Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
816/09.2TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: CASO JULGADO
EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 09/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – ANADIA – JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.497, 498, 671, 674-A, 771, 772 CPC
Sumário: 1 - O caso julgado constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que, a verificar-se, obsta que o tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância;

2 -A sua verificação depende do preenchimento da tríplice identidade a que o artigo 498º do Código de Processo Civil faz referência.

3 - Na identidade de sujeitos, importa apenas atender à qualidade jurídica das partes, não sendo exigível uma correspondência física nas duas acções.

4 - A identidade dos pedidos é perspectivada em função da posição das partes quanto à relação material: existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos, do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado, sem que seja de exigir uma adequação integral das pretensões, nem sequer do ponto de vista quantitativo.

5 - Existe identidade de causa de pedir quando as pretensões formuladas em ambas as acções emergem de facto jurídico genético do direito reclamado comum a ambas.

6 - Da excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º do Código de Processo Civil.

7 - O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.

8 - O recurso extraordinário de revisão constitui o meio processual adequado à modificação de decisão transitada em julgado, desde que tenha por fundamento alguma das circunstâncias taxativamente elencadas no artigo 771º do Código de Processo Civil, não podendo a parte vencida em anterior processo cuja decisão haja transitada em julgado vir obter, através de acção para o efeito proposta, com fundamento nalguma dessas circunstâncias, um efeito útil que se traduza em decisão diversa da anterior.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

1. E (…) propôs acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra “J (…) & Filhos, Ldª”, AF (…), JR (…), AO (…)[1], JÁ (…), AA (…), AS (…) PM (…), AV (…), LG (…) , MM (…), pedindo, em síntese, que os RR sejam condenados solidariamente a indemnizá-lo dos custos que teve e tem que suportar por causa da acção nº 577/2000, do extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda e processo-crime comum colectivo nº 267/2000, do extinto 1º Juízo do mesmo Tribunal, que lhe foram movidos pela 1ª Ré (Ré sociedade), bem como do que tiver que pagar em resultado das sentenças condenatórias proferidas nos referidos processos, e os danos extra-patrimoniais sofridos.

Alega, para tanto, o Autor que, tendo sido condenado na primeira daqueles processos, por decisão de 9 de Outubro de 2006, confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra e pelo Supremo Tribunal de Justiça, a pagar à 1ª Ré sociedade a quantia global de 31.876.700$40, equivalente ao valor de € 150,000,31, pelos prejuízos que dolosamente lhe causou e que se traduziram na abertura de duas valas no prédio da mesma Ré e na lavragem de uma área de cerca de 12.400 m2 e subsequente plantação dessa área com eucaliptos, pinheiros e carvalhos, e no segundo processo, parcialmente por factos da primeira (lavragem do terreno), por decisão também transitada em julgado, na pena de dois anos e seis meses de prisão, com execução suspensa por igual período, por prática de crime de dano qualificado, essas decisões condenatórias fundamentaram-se em documentos falsos, designadamente no auto de ratificação de obra nova de 20 de Outubro de 2000, e depoimentos falsos, que criaram nos julgadores que intervieram nos referidos processos a convicção acerca da verificação dos factos materiais que ditaram tais condenações.
Citados, contestaram os Réus (…), que, designadamente, invocaram a excepção dilatória de caso julgado entre a acção agora proposta e os dois mencionados processos, referindo que o Autor ao propor esta acção pretende infirmar a motivação e os factos que serviram de fundamento às decisões judiciais proferidas nos aludidos processos, visando obter decisão diversa daquelas.

O Autor não respondeu à matéria da excepção.

Proferido despacho saneador, foi nele conhecida, entre o mais, a referida excepção dilatória de ofensa ao caso julgado material, absolvendo os Réus da instância, condenando nas custas o Autor.

2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação o Autor, apresentando com as suas alegações as seguintes conclusões:

A -Entre a acção destes autos e as identificadas outras (a cível e a criminal) inexiste qualquer uma das três identidades que constituem requisitos legais do caso julgado;

B. O efeito do caso julgado opera sobre a decisão, que não deve ser repetida ou contraditada, e às questões preliminares que foram o seu antecedente lógico, mas não se projecta sobre a motivação, sobre a valoração das provas e, em geral, sobre os elementos de formação da convicção do julgador;

C. A douta sentença recorrida viola o artigo 498º do Código de Processo Civil.

Termos em que, dando provimento às conclusões desta apelação, revogando a douta sentença recorrida e mandando condensar o processo, farão Vossas Excelências a habitual Justiça”.

