Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3885/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. FERREIRA LOPES
Descritores: CONTRATO DE TRESPASSE E SUA EFICÁCIA
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃ
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 334º, 1038º, AL. G) , E 1118º, Nº 1, DO C. CIV. ; 64º, Nº 1, ALS. A) E F); 65º E 115º DO RAU .
Sumário:

I – O trespasse de um estabelecimento comercial não depende da autorização do senhorio do local onde está instalado, mas deve ser-lhe comunicado no prazo de 15 dias, pelo locatário, sob pena daquele poder resolver o contrato de arrendamento – artºs 1038, al. g), e 1118º ,nº 1, do C. Civ. ; 64º, nº 1, al. a), e 115º, nº 1, estes do RAU .
II – A invalidade do trespasse e a sua ineficácia em relação ao senhorio são fundamento da resolução do contrato de arrendamento relativa ao local onde está instalado o estabelecimento trespassado – artº 64º, nº 1, al. f), do RAU .
III – Tendo o senhorio tomado conhecimento de factos suficientes para peticionar a resolução de um contrato de arrendamento para fins comerciais, por violação das normas antes referidas, é a partir desse conhecimento que se deve contar o prazo para a propositura da corresponde acção, nos termos do artº 65º do RAU, uma vez que tais factos têm natureza de factos instantâneos ( são aqueles que assumem de per si essa significação, não necessitando de qualquer facto novo, nem que seja o seu prolongamento ou a não remoção em certo prazo previsível ) .
IV – Não integra a figura do “ abuso de direito “, na modalidade de “ venir contra factum proprium “ a invocação, pelo arrendatário, da caducidade do direito do senhorio para resolver um contrato de arrendamento comercial .
Decisão Texto Integral:
Apelação 3885/03
Leiria

Acordam na 3ª secção cível da Relação de Coimbra

Relatório.
AA e mulher BB, residentes em Barracão, Colmeias, Leiria, intentaram em 09.07.97 no Tribunal Judicial de Leiria, acção com processo sumário contra CC e mulher DD, residentes na EE, Pombal, alegando, em síntese, o seguinte:
O autor marido é dono de um barracão sito no lugar de Barracão, Leiria, que por contrato verbal deu de arrendamento ao Réu marido para o exercício do comércio, por volta de 1970/72, sendo que desde Julho de 1992 os RR não pagam a renda. Por outro lado, em fins de 1989 princípios de 1990, o Réu deixou de exercer ali a sua actividade, cedendo o barracão a uma sociedade que formou com os filhos, cedência por contrato verbal sem o conhecimento e consentimento dos AA, pelo que é nula. Os factos alegados são fundamento da resolução do contrato (art. 64º, alíneas a) e f) do RAU, em consequência do que pedem:
A resolução do contrato de arrendamento a que se reportam os autos;
A condenação dos RR a entregar-lhes, no dia subsequente ao do trânsito em julgado da sentença, livre e devoluto de pessoas e bens, o barracão em referência, bem como a pagarem-lhes a quantia de 1.200.000$00 (um milhão e duzentos mil escudos), correspondente às rendas vencidas desde Julho de 1992 a Junho de 1997, no valor mensal de 20.000$00 cada e bem assim as rendas vincendas desde Julho de 1997 até à entrega do barracão.

Os RR contestaram, no sentido da improcedência da acção e deduziram reconvenção pedindo a condenação dos AA a pagarem-lhes 1.700.000$00, para o que alegaram:
Caducou o direito de resolução do contrato com base na alegada cessão não autorizada, dado que decorreu mais de um ano entre a data em que os autores tomaram conhecimento do fundamento de resolução e aquela em que instauraram a presente acção, ocorrendo também a caducidade do direito de resolução do contrato por alegada falta de pagamento da renda, face ao depósito condicional que entretanto efectuaram e que documentam nos autos. De qualquer modo, já havia caducado tal direito dos autores relativamente às rendas vencidas há mais de um ano, tendo como referência a data de propositura da acção.
Impugnam depois os fundamentos de resolução invocados pelos autores.
Em relação à alegada cessão não autorizada, dizem ter o Réu comunicado ao Autor a sua intenção de constituir uma sociedade com os seus filhos que iria exercer a mesma actividade comercial no locado, ao que o Autor não se opôs e que depois de constituída a sociedade tal facto foi-lhe comunicado, tendo o Autor aceitado diversos cheques da sociedade para pagamento da renda. Entendem por isso que os autores autorizaram a instalação ou cedência do locado à sociedade e expressamente a reconheceram como arrendatária.
