Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
755/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: LETRA
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 06/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 70.º DA LEI UNIFORME; ARTIGOS 46.º, AL. C); 163.º, N.º 2; 466.º, N.º 1; 467.º, 1, D) E 811.º, AL. B) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E ARTIGO 458, N.º 1.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. No domínio das relações imediatas, a letra prescrita é válida como título executivo contra o aceitante, porque relativamente a este contém a promessa duma prestação ou o reconhecimento duma dívida perante o credor (artigo 458º, n.º 1 do Código Civil).

2. Vale como causa de pedir na acção executiva, cujo título é uma letra prescrita, a menção nela de que o valor se refere a transacção comercial.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A..., por apenso à execução que lhe move B..., deduziu embargos de executado, onde opõe a prescrição das letras dadas à execução e conclui pela extinção da execução.
A exequente contesta, mantendo que, apesar da prescrição da obrigação cambiária, as letras constituem título executivo, nos termos do artigo 46.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil, por serem documentos particulares assinados pelo devedor, que importam o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, cujo montante está determinado. Conclui pela validade do título executivo, improcedência dos embargos e prosseguimento da execução.

2. Logo no saneador o sr. Juiz julgou improcedentes os embargos e mandou prosseguir a execução.
A embargante não se conforma e apela a esta Relação, concluindo que a prescrição das obrigações cambiárias importa a extinção dos títulos, porque neles não consta a “razão da ordem de pagamento”, sem a qual não estão reunidos os requisitos indispensáveis para que tais letras possam valer como título executivo.

3. A embargada contra-alegou, em defesa do julgado. Estão colhidos os vistos. Cumpre conhecer e decidir.
São dados como provados os seguintes factos:
1) B... instaurou, em 22/10/2004, acção executiva contra a A..., correndo tal acção por apenso a esta.
2) Os títulos apresentados na referida execução são três letras que apresentam, como datas de vencimento, respectivamente, 30/10/2000, 30/11/2000 e 30/12/2000.
3) Em tais letras, a executada figura na posição destinada ao sacado, bem como na face, lado esquerdo, transversalmente, figurando a exequente na posição destinada ao sacador.
4) Tais letras têm, na sua face, a expressão “transacção comercial”.

Também não é posto em causa o decurso do prazo de três anos, previsto no artigo 70.º da LULL, aquando da instauração da execução apensa, pelo que este é igualmente um facto assente.


4. Na 1ª Instância o Sr. Juiz decidiu manter as letras como títulos válidos, apesar de prescrita a obrigação cambiária, porque estas, como documentos particulares assinados pelo devedor, se enquadram na previsão do artigo 46º, al. c) do Código de Processo Civil.
A apelante discorda desse entendimento e por isso a questão que agora se coloca e urge resolver é a de saber se, prescrita a obrigação cambiária das letras dadas à execução, ainda assim se mantém a validade do título executivo, agora como mero escrito particular assinado pelo devedor, nos termos da al. c) do artigo 46º do Código de Processo Civil, já que a prescrição surge aqui como um dado inquestionável.