A apelada “(…) contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

 

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[2], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[3].

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se existe ou não excepção de caso julgado em relação à acção nº 577/2000, do extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda e ao processo-crime comum colectivo nº 267/2000, do extinto 1º Juízo do mesmo Tribunal,

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Além dos factos descritos no relatório supra, mostram-se comprovados os seguintes factos relevantes à apreciação do objecto do recurso:

1. O processo onde foi interposto o presente recurso deu entrada em juízo a 07.04.2009.

2. A acção nº 577/2000 foi proposta por J (…) & Filhos, Ldª” contra o aqui apelante e contra a esposa deste.

3.A decisão nela proferida foi confirmada por acórdão da Relação de Coimbra de 25.09.2007 e do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008.

4.O acórdão proferido no processo nº 267/00.4GNAGD foi confirmado por acórdão desta Relação de 01.07.2009.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

            O caso julgado constitui excepção dilatória[4], de conhecimento oficioso[5], que, a verificar-se, obsta que o tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância[6].

            De acordo com o nº1 do artigo 497º do Código de Processo Civil, “as excepções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à listispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado”.

Para o Prof. Manuel de Andrade[7] a excepção do caso julgado traduz-se em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social.

O instituto do caso julgado encerra em si duas vertentes, que, embora distintas, se complementam: uma, de natureza positiva, quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; a outra, de natureza negativa, quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal[8].

A autoridade do caso julgado justifica-se/impõe-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas. E essa autoridade não é retirada, nem posta em causa mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado correctamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei: no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça[9].

De extrema pertinência, para a discussão da situação em análise, se revelam os ensinamentos do Prof. Castro Mendes[10], a propósito do efeito preclusivo do caso julgado: “Fora da hipótese de factos objectivamente supervenientes – e esta hipótese reconduz-se à ideia dos limites temporais do caso julgado: a sentença só é válida «rebus sic stantibus» - cremos que os «contradireitos» que o réu podia fazer valer são ininvocáveis contra o caso julgado. O fundamento essencial do caso julgado não é de natureza lógica, mas de natureza prática; não há que sobrevalorizar o momento lógico do instituto, por muito que recorramos a ele na técnica e construção da figura. «O que se converte em definitivo com o caso julgado não é a definição de uma questão, mas o reconhecimento ou não reconhecimento de um bem»”.

E adianta, esclarecidamente, o mesmo Autor: “a paz e a ordem na sociedade civil não permitem que os processos se eternizem e os direitos das partes reconhecidos pelo juiz após uma investigação conduzida pelo juiz de acordo com as normas legais voltem a ser contestados sob qualquer pretexto.

Outro problema que se põe é o de saber se esta figura do efeito preclusivo pertence ao instituto do caso julgado, ou lhe é estranha.

A dogmática tradicional e dominante integra-o no caso julgado. Uma regra clássica diz-nos aqui que tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat, o caso julgado abrange aquilo que foi objecto de controvérsia, e ainda os assuntos que as partes tinham o ónus (não o dever) de trazer à colação; neste último caso, estão os meios de defesa do réu.

(…) Outros autores vêem este efeito preclusivo como efeito da sentença transitada, mas efeito distinto do caso julgado.

(…) Apreciando esta construção, notaremos antes de mais estarmos inteiramente de acordo com Schwab, quando este salienta que «não tem qualquer relevância prática, se os factos são excluídos com fundamento na eficácia do caso julgado ou com fundamento numa preclusão estranha ao caso julgado». O próprio Habscheid reconhece que caso julgado e efeito preclusivo «ambos se completam, ambos prosseguem o mesmo fim», tutela da paz e da segurança jurídica e chama ao efeito preclusivo «princípio-irmão» do caso julgado material.

(…) A indiscutibilidade de uma afirmação, o seu carácter de res judicata, pode resultar pelo contrário tanto de uma investigação judicial, como do não cumprimento dum ónus que acarrete consigo vi legis esse efeito. Sucede isso no processo cominatório pleno, em que faz caso julgado uma questão decidida apenas pela aplicação de normas de direito processual civil. E sucede ainda a respeito das questões que as partes têm o ónus de suscitar, sob pena de serem ulteriormente irrelevantes para impugnar ou defender uma situação jurídica acertada ou rejeitada em termos de caso julgado.”

A decisão transita em julgado quando não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação[11], e a excepção de caso julgado destina-se a “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”[12].

