desta como "motoristas" (em virtude dos acordos celebrados com a associação Ré) deviam encontrar-se no quartel ou em actividade segundo o seguinte regime de permanência, de 2ª a 6ª feira: quatro motoristas, das 8 às 13 horas; três das 13 às 18 horas; um, das 18 às 24 horas; e dois, das 24 horas às 8 horas do dia seguinte. No período compreendido entre 06.04.1998 e 31.12.2001 o regime de permanência passou a ser o seguinte, de 2ª a 6ª feiras: dois motoristas, das 8 às 10 horas; três, das 10 às 18 horas; um, das 18 às 20 horas e um, das 20 horas às 8 horas do dia seguinte.
Durante os regimes de permanência antes mencionados, o A., como motorista, realizou diversas deslocações tripulando viaturas da Ré, tal como resulta dos documentos ("escalas") de fls. 171 a 236.
Para além de cumprirem o regime de permanência antes explicitado, -que, de harmonia com as mencionadas escalas de serviço, incluía também os sábados até às 20 horas (até 29.03.1998) e, depois, ainda, o período das 20 horas às 24 horas de Domingo (a partir de 05.04.1998) - o A. e os três colegas "motoristas", integravam igualmente as escalas de serviço de fim de semana juntamente com os demais bombeiros voluntários do Corpo de Bombeiros pertencente à associação Ré, tal como consta dos documentos de fls. 133 a 141.
As escalas de serviço de fins de semana eram e são elaboradas/concretizadas pelos chefes de secção, - entre os quais o A. - que depois verificam a sua observância.
As escalas de serviço específicas dos motoristas eram elaboradas/concretizadas pelo A. na sua qualidade de assalariado da R‚, dado que entre os bombeiros assalariados era o A. quem tinha o posto mais graduado, e na sua qualidade de elemento activo do Corpo de Bombeiros.
Ambas as escalas (as gerais e as específicas dos motoristas) têm por base os "modelos" aprovados pela Direcção da Ré.
Nas Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários do Distrito de Viseu (maxime de Mortágua, Canas de Senhorim, Viseu, Santa Comba Dão e Nelas) é normalmente considerado, quer pelas respectivas Direcções, quer ainda pelos elementos assalariados do Corpo Activo de Bombeiros, que o trabalho extraordinário (fora do horário normal de trabalho) eventualmente prestado pelos voluntários assalariados é feito sempre em regime de voluntariado.
Defende o A. que, como motorista contratado, estava sujeito ao "horário legal de 8 horas por dia, 40 horas semanais, distribuídas de 2ªa a 6ª feira, com descanso semanal ao sábado e domingo." ( art.º 24º da p.i); todavia, porque, por ordem e exigência da Ré, cumpriu um horário com escalas de serviço, com trabalho aos sábados, domingos, feriados, em regime nocturno, prestou, desse modo, desde 23 de Dezembro de 1996, trabalho extraordinário que não lhe foi pago (artºs 25º, a 41º da p.i), perfazendo o montante em dívida a esse título a quantia de 11.391,47 Euros (Esc.2.283.785$00).
Contrapõe a Ré que a actividade desenvolvida pelo A. emerge, não de um contrato de trabalho mas, antes, da sua qualidade de bombeiro voluntário, ou seja da sua disponibilidade por ele livremente manifestada e livremente aceite pela corporação; e que, a demonstrá-lo, importa relevar que as escalas de serviço eram elaboradas/concretizadas pelo A. que, sempre que o julgava conveniente, propunha a respectiva alteração. Certo é que a Ré nunca impôs qualquer escala de serviço ao A. a Ré limitava-se a fornecer ao A. e aos outros bombeiros os modelos das escalas, não fixando nem fornecendo horários.
Essa tese veio a ser perfilhada na sentença impugnada.
Aí se escreveu, a dado passo, que " Na verdade, não pensamos não ser possível afirmar que o A. haja prestado trabalho "fora do horário de trabalho", sendo sim de concluir que prestava o seu trabalho como motorista assalariado da Ré segundo as "escalas de serviço" do regime de permanência acordado: por outro lado, não obstante ter vindo a propugnar pelo encurtamento de tais períodos de permanência - actuação que se justifica também pela circunstância de o A. se encontrar investido na qualidade de chefe e secção e ser o elemento mais graduado dos quatro motoristas assalariados -este e os colegas não deixaram de acatar tais regimes de permanência como constituindo os respectivos períodos de disponibilidade e de permanência no quartel a que estavam vinculados por força dos respectivos contratos de trabalho."