Colhe-se dos autos que as letras são do aceite da embargante e sacadas pela embargada, mantendo-se, por isso, no domínio das relações imediatas.
Invocada com sucesso a prescrição da obrigação cambiária, põem-se logo de parte o regime que lhe é próprio e trata-se de saber se os títulos, ainda assim, mantém a virtualidade de servirem como títulos executivos, ou se não servirão apenas para prova da obrigação subjacente (meros quirógrafos). Seja qual for a resposta ela tem de deixar de contar com o regime assente na Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
É unânime a jurisprudência no sentido de que a prescrição da obrigação cambiária não afecta a obrigação que a determinou, não implicando, por isso, a extinção de obrigação subjacente ou causal, que subsistirá enquanto se não houver extinguido nos termos gerais. [ cfr. Acórdãos da RL., de 20/01/78, Col. Jur., I, 51; da RP, 17/01/78, Col. Jur., I, 130; RÉ, de 18/06/76, Col. Jur. II, 413 ]
O problema agora é, repete-se, só o de saber se aquelas letras, prescrita a obrigação cambiária, ainda podem valer como título executivo em relação ao único devedor cambiário que nelas figura – o aceitante.
Estamos a ver a diferença: pela relação cambiária o portador podia usar as letras como título executivo contra qualquer dos obrigados cambiários. Podia executar o sacador ou o aceitante ou um qualquer endossante ou avalista, porque é isso que resulta do regime jurídico da Lei Uniforme. Mas se deixou prescrever a obrigação cambiária já não pode fazer apelo às normas que definem o regime de cobrança específico do direito cartular.
A prescrição da obrigação cambiária é extintiva, na medida em que tal obrigação se extingue por ter decorrido o prazo previsto no artigo 70º da Lei Uniforme e não por se presumir o cumprimento [ Acórdão da Relação de Lisboa, 16/01/79, Col. Jur., V, 1074
].
Extinta, então, a obrigação cambiária, temos agora de construir a solução a partir do preceituado no artigo 46º, al. c) do Código de Processo Civil, na medida em que diz poderem servir de base à execução "os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º...."
Ora, a letra é um documento particular e vem assinada, no mínimo, pelo sacador e pelo aceitante, na medida em que o aceite é do sacado, e pode ainda conter assinaturas de endossantes e avalistas. Logo, a letra está em condições de servir de título executivo contra quem a assina como titular duma relação constitutiva da obrigação pecuniária que dela consta ou simplesmente por quem através dela reconhece tal obrigação.
Ou seja, pode servir de título executivo contra o sacador, quando não é o portador, na medida em que se refira ao desconto ou este seja invocado no requerimento inicial como causa de pedir; e pode servir de título executivo contra o aceitante, porque, relativamente a este, contém a promessa duma prestação ou o reconhecimento duma dívida (artigo 458º, n.º 1 do Código Civil). [ Cfr. Lebre de Freitas Acção Executiva, 2ª edição, pág. 53 e 54.]
Nesta óptica, não se vê razão para conferir à letra, apesar de prescrita, menos exequibilidade do que a outro documento particular, que importe a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.
Quanto às letras aqui questionadas trata-se de documentos particulares assinados pelo devedor (sacado/aceitante), que importam a constituição de uma obrigação pecuniária de montante determinado. E na medida em que contém a promessa duma prestação ou o reconhecimento duma dívida, valem como título em que a relação fundamental legalmente se presume (artigo 458º, n.º 1 do Código Civil).