            Segundo o artigo 498º do citado Código, que descreve os requisitos da litispendência e do caso julgado, “repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e causa de pedir” (nº1); sendo que:

            - “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” – nº 2;

            - “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico” – nº 3;

            - “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido” – nº 4.

            Como decorre do preceito em causa, a excepção do caso julgado supõe uma tríplice identidade: sujeitos, pedido e causa de pedir.

            A determinação da identidade dos sujeitos não oferece dificuldades particulares: “as partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial”[13]. Não tem de existir coincidência física, sendo indiferente a posição que assumam em ambos os processos[14]. Daí resulta que as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que as mesmas assumam em ambos os processos.

            A identidade dos pedidos é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos, do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado[15].

            A identidade de pedidos ocorrerá se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a acção, se pretende obter”.   

            A dificuldade maior coloca-se quanto à determinação da identidade nas causas de pedir.

            Tem a doutrina distinguido duas teorias, quanto à causa de pedir, a da individualização e a da substanciação, cuja conceptualização não deixará de se repercutir na delimitação da excepção do caso julgado.

Esta última, que encara a causa de pedir como o próprio facto jurídico genético do direito[16], foi a que encontrou acolhimento na lei adjectiva portuguesa. Dela resulta que se integram no conceito de caso julgado os factos invocados que forem injuntivos da decisão. Ou seja, “a causa de pedir consiste na alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, na alegação dos factos constitutivos do direito”[17] .

            Já Alberto dos Reis[18] defendia que “há que repelir antes do mais a ideia de que a causa petendi seja a norma de lei invocada pela parte. A acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal. Daí vem que a simples alteração do ponto de vista jurídico não implica alteração da causa de pedir”, acrescentando: “o Tribunal não conhece de puras abstracções, de meras categorias legais; conhece de factos reais, particulares e concretos e tais factos quando sejam susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, é que constituem a causa de pedir.”

Para Miguel Teixeira de Sousa[19], “o caso julgado abrange todas as qualificações jurídicas do objecto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não das qualificações que podem ser atribuídas a esse fundamento”.

Quando, porém, o procedimento instaurado integre uma causa de pedir complexa, isto é, formada por um acervo de factos que integram previsão de normas constitutivas diversas, existindo concurso ou concorrência de normas, e tendo ocorrido improcedência da primeira acção, só existirá identidade de causa de pedir “se o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes tiver sido alegado no primeiro processo, permitindo nele identificar as normas aplicáveis”[20].

Importa, face ao exposto, averiguar se, se no caso vertente se verifica a tríplice identidade que caracteriza a excepção do caso julgado.

Quanto à identidade de sujeitos: como já se adiantou, não se exige uma correspondência física nas duas acções, havendo antes que relevar a qualidade jurídica das mesmas, como decorre do nº2 do artigo 498º do Código de Processo Civil.

Diz-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.05.210[21], “…a análise do “caso julgado” pode ser perspectiva através de duas vertentes, que em nada se confundem:

- uma delas reporta-se à excepção dilatória do caso julgado, cuja verificação pressupõe o confronto de duas acções – contendo uma delas decisão já transitada – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir;

- a outra vertente reporta-se à força e autoridade do caso julgado, decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão”.

Segundo Rodrigues Bastos[22], citado no mesmo acórdão, “... enquanto que a força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a excepção destina-se a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual”.

E elucida o mesmo acórdão: “Embora os princípios expostos estejam vocacionados para o caso julgado material, não deixam os mesmos de cobrar aplicação – agora circunscritos à força e autoridade do caso julgado – relativamente às decisões que se formam no interior do próprio processo.

O mesmo se diga relativamente à problemática dos seus limites objectivos.

A este propósito, tem vindo a ser sustentado maioritariamente, na esteira da doutrina defendida por Vaz Serra (R.L.J. 110º/232), que a força do caso julgado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, tudo isto “... em nome da economia processual, do prestígio das instituições judiciárias e da estabilidade e certeza das relações jurídicas” (Acórdão do S.T.J. de 10/7/97 in C.J. S.T.J., V, II, 165)”.

E a propósito da mesma questão, retira-se do Acórdão de 27.09.2005 desta Relação[23]: “a questão da extensão, alcance e limites do caso julgado é complexa.
É, contudo,
“communis opinio” que a figura jurídica do caso julgado, para além de eventuais razões de defesa do prestígio dos tribunais, evitando a sua colocação perante a contingência de definir num sentido uma situação concreta já validamente definida em sentido diferente Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, vol. III, pág. 384, não reconhece a esta razão qualquer valor., tem por objectivo assegurar a certeza e segurança jurídica, indispensáveis à fluidez do comércio jurídico e até à estabilidade e paz social.