Não existe mora do Réu no pagamento da renda, pois, a partir da constituição da sociedade, tal obrigação é da sociedade, que efectuou o pagamento das rendas através de diversos cheques, tendo o Autor recusado a emissão dos correspondentes recibos.
Invocam ainda abuso de direito por parte dos autores, dado que a actuação do réu foi condicionada pelo assentimento do autor.
Com o pedido reconvencional pretendem o reembolso de despesas referentes a benfeitorias realizadas no locado, totalizando na ocasião o montante de 163.800$00 e correspondendo agora (à data da contestação) ao montante de 1.700.000$00.

Os AA responderam às excepções suscitadas pelos réus e à reconvenção e os RR apresentaram contra-resposta.

No despacho saneador julgou-se válida a instância, relegou-se para sentença final o conhecimento das excepções suscitadas pelos réus, e apreciado o pedido reconvencional, foi o mesmo julgado improcedente, por decisão transitada em julgado.
Especificaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.

Tendo falecido o Autor marido foram habilitados como seus sucessores a viúva BB e o seu filho FF.

Realizado o julgamento e respondida a matéria de facto sem qualquer censura, foi proferida sentença que julgou improcedente o pedido dos AA à resolução do contrato de arrendamento, por caducidade de tal direito, e atribuiu-lhes as quantias depositadas nos autos.
Inconformados com a sentença dela apelaram os AA rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª - Pela douta sentença sob recurso, decidiu o Mmº Juiz a quo julgar a acção improcedente, absolvendo os RR/recorridos do pedido, por entender, fundamentalmente e com interesse para o presente recurso, que, assistindo embora aos AA o direito a pedirem a resolução do contrato de arrendamento, nos termos do art. 64º nº1 al. f) do RAU, tal direito caducou, nos termos do art. 65º do mesmo diploma, sendo que, em face dessa extinção, não têm os AA interesse na declaração de nulidade do trespasse do estabelecimento, nos termos do art. 286º do Cód. Civil.
2ª - Tendo o Réu celebrado secretamente o trespasse, não lhe dando a forma exigida por lei, assim obstando ao conhecimento dos respectivos termos e condições pelo senhorio, impõe-se concluir que este continua sem dispor “de todos os elementos de que carece para se decidir conscienciosamente a resolver ou a não resolver o contrato”, pelo que se está perante um facto continuado ou duradouro, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do art. 65º do RAU.
3ª - Por mera cautela, em face das circunstâncias da formalização do trespasse, a considerar-se existir caducidade, a invocação da mesma por parte dos RR constitui um abuso de direito, na forma de venire contra factum proprium, sendo ilegítima, nos termos do disposto no art. 334º do Cód. Civil.
4ª - Donde que a sentença recorrida violou o disposto nas referidas normas, devendo, em consequência, ser revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente, nos termos peticionados na p.i., por força do disposto no art. 64º nº1 alínea f) do RAU.
5ª - Ainda por mera cautela de patrocínio, e sem conceder, sempre se aduz que, mesmo a improceder a resolução contratual pedida, por caducidade, deverá o trespasse ser declarado nulo, por vício de forma, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos arts. 115º nº3 do RAU, e 220º e 285º e sgs. do Cód. Civil, quer por tal ser do interesse dos AA, nomeadamente para efeitos de direito de preferência, quer por imperativos de ordem pública, revogando-se a douta sentença recorrida.
Contra-alegaram os recorridos pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
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Fundamentação de facto.
Na 1ª instância foram julgados provados os seguintes factos:
I - GG era dono e legítimo possuidor de um conjunto de três barracões e terreno anexo, com a área coberta de 765 m2 e descoberta de 1.555 m2, sito no lugar de Barracão, freguesia de Colmeias, Leiria, a confrontar do norte com HH, nascente com II, sul com JJ e poente com estrada nacional n.º 1, que faz parte do prédio misto descrito na Conservatória de Registo Predial de Leiria sob o n.º 73836, a fls. 139 do livro B-201, e se encontra inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2.261 e artigo 9.425 da matriz rústica da mesma freguesia – alínea A) da especificação.
II - Por acordo verbal celebrado em data imprecisa dos anos de 1970 a 1972, GG cedeu ao Réu marido, para o exercício da actividade de comércio de pneus que o Réu exercia, um barracão com a área aproximada de 250 m2, que faz parte do conjunto predial identificado na alínea A) – alínea B) da especificação.