2.2. Equacionada nestes termos, a questão em apreço não é simples.
Afigura-se-nos, antes de mais, que para a sua resolução impõe-se ter em conta que o A. se encontra investido de uma dupla qualidade: a de bombeiro voluntário e a de trabalhador (motorista) ao serviço da Ré.
E certo que qualidade de assalariado tem pressuposto necessário a de bombeiro voluntário: o A. não podia ser admitido ao serviço da Ré mediante contrato de trabalho sem possuir a qualidade de elemento do pessoal voluntário da Corporação de bombeiros.
A categoria de bombeiro é indispensável à contratação de assalariados para o exercício de determinadas funções num corpo de bombeiros. Esta qualidade de bombeiro é determinante para a contratação, e isto justifica-se, na medida em que o escopo ou fim de qualquer Associação é realizado através do seu corpo de bombeiros, composto por homens especializados, preparados e orientados para a sua concretização, pois estão sujeitos a critérios de selecção impostos por normas administrativas que visam a realização de um interesse público.
Daí resulta, como é óbvio, que as actividades desenvolvidas ou concretizadas pelo A., quer como motorista contratado, quer como bombeiro voluntário, não se distinguem, são as mesmas.
Tal facto não obsta a que de uma e outra das referidas qualidades, atenta a natureza ou essência jurídica dos respectivos estatutos, derivem consequências diversas no âmbito da relação com a Ré.
E que a natureza do vínculo que liga o bombeiro voluntário à sua corporação não é coincidente com o que caracteriza a noção comum de contrato de trabalho.
Vejamos.
Como motorista contratado, o A. está sujeito a um horário de trabalho que é definido, dentro dos limites legais, pela sua entidade patronal, a Ré.
Por isso, trabalho suplementar, ou seja, o que é prestado pelo A., como motorista assalariado, fora do horário de trabalho, considerando o numero de horas de trabalho que o trabalhador se obrigou a prestar (período normal de trabalho) e os limites legal ou convencionalmente estabelecidos - cfr. art.º 2º nº1 do Dec.Lei nº 421/83 de 2/12, art.º 45º da L.C.T., e art.º 5º do Dec.Lei nº 409/71 de 27/9, na redacção dada pelo Dec.Lei nº 398/91 de 16/10, e actualmente o disposto na Lei nº 21/96 de 23/7- tem de ser remunerado, por força do contrato celebrado e da imperatividade da lei aplicável.
Consequentemente, em princípio, os regimes especiais de permanência mencionados nas alíneas m), n) e o) da factualidade assente (mapas de fls. 374 e sgs.), aplicáveis em exclusivo aos quatro motoristas - entre eles o A. - inscrevem-se no âmbito da execução dos respectivos vínculos juslaborais e, por isso, concretizam a prestação de trabalho extraordinário.
Já o mesmo não sucede no que se refere às denominadas "escalas de serviço de fim de semana", mencionadas na alínea p) do elenco dos factos provados, a que estão sujeitos, sem distinção, todos os bombeiros, em razão da da natureza de elementos voluntários integradores da Corporação (mapas de fls. 133 a 141).
Ao contrário dos bombeiros profissionalizados, a actividade de bombeiro voluntário não emerge duma relação de emprego, nem do contrato de trabalho, mas sim de voluntariado, ou seja, de uma disponibilidade livremente manifestada e livremente aceite pela corporação.
As "escalas de serviço de fim de semana", diversamente do que sucede com os "regimes especiais de permanência" a que estão sujeitos os motoristas - não têm qualquer relação com um determinado hor rio de trabalho, pela simples razão de que este só existe para os trabalhadores contratados.

2.3.Por razoes de interesse público, a valência/qualidade de "Bombeiro voluntário" dever prevalecer sobre a de trabalhador contratado, decorrente dum contrato privado.
Tal não significa, porém, que os efeitos jurídicos da primeira anulem ou neutralizem as da segunda.
Na verdade, afigura-se-nos incontornável que existe um contrato de trabalho, celebrado entre o A. e a Ré, plenamente eficaz e regulado por normas de carácter imperativo, como são as relativas ao trabalho suplementar.
A solução do problema radica no cotejo dos mapas das "escalas de serviço de fim de semana" destinadas a todos os bombeiros, profissionais ou não ( fls. 133 a 141) com os respeitantes aos "regimes especiais de permanência", que vigoravam apenas para os quatro motoristas contratados pela Ré, incluindo o A.: estes, não obstante esse estatuto, não deixavam de ser, tal como os restantes colegas, bombeiros voluntários, portanto na situação de disponibilidade livremente por eles oferecida e pela Ré aceite sem restrições de horário; daí que, sempre que, face ao exame dos respectivos "modelos", se constatasse uma sobreposição dos tempos dos "regimes especiais de permanência" dos motoristas, aos fins de semana, com os períodos de "escalas de serviço de fim de semana", esses tempos de sobreposição não devem ser considerados como trabalho extraordinário e, portanto, não têm que ser remunerados.
Diversamente, seria remunerado como trabalho suplementar o tempo de permanência que o A. foi obrigado a prestar fora do horário de trabalho e que não coincidisse com os períodos para que estivesse escalado nas escalas gerais de fins de semana.

IV. Nesta conformidade, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, decide-se:
(A) Revogar a sentença na parte em que absolveu a Ré do pagamento do trabalho extraordinário prestado pelo A.;
(B) Condenar a Ré no pagamento ao A. do trabalho extraordinário que prestou durante os períodos de tempo para além do horário normal, mencionados nos "modelos" de fls. 171 a 236, com exclusão desses mesmos períodos, quando coincidentes com aqueles para que o A. foi escalado, conforme vier a resultar do cotejo daqueles "modelos" (atinentes ao "regime de permanência" especial para motoristas, fls.171 a 236) com os "modelos" respeitantes às "escalas de fim de semana" juntos a fls. 133 a 141, pelo montante que vier a liquidar-se em execução de sentença (cfr. art.º 661º nº2 do Cód. Pr.Civil).
Custas a cargo da Ré.