O alcance e autoridade do caso julgado não se pode, pois, limitar aos estreitos contornos definidos nos artºs 497º e seguintes para a excepção do caso julgado, antes se estendendo a situações em que, apesar da ausência formal da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento daquela figura jurídica está notoriamente presente”.

O Acórdão desta Relação de 28.09.2010 distingue deste modo a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado: “A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.

A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.498 do Código de Processo Civil”.

Escrevem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[24]: “a excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…). Mas o efeito negativo do caso julgado nem sempre assenta na identidade do objecto da primeira e da segunda acções: se o objecto desta tiver constituído questão prejudicial da primeira (e a decisão sobre ela deva, excepcionalmente, ser invocável) ou se a primeira acção, cujo objecto seja prejudicial em face da segunda, tiver sido julgada improcedente, o caso julgado será feito valer por excepção”.

De acordo com o nº1 do artigo 671º do Código de Processo Civil, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497º e 498º, sem prejuízo do disposto nos artigos 771º a 777º”.

Ou seja, quando a decisão se torna definitiva, por não poder já ser susceptível de reclamação, nem de recurso ordinário, a mesma transita em julgado[25], formando-se então o caso julgado: formal, com efeitos apenas no processo em que foi proferida, quando não tenha conhecido de mérito; e material, com efeitos dentro e fora do processo em que haja sido proferida, quando tenha sido de mérito.

Mais uma vez, esclarecem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[26]: “seja qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada (art. 672). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sobre a relação material controvertida”), a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (…), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado).

(…) Fala-se do efeito preclusivo do caso julgado para caracterizar esta inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida (…)”.

Este efeito preclusivo dos meios de defesa que podiam/deviam ser deduzidos na contestação tem sido integrado pela doutrina no âmbito do caso julgado, o qual abarca não só o que foi objecto de discussão no processo, mas também tudo aquilo que, a ela respeitando, tivesse o réu o ónus de submeter também à discussão[27].

Como defende Manuel de Andrade[28], “se a sentença reconheceu no todo ou em parte o direito do Autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do Réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, e até os que ele poderia ter deduzido com base num direito seu…Neste sentido, pelo menos, vale a máxima segundo a qual o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível»…”.

Esse princípio da preclusão encontra no artigo 489º do Código de Processo Civil consagração legal.

Aí se determina: “1. Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.

2. Depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente”.

O alcance do caso julgado das decisões penais condenatórias encontra-se vertido no artigo 674º-A do Código de Processo Civil, que dispõe: “a condenação definitiva proferida em processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção”.

Como afirmam Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[29], “não se trata, directamente, da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes. A presunção estabelecida difere das presunções stricto sensu, na medida em que a ilação imposta ao juiz cível resulta do juízo de apuramento dos factos por um acto jurisdicional com trânsito em julgado”.

 A imutabilidade da decisão transitada em julgado encontra no recurso extraordinário de revisão previsto no artigo 771º do Código de Processo Civil expressão da sua excepção.

Determina este normativo: “A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando:

a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções;

b) Se verifique a falsidade de documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objecto de discussão no processo em que foi proferida;

c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si, só seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;

d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundou;

e) Tendo corrido a acção e a execução à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que faltou a citação ou que é nula a citação feita;

f) Seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português;

g) O litígio assente sobre acto simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 665º, por não se ter apercebido da fraude”.

O recurso de revisão visa combater e sanar um vício ou irregularidade processual de especial gravidade, de entre o elenco taxativo descrito na citada norma e está sujeito ao limite temporal fixado no artigo 772º do Código de Processo Civil.

Não pode a parte vencida em anteriores processos contra ela instaurados, cujas decisões se hajam tornado definitivas pelo respectivo trânsito em julgado, contornar a imodificabilidade dessas decisões através de acção agora por ela interposta em que a causa de pedir redunde nalgum dos fundamentos tipificados para o recurso de revisão, único meio processual adequado a arredar essa imodificabilidade.

