Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3415/10.2TBVIS .C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO
Data do Acordão: 09/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
VISEU - TRIBUNAL JUDICIAL - 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 100/97 DE 13/9, LEI Nº 3/99 DE 3/1
Sumário: Compete ao tribunal de competência genérica da comarca conhecer da acção em que a seguradora, no exercício do direito de regresso, pede contra a tomadora do seguro de acidentes laborais a condenação no pagamento de quantia que tenha pago, com base em contrato de seguro de acidentes laborais, ainda que para o efeito invoque a concessão desse direito por preceito da Lei dos Acidentes de Trabalho.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM O SEGUINTE:

Z (…)– Sucursal em Portugal” interpôs no Tribunal da Comarca de Viseu a presente acção sumária contra os réus “E (…), Lda.” e A (…), alegando que celebrou com a sociedade “J (…), Lda.” um contrato de seguro de acidentes de trabalho, em execução do qual pagou várias quantias ao sócio-gerente desta, na sequência de um acidente de trabalho por este sofrido. Como tal acidente se ficou a dever à atitude imprudente e negligente do segundo réu, que na altura agia ao serviço e sob as ordens da primeira ré, ambos os demandados devem ser responsabilizados pela ocorrência do sinistro. Em consequência, pretende a autora ser indemnizada pelos réus, por via de acção de regresso, da quantia de € 7.725,92 que despendeu por causa de tal acidente, acrescida de juros, à taxa legal de 4%, desde a citação e até integral pagamento.

No momento do saneador, foi proferida decisão que declarou a incompetência do tribunal em razão da matéria e absolveu os réus da instância.

Inconformada, recorre a autora, concluindo a sua alegação:

1. A Autora/Recorrente propôs uma acção declarativa contra a E (…), LDA. e A (…), pedindo a condenação solidária destes no pagamento da quantia de € 7.725,92, acrescida de juros, contabilizados à taxa legal de 4%, desde a citação e até integral e efectivo pagamento;

2. A Autora/Recorrente dedica-se à actividade seguradora;

3. E funda o seu pedido no direito de regresso, que lhe assiste por força do disposto nos nºs 1 e 4 do artigo 31º da Lei 100/97;

4. O Tribunal a quo, na sentença, considerou-se materialmente incompetente;

5. Para se poder reconhecer que o pedido e a causa de pedir assentam no acidente  de trabalho, aqueles têm de visar efectivar a responsabilidade emergente desse acidente de trabalho;

6. Devem consistir no apuramento da responsabilidade da entidade patronal, da seguradora ou de terceiro pelo sinistro;

7. O pedido e a causa de pedir, nesta acção, cimentam-se no direito de regresso, que assiste à Autora/Recorrente, por força do art.º 31.º da Lei 100/97 e decorrente da regularização das despesas emergentes do acidente de trabalho, o qual assume a natureza de um verdadeiro direito de crédito.

8. Não está em causa a aferição das responsabilidades da entidade patronal, da seguradora ou de terceiro pelo sinistro.

9. O pedido não se baseia no acidente de trabalho per si, nem em factos directamente decorrentes daquele;

10. O pedido assenta no direito de regresso da seguradora, o qual constitui uma questão lateral, embora conexa com o sinistro laboral;

11. A grande maioria da jurisprudência considera materialmente competentes os Tribunais de Competência Genérica, e não os Tribunais de Trabalho;

12. O Tribunal a quo mal andou ao decidir pela sua incompetência, e consequente absolvição dos Réus da instância;

13. Com tal decisão, verificou-se uma errónea interpretação das regras de competência, particularmente, do artigo 85º da LOFTJ;

14. Assim, deve a sentença, de que ora se recorre, ser revogada, e, consequentemente, deve o processo seguir os seus ulteriores trâmites. Nestes termos deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, a sentença revogada, devendo o processo seguir os seus ulteriores trâmites.

Correram os vistos.

Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

Conhecendo:

A questão a dilucidar consiste em saber se, face ao objecto da acção, a competência material é atribuída por lei ao tribunal comum, de competência genérica, ou se é atribuída por lei ao tribunal do trabalho.

O objecto da acção é definido pelo pedido e pela causa de pedir, tal como sucintamente constam descritos no relatório. Em suma, a autora, enquanto seguradora do ramo acidentes de trabalho, faz valer o seu pretenso direito de regresso pelo que pagou ao 2º réu, sinistrado enquanto trabalhava por conta da 1ª ré, segurada.

Discorreu o despacho recorrido:

«O nexo de competência determina-se segundo a causa de pedir e o pedido formulado – neste sentido, veja-se o Ac. da Relação de Lisboa de 01-07-93 (C.J., 1993, III, p. 144). Ora, de acordo com a própria descrição fáctica operada pela autora na sua petição inicial, e não obstante as posições expressas a fls. 175 e 182, afigura-se-nos que a relação que invoca se caracteriza inequivocamente como laboral, e não apenas civil. Com efeito, o pedido da autora fundamenta-se na ocorrência de um acidente de trabalho, gerador de danos, e cuja responsabilidade imputa aos réus. É este o facto jurídico – de cariz laboral - que constitui a causa de pedir da presente acção, e não um qualquer contrato de direito civil. Daí que se venha a discutir, na acção, se se verificou ou não um acidente de trabalho, pelo que estamos obviamente perante uma questão emergente de um acidente de trabalho. Daí que seja aqui convocável o critério de conexão previsto no art. 85º, al. c), da LOFTJ, sendo competente para a acção o tribunal do trabalho, e não este tribunal cível».

Vejamos.