III - O barracão cedido ao Réu situa-se sensivelmente do meio para norte do conjunto de construções, tendo sido acordada a renda mensal de 800$00 (oitocentos escudos) que, actualmente, por força das actualizações, é de 20.000$00 (vinte mil escudos) – alínea C) da especificação.
IV - Desde Julho de 1992, o Réu não paga as rendas – alínea pública D) da especificação.
V - Por escritura de 21 de Novembro de 1989, outorgada no Cartório Notarial de Ansião, foi constituída a sociedade “KK”, sendo os sócios e gerentes da sociedade o Réu marido, DD e LL, obrigando-se esta sociedade com a assinatura do Réu marido ou com as assinaturas conjuntas dos dois outros gerentes (documento de fls. 44 a 46) – alínea E) da especificação.
VI - O Réu marido deixou de exercer a actividade referida na alínea B) a partir de data imprecisa de finais de 1989/princípios de 1990, tendo cedido, verbalmente, o local à sociedade referida na alínea E), a qual passou a exercer ali o seu objecto de comércio de pneus – alínea F) da especificação.
VII - A sociedade desde então vem exercendo ali a sua actividade, vendendo pneus, guardando mercadorias, máquinas e materiais – alínea G) da especificação.
VIII - A sociedade “KK”, através dos seus sócios, em Fevereiro de 1990, pretendeu pagar a GG a renda daquele mês, tendo-se este recusado a receber a renda e a emitir o correspondente recibo – alínea H) da especificação.
IX - No dia 24 de Outubro de 1997, o Réu CC procedeu ao depósito de 1.950.000$00 (um milhão novecentos e cinquenta mil escudos) na Caixa Geral de Depósitos de Pombal, depósito efectuado à ordem deste Tribunal e processo (documento n.º 1, a fls. 62) – alínea I) da especificação.
X - Em 7 de Fevereiro de 1990 e em 7 de Março de 1990, a sociedade “KK” remeteu por carta a GG os cheques n.º 5748594002 e n.º 8248594010, respectivamente, emitidos sobre conta de que era titular no Banco Pinto & Sotto Mayor, para pagamento da renda – resposta ao quesito 4º.
Estes os factos provados.
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Fundamentação de direito.
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado, como se sabe, pelas conclusões da alegação dos apelantes (artigos 684º, nº3 e 690º, nº 1 do Cód. Processo Civil), passa pela análise e decisão das seguintes questões:
a) se caducou o direito dos AA de pedirem a resolução do contrato;
b) se, a existir tal caducidade, a invocação desta pelos RR constitui abuso de direito;
c) se deve ser declarado nulo por vício de forma o trespasse.
Vejamos então, começando pela questão enunciada em a).
Escreveu-se na sentença:
“O Réu fez a cedência da sua posição contratual sem que tenha demonstrado ter autorização do senhorio; entendendo-se que essa cedência consubstancia trespasse, não observou quanto a este a forma legalmente estatuída, à data em que ocorreu.
Estes factos configuram o fundamento da resolução do contrato de arrendamento previsto no art. 64º, nº1 alínea f) do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), enquanto representam cedência da posição contratual ilícita (porque contrária à lei), inválida por falta de forma e ineficaz em relação ao senhorio, por não se ter demonstrado que lhe foi efectuada a comunicação ou que ocorreu o reconhecimento a que se reporta o art. 1049º do Cód. Civil.”
A seguir considerou-se que, consubstanciando o comportamento do Réu um facto ilícito instantâneo, os AA deixaram caducar o direito de pedirem a resolução do contrato ao intentarem a acção de resolução muito depois de decorrido o prazo de um ano estabelecido no art. 65º do RAU.
Entendeu a sentença, com o que concordam os recorrentes e os recorridos, que o contrato pelo qual o Réu marido, por volta de 1989 princípios de 1990, cedeu o locado à sociedade “KK”, consubstanciou um trespasse.
Este contrato, que pode definir-se como aquele pelo qual se transmite definitiva, e em princípio onerosamente, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado, para ser válido deveria ter sido celebrado por escritura pública (art. 1118º nº3 do Cód. Civil, a lei em vigor à altura dos factos, e art. 115º nº3 do DL nº 321-B/90 de 15 de Outubro que aprovou o Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (RAU), em vigor a partir de 18 de Novembro de 1990). Actualmente já não é assim pois agora, após o DL 64-A/2000, de 22/4, a validade do trespasse exige apenas que seja celebrado por escrito.