Por conseguinte, não pode agora o autor, em nova acção proposta para o efeito, vir exercer meios de defesa que na anterior acção, podendo, não exerceu, submetendo à apreciação do tribunal questões já antes debatidas e definitivamente resolvidas.
E menos pode ainda invocar eventuais irregularidades existentes na anterior acção, que, a terem-se verificado, só nela podiam ser levantadas e decididas.
O sucesso da acção proposta pelo apelante, o efeito útil através dela prosseguido só será alcançado se o mesmo abalar a motivação que fundamentou a factualidade na qual se estribaram ambas as decisões que o condenaram nos anteriores processos.
É que a indemnização por ele pretendida pressuporia, para ser concedida, o reconhecimento da falsidade dos meios de prova em que o tribunal, nas referidas acções, se apoiou para concluir pela factualidade que justificou a condenação nelas do apelante, a existência do invocado conluio dos Réus para que fossem ditadas aquelas condenações, factos que originaram as anteriores decisões, que, por aquelas razões, reputa de injustas.
Através do pedido de indemnização nesta acção formulado, nada mais pretende o Autor/Apelante do que discutir de novo a matéria controvertida já definitivamente resolvida, visando a obtenção de decisão diversa das anteriormente proferidas, anulando os efeitos das condenações antes sofridas.
O que equivaleria, na prática, a ser admissível, à própria anulação do efeito do caso julgado material, resultado que a lei não permite.

 Síntese conclusiva:

- O caso julgado constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que, a verificar-se, obsta que o tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância;

-A sua verificação depende do preenchimento da tríplice identidade a que o artigo 498º do Código de Processo Civil faz referência.

- Na identidade de sujeitos, importa apenas atender à qualidade jurídica das partes, não sendo exigível uma correspondência física nas duas acções;

- A identidade dos pedidos é perspectivada em função da posição das partes quanto à relação material: existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos, do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado, sem que seja de exigir uma adequação integral das pretensões, nem sequer do ponto de vista quantitativo.

- Existe identidade de causa de pedir quando as pretensões formuladas em ambas as acções emergem de facto jurídico genético do direito reclamado comum a ambas.

- Da excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º do Código de Processo Civil.

- O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.

- O recurso extraordinário de revisão constitui o meio processual adequado à modificação de decisão transitada em julgado, desde que tenha por fundamento alguma das circunstâncias taxativamente elencadas no artigo 771º do Código de Processo Civil, não podendo a parte vencida em anterior processo cuja decisão haja transitada em julgado vir obter, através de acção para o efeito proposta, com fundamento nalguma dessas circunstâncias, um efeito útil que se traduza em decisão diversa da anterior.

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, julgando improcedente a apelação, confirmar a decisão recorrida.

Custas, pelo apelante.

Coimbra, 6 de Setembro de 2011


Judite Pires ( Relatora )

Carlos Gil

Fonte Ramos



[1] Que, tendo falecido, é representado pelos seus sucessores habilitados BO (…), DO (…)e AO (…)
[2]Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[3] Artigo 664º do mesmo diploma.
[4] Artigo 494º, i) do Código de Processo Civil.
[5] Artigo 495º do Código de Processo Civil.
[6] Artigo 493º, nº2 do mesmo diploma legal.
[7] “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 305 e 306.
[8] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, pág. 93.
[9] Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 94.
[10] “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, págs. 178 e segs.
[11] Artigo 677º do Código de Processo Civil.
[12] Artigo 497º, nº2 do Código de Processo Civil.
[13] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06.01.94, CJ ano IX, T1, 198.
[14] Assim, existe identidade de partes ainda que o autor na segunda acção tivesse a posição de réu na acção precedente.
[15] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 08.03.2007, CJSTJ, tomo I, pág. 98 e segs.
[16] Cf. Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. I, pág.204 e segs.
[17] Acórdão da Relação de Coimbra, 17.05.2005, processo nº 3904/04, www.dgsi.pt.
[18]Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, págs. 121, 124.
[19]Estudos Sobre O Novo CPC”, pág. 576.
[20] Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, págs. 323 e 324.
[21] Processo nº 3749/05.8TTLSB.L1.S1, www.dgsi.pt.
[22]Notas ao Código de Processo Civil”, Volume III, páginas 60 e 61.
[23] Processo nº 1970/05, www.dgsi.pt.
[24] “Código de Processo Civil anotado”, vol. 2º, 2ª ed., pág. 354.
[25] Artigo 677º do Código de Processo Civil.
[26] “Ob. cit”. pág. 713 e segs.
[27] Cfr. Castro Mendes, ob. cit., pág. 713.
[28] Ob. cit., pág. 324.
[29] Ob. cit., pág. 727.