A questão não é nova. A jurisprudência tem vindo, ao longo de muitos anos (tanto ao abrigo da actual como da anterior Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), a entender, maioritariamente, que para conhecer de causa versando o direito de regresso fundado em legislação laboral é materialmente competente o tribunal comum e não o tribunal do trabalho. A mais recente jurisprudência dos tribunais superiores é clara nesse sentido.

Citam-se, por exemplo, os acórdãos do STJ de 22.06.2006 (Pº 06B2020), desta Relação de 17.06.2008 (Pº 74/08.6YRCBR.C1) e da Relação de Lisboa de 20.04.2010.

O tribunal em que a acção foi proposta é tribunal de competência genérica.

Os tribunais de competência genérica têm, segundo a L.O.T.J. (Lei nº 3/99 de 3.1), competência residual: compete-lhes preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal – art. 77º, nº 1 al. a). Daí a necessidade de o tribunal, ao apreciar a questão da competência em razão da matéria, verificar se a lei atribui, em face da causa em exame, tal competência a outra espécie de tribunal, designadamente a um tribunal de competência especializada.

A lei atribui aos tribunais do trabalho uma competência especializada.

Segundo o artigo 85º da LOTJ, compete aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível:

-- Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais (al. c);

-- Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente (al. o) ([1]).

Em vista desta al. o), poderia, concedendo, admitir-se que o litígio sobre o reembolso da quantia de € 7.725,92 e juros corre entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho e um terceiro. Todavia, a al. o) não é aplicável ao caso, dado que - é claro - esse pedido de reembolso não vem cumulado com outro para o qual o tribunal fosse directamente competente.

Resta-nos a consideração da al. c).

Diversamente do que a 1ª instância entendeu, não basta que a A. seguradora tenha englobado na causa de pedir a ocorrência de acidente de trabalho para se concluir pela aplicação do dito art. 85º, al. c).

Questões emergentes de acidente de trabalho ou de doença profissional são pedidos ou pretensões que emergem, resultam, têm como causa de pedir o acidente de trabalho ou a doença profissional. São objecto daquilo que o Código do Processo de Trabalho designa de processos de acidente de trabalho ou de doença profissional (visando a fixação de pensão, indemnização pecuniária ou prestações em espécie), incluindo os respectivos incidentes de revisão, remissão ou actualização de pensões.

Ora, o objecto da acção não se reporta à delimitação da responsabilidade da apelante e das apeladas pela reparação do acidente de trabalho sofrido pelo empregado 2º réu.

Como referiu o acórdão do STJ de 22.6.2006, supracitado: «Conforme resulta da factualidade articulada pela agravante na petição inicial, não se trata de apurar a obrigação (…) decorrente do acidente de trabalho e do contrato de seguro no confronto do sinistrado, mas de apurar se aquela (a A.) tem ou não direito de regresso (…) quanto ao montante que pagou em virtude dos mencionados contrato de seguro e acidente de trabalho. Ao invés do que foi entendido nas instâncias, o objecto da acção não se reporta à delimitação da responsabilidade da agravante e da agravada pela reparação do acidente de trabalho sofrido pelo empregado da última. Acresce que a verificação sobre se ocorrem ou não os pressupostos de facto e de direito da procedência da acção de regresso inscreve-se na problemática do próprio mérito da causa e não da competência do tribunal para a sua apreciação». (Os parêntesis são nossos).

Seguramente, não cabe nessa al. c) a presente causa.

O que a apelante visa realizar na acção é o direito de regresso na medida do que pagou por virtude do contrato de seguro celebrado com a agravada. E qualquer direito de regresso pressupõe a existência de norma que o permita e o prévio pagamento pelo seu titular. A A. apelante invocou o pagamento e bem assim o disposto no nº 4 do artigo 37º da Lei 100/97 de 13 de Setembro (L.A.T. – Lei dos Acidentes de Trabalho), que vem precisamente subordinado à epígrafe “Acidente originado por outro trabalhador ou terceiros” ([2]).

Todavia, nenhuma das alíneas do dito artigo 85º prevê o critério da natureza da norma como critério de atribuição da competência material aos tribunais do trabalho.

Pela referida norma legal da al. a) do nº 1 do art. 77º da LOTJ, o caso cabe na competência residual do tribunal de comarca.

Vale, de resto, aqui a doutrina do acórdão do STJ de 22.6.2006, supracitado, segundo o qual, sumariamente (nº 3), «compete ao tribunal de competência genérica ou ao juízo de competência cível específica, conforme os casos, conhecer da acção em que a seguradora, no exercício do seu direito de regresso, pede contra a tomadora do seguro de acidentes laborais a sua condenação no pagamento de quantia que tenha pago, com base em contrato de seguro de acidentes laborais (…)».

Em síntese final:

Compete ao tribunal de competência genérica da comarca conhecer da acção em que a seguradora, no exercício do direito de regresso, pede contra a tomadora do seguro de acidentes laborais a condenação no pagamento de quantia que tenha pago, com base em contrato de seguro de acidentes laborais, ainda que para o efeito invoque a concessão desse direito por preceito da Lei dos Acidentes de Trabalho.

Decisão:

Pelo exposto, acordam em julgar a apelação procedente, revogando a decisão impugnada.  

Custas pelos apelados.

Coimbra, 2011-09-13

Virgílio Mateus ( Relator )

Carvalho Martins

Carlos Moreira


[1] Inexistem outras alíneas que sejam candidatas à solução da questão concreta.
[2] Note-se que a decisão sobre a competência não deve envolver, ou ter como fundamento, a apreciação do mérito da causa. A questão da competência é logicamente anterior à decisão de mérito e apenas atende aos termos em que a causa vem configurada pelo seu autor.