O trespasse que não dependia, nem depende da autorização do senhorio (artigo 1118º nº1 e art. 115º nº1 do RAU), deve, no entanto, ser comunicado ao senhorio no prazo de 15 dias pelo locatário (art. 1038º al. g) do Cód. Civil), sob pena de aquele poder resolver o contrato (art. 64º nº1 al. ) do RAU).
Pois bem.
No caso dos autos, o trespasse, além de inválido por inobservância da forma legal, não foi comunicado ao Autor/senhorio no prazo legal de 15 dias.
A invalidade do trespasse e a sua ineficácia em relação ao senhorio, são fundamento da resolução do contrato de arrendamento. Na verdade, dispõe o art. 64º nº1 alínea f) do RAU que, “o senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário subarrendar ou emprestar, total ou parcialmente, o prédio arrendado, ou ceder a sua posição contratual, nos casos em que estes actos ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o diposto no art. 1049º do Cód. Civil.”
O problema que se coloca no recurso é apenas saber se caducou ou não o direito dos AA a pedirem a resolução do contrato, uma vez que é incontroverso não ter sido observada a foma legal para a validade do trespasse, bem como a falta de comunicação aos AA do mesmo no prazo legal, sendo também pacífico não se verificar a excepção do art. 1049º (ter o locador reconhecido o beneficiário da cedência como tal ou a comunicação lhe tiver sido feita por este).
Julgou a sentença que sim, contra o que se insurgem os apelantes.
A este propósito dispõe o art. 65º do RAU:
“1 - A acção de resolução deve ser proposta dentro de um ano, a contar do conhecimeno do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade.
O prazo de caducidade previsto no número anterior, quando se trate de facto continuado ou duradouro, conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado.”
Dos factos provados resulta que, pelo menos em Fevereiro de 1990, os AA tomaram conhecimento que o locado fora cedido à sociedade “MM”. Só em Julho de 1997 os AA intentaram esta acção de resolução do contrato de arrendamento.
Parece-nos indiscutível ter caducado o direito à resolução do contrato.
A partir de Fevereiro de 1990, quando confrontados com a pretensão da sociedade trespassária de pagar a renda, os AA ficaram em condições de pedir a resolução judicial do contrato de arrendamento com base, pelo menos, na falta de comunicação do trespasse. Os apelantes alegam na conclusão 2ª, que “o senhorio por não conhecer os termos e condições do trespasse continua sem dispor de todos os elementos de que carece para se decidir a resolver ou não o contrato, pelo que se está perante um facto continuado ou duradouro.”
Não se concorda com esta afirmação. Os apelantes em Fevereiro de 1990 tomaram conhecimento dos factos suficientes para peticionarem a resolução do contrato, tendo aqueles a natureza de facto instantâneo e não continuado ou duradouro.
A este propósito, referindo-se ao art. 1093º do Cód. Civil mas com plena aplicação à norma correspondente do RAU, ensinou o Prof. Orlando Carvalho, RLJ ano 118, pag. 230:
“Causas instantâneas serão as que assumem de per si essa significação, não necessitando (nem nada lhes acrescentando) qualquer facto novo, nem que seja o seu prolongamento ou a não remoção em certo prazo previsível. É o que se passa com a alínea a) – não pagamento da renda nem depósito liberatório -, mas também com as das alíneas b), d), e), f) e g). Causas não instantâneas de despejo serão aquelas em que para o desencadeamento da reacção sancionatória se exige certo contexto, o que ocorre com as situações previstas nas alíneas c), h), i) e j).”
Também para o Prof. Pereira Coelho, Arrendamento, 1988, pag. 291, “a violação deve qualificar-se como instantânea quando a conduta violadora for uma só, realizada em dado momento temporal, embora os seus efeitos permaneçam ou se protraiam no tempo; só deverá ter-se como continuada quando o processo de violação se mantenha em aberto, alimentado pela conduta persistente do locatário. No primeiro caso caso – violação instantânea – o senhorio já dispõe de todos os elementos para tomar uma decisão; só no segundo se justifica que a lei lhe dê a possibilidade de decidir, em face das circunstâncias, e enquanto a conduta violadora se mantiver, sobre a resolução ou não do contrato.” Como exemplos de violação instantânea, aquele ilustre professor aponta as situações previstas nas alíneas d) e f) do nº1 do art. 1093º do Cód. Civil, hoje correspondentes às alíneas d) e f) do art. 64º do RAU; e de violação continuada as actualmente previstas nas alíneas b), c), e), g), h) e i).