5. A apelante entende que devia constar das letras a “razão da ordem de pagamento”, sem a qual não estão reunidos os requisitos indispensáveis para que possam valer como título executivo e cita, em abono da sua tese, o acórdão desta Relação proferido no Processo n.º 1537/2002.
Começa o texto do respectivo sumário por dizer que “prescrita a obrigação cambiária, os documentos particulares só valem como títulos executivos se, além de constar uma ordem de pagamento de uma quantia determinada ou determinável, deles constar também a razão de ordem de pagamento, qualquer referência identificadora da origem da mesma, porque só assim se pode demonstrar que se constituiu ou reconheceu uma obrigação pecuniária”.
Ora, esta “razão de ordem de pagamento”, mais não é que a causa de pedir, pressuposto comum da acção declarativa e executiva (cfr. artigos 467.º, 1, d), 466.º, 1 e 811.º, b) do Código de Processo Civil), que tem de constar, ou no próprio título, ou na própria petição inicial. [ L. Freitas, ob. cit.133/134]
Num caso como o dos autos, em que o título contém uma promessa de cumprimento de dívida e o credor está dispensado de provar a relação fundamental, nos termos do artigo 458.º, n.º 1 do Código Civil, o título é suficiente [ Sobre esta questão da suficiência do título, veja-se Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lx. 1998, págs. 68 e 69], mas não dispensa a indicação da causa de pedir. Essa, ou consta do título, ou tem que ser alegada no requerimento inicial, para que o executado possa tomar posição em sede de defesa/oposição.
O processo subiu em separado da acção executiva e sem cópia do requerimento inicial executivo, para se poder observar o que se alega como causa de pedir, sendo certo que a exequente alega na sua contestação a estes embargos ter “sido referida, no requerimento inicial executivo, a relação inicial subjacente à entrega da letra” (cfr. fls. 31, ponto 19), afirmação que não foi posta em causa em momento posterior, designadamente em sede de recurso, onde a recorrente apenas se refere às letras.
Mesmo que se não viesse a constatar a veracidade da afirmação da exequente, sempre as letras contém uma afirmação (que lhes é própria) e pode servir de causa de pedir. Referimo-nos à expressão “transacção comercial”. Tais letras têm, na sua face, a expressão “transacção comercial”, diz-se acima no ponto 3. 4). E isso tem de querer dizer alguma coisa. No seu contexto, quando a letra foi preenchida para valer como título cambiário, isso queria dizer que o valor constante da letra se refere a uma transacção comercial.
Consequentemente, tendo por base uma transacção de natureza comercial, realizada entre as partes, o sacado/aceitante reconhece a obrigação de pagar a quantia constante do título, e compromete-se a pagá-la ao sacador, ou à sua ordem, na data aí mencionada.
Claro que a natureza cartular da obrigação cambiária permite ao sacador e a qualquer portador executar o título pela quantia nele constante, independentemente da verificação da existência duma qualquer transacção comercial. No domínio das relações imediatas e na vigência da obrigação cambiária, que para aqui nos interessa, o credor pode accionar a letra contra o devedor aceitante, invocando ou não a relação que lhe deu origem.
Trata-se de uma obrigação abstracta que por isso dispensa a alegação de qualquer causa de aquisição da prestação, dado que a exigência desta não está dependente da demonstração de qualquer causa debendi. O título executivo é suficiente para fundamentar a execução, mesmo que dele não conste a causa debendi [ T. Sousa, ob. cit. 68].
Mas, logo que prescrita a obrigação cambiária, o título deixa de ter a natureza de uma obrigação abstracta, para passar a constituir uma obrigação causal e nesse caso impõem-se que se alegue a causa debendi, para individualizar a obrigação. [ Ibidem, 69] Se esta não constar ou não resultar do título executivo, este deverá ser completado com essa alegação na petição inicial, sem o que será inepta por falta de indicação da causa de pedir (artigo 163, n.º 2, a) do Código de Processo Civil).
No nosso caso, a referência nos títulos de que o valor se refere a transacção comercial, conjugada com o facto de a executada não se opor à existência da dívida, opondo apenas a prescrição da obrigação cambiária, leva-nos a concluir que aquela referência basta para que resulte, para a executada, perfeitamente individualizada a obrigação e, como tal, cumprido o requisito da indicação da causa de pedir. Assim se decidiu no acórdão do STJ de 30/10/2003 [ Ver em www.dgsi.pt , acórdãos do STJ, Processo n.º 03B3056 ].
Podemos, pois, concluir que:
1. No domínio das relações imediatas, a letra prescrita é válida como título executivo contra o aceitante, porque relativamente a este contém a promessa duma prestação ou o reconhecimento duma dívida perante o credor (artigo 458º, n.º 1 do Código Civil).
2. Vale como causa de pedir na acção executiva, cujo título é uma letra prescrita, a menção nela de que o valor se refere a transacção comercial.
Assim se tem vindo a decidir ultimamente nesta Relação. [ Vide, entre outros, Acórdão de 23/05/2000, Apelação n.º 680/2000, 1ª Secção, Relator Ferreira de Barros, sumário publicado na internet em www.trc.pt - cheque 88/4; e acórdão de 26/09/2000, Apelação n.º 1394/2000, Relator Regina Rosa, sumário publicado na internet em www.trc.pt - cheque, título executivo 01096; e acórdão de 20/02/2001, Relator Emídio Rodrigues; em www.dgsi.pt , processo n.º 1813/2000.]

6. Decisão
Por todo o exposto acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, para confirmarem, como confirmam, a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
Coimbra,
[ Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Ferreira de Barros e Helder Roque ]