No mesmo sentido, isto é de que constitui um facto instantâneo, para efeitos da caducidade de pedir a resolução do contrato de arrendamento, a causa prevista no art. 64º nº1 al. f) do RAU, Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil anotado, vol. II, 4ª edição, pag. 616.
Na jurisprudência, pode citar-se o Ac. da Relação de Lisboa de 10.05.2001, CJ, ano XXVI, tomo 3, pag. 87, segundo o qual: “Para efeitos de caducidade do direito de resolução, a cessão ilícita da posição contratual constitui facto de execução instantânea ou temporariamente determinado, pelo que a acção de resolução deve ser proposta dentro do prazo de um ano a contar do seu conhecimento.”
Assim, a violação do contrato pelo Réu, consubstanciada num trespasse inválido por falta de forma e não comunicado tempestivamente, consumou-se com a prática de tais actos, contando-se a partir do conhecimento dos mesmos pelo senhorio o prazo para a propositura da acção.
Ora tendo os Autores intentado esta acção de resolução cerca de sete anos depois de terem tomado conhecimento do trespasse, impõe-se concluir ter ocorrido a caducidade do direito a pedirem a resolução do contrato pelo decurso do prazo fixado no art. 65º do RAU.
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Cuidemos agora de apreciar a segunda questão. A invocação da caducidade pelos RR integrará abuso de direito, na modalidade de venir contra factum proprium ?
Dispõe o art. 334º do Cód. Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons constumes ou pelo fim social ou económico do direito.”
Existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítima e razoável, em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito ( Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, pags. 63 e sgs).
Um caso típico de abuso de direito é a proibição de venir contra factum proprium.
Esta variante do abuso de direito, nos dizeres do Ac. do STJ de 02.07.96, BMJ 459/519, “equivale a dar dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois que pressupõe duas atitudes dela espaçadas no tempo, sendo a primeira delas (o factum proprium) contrariada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e correcção uma manifesta violação dos limites impostos pelo princípio da boa fé; pelo que não é de admitir que essa pessoa possa invocar e opor um vício por ela causado culposamente, vício este que a outra parte confiou em que não seria invocado e nesta convicção orientou a sua vida.”
Sendo este o sentido da proibição de venir contra factum proprium, como modalidade de abuso de direito, não vemos em que medida o comportamento dos RR, ao alegarem como meio de defesa a caducidade do direito invocado pelos AA, violou princípios de lealdade e correcção. A atitude os RR não contradiz nenhum comportamento seu anterior, pelo que inexiste qualquer abuso de direito no facto de oporem à pretensão dos AA a caducidade do seu direito.
Improcede, assim, a conclusão 3ª da alegação dos apelantes.
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Por último, vejamos se deve ou não ser declarada a nulidade do trespasse.
Que o trespasse não obedeceu à forma exigida por lei, é algo que não suscita dúvidas. Também é consabido que a inobservância da forma legal implica a nulidade da declaração negocial, art. 220º do Cód. Civil, podendo a nulidade ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado e mesmo ser declarada oficiosamente pelo tribunal, art. 286º do Cód. Civil.
Isto não significa, no entanto, que essa declaração de nulidade possa ser aqui declarada.
A presente acção é de despejo, e visa fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, artigos 55º e sgs. do RAU.
Daí que os pedidos formulados pelos AA tenham sido justamente os previstos neste tipo de acção: a resolução do contrato e entrega do imóvel locado, bem como o pedido de condenação dos RR no pagamento das rendas, como permite o nº 2 do art. 56.
Coisa diferente seria uma acção que tivesse como fundamento a nulidade por falta de forma do contrato de trespasse, que teria necessariamente de ser intentada contra as partes intervenientes em tal contrato, no caso o Réu marido e a sociedade “KK”, como trespassária.
A declaração de nulidade do trespasse, não tendo a soc. “KK” tido intervenção no processo, constituiria violação flagrante do art. 3º do Cód. Processo Civil, cujo nº1 proíbe o tribunal de resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes, e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Pelo exposto, não pode o tribunal declarar a nulidade do contrato de trespasse celebrado entre o Réu e a soc. “KK”.
Improcedem, pois, as conclusões dos apelantes, o que determina a improcedência do recurso.
Decisão.
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e consequentemente confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Coimbra,