Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2158/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: NEGÓCIO CONSIGO MESMO
CONTRATO OUTORGADO POR ADMINISTRADOR COMUM ÀS SOCIDADES AUTORA E RÉ
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTº 397º, Nº 2, DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: Não se verifica a existência da figura do negócio consigo mesmo, pelo facto de um contrato ter sido outorgado por um administrador comum às sociedades autora e ré, se, tendo em consideração que estas têm personalidade própria, distinta da do aludido administrador, este teve intervenção apenas na qualidade de representante da autora, tendo a ré sido representada no contrato por outra pessoa, que não esse administrador.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., intentou, em 15/01/2002, pelo Tribunal da comarca de Tomar, acção sob a forma de processo ordinário contra B...; e ...C, alegando, em síntese:
A autora dedica-se à elaboração de projectos de engenharia e cadernos de encargos, bem como à coordenação de obras de construção civil, enquanto a 1.ª ré se dedica à actividade de realização e administração de empreendimentos turísticos.
Em 1998, a 1.ª ré deu início à execução do projecto da Aguieira, num total de 400 habitações, hotel, aparthotel, marina e infra-estruturas de lazer. Acordaram então a celebração de um contrato denominado de prestação de serviços.
Sucede que, muito embora a autora tenha prestado os serviços acordados, a 1.ª ré não pagou as importâncias acordadas, que se elevam a € 30.405,20, o que motivou a posterior denúncia do contrato. A tal importância em dívida acrescem juros no montante de € 870,70.
A autora teve conhecimento que a 1.ª ré outorgou a 22/8/2001 com o 2.º réu a escritura denominada de dação e promessa de compra e venda, de acordo com a qual a 1.ª ré deu ao 2.º réu os prédios rústicos que correspondem ao Empreendimento Turístico D’Aguieira, pelo que todas as obrigações relacionadas com tal empreendimento foram assumidas pelo 2.º réu.
Termina, pedindo que, na procedência da acção, sejam os réus condenados solidariamente no pagamento de € 31.275,90, acrescido de juros de mora vincendos até integral pagamento.
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Apenas o réu C... contestou a acção, impugnando a generalidade da matéria alegada e referindo que o contrato outorgado entre a autora e a 1.ª ré é nulo, porque o representante da autora que o outorgou era à data também administrador da 1.ª ré.
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A acção foi decidida no saneador, tendo-se julgado procedente a excepção invocada pelo 2º réu, anulando-se o contrato outorgado em 01/01/1999 entre a autora e a 1ª ré e improcedente o pedido formulado pela mesma autora.
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Inconformada, apelou a autora, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1- Os negócios celebrados entre a sociedade e os seus administradores são disciplinados no artº 397º do Código das Sociedades Comerciais e não pelo artº 261º do Código Civil.
2- Os contratos celebrados nessas condições são nulos e não meramente anuláveis, como sucede na lei civil.
3- Contudo, a declaração da sua nulidade é ressalvada verificadas as circunstâncias previstas nos nºs 2 e 5 do artº 397º do CSC.
4- O negócio jurídico celebrado entre a apelante e a sociedade comercial B..., deve ser apreciado tendo em conta as regras estabelecidas no Código das Sociedades Comerciais, podendo ter sido declarado nulo se se tivesse alegado e provado que dele resultara alguma vantagem especial ao administrador comum às duas empresas ou à sociedade que ele nela representa, ou seja, a apelante.
5- A inaplicabilidade, ao caso sub judice, do preceituado no artº 261º do CC resulta do facto de existir lei especial, que é a constante do Código das Sociedades Comerciais, que regula as relações entre as sociedades e os seus administradores, por si ou por interposta pessoa.
6- Por outro lado, não sendo a anulabilidade de conhecimento oficioso e não vindo pedida por nenhuma das partes, não podia o tribunal declará-la.
7- O Banco contestante, ainda que tivesse pedido a anulabilidade do negócio, com base no disposto no artº 261º do CC, e fosse esse o vício de que ele enfermava, esse pedido não podia ser atendido porque, reconhecidamente, o Banco não teve nada a ver com tal contrato nem podendo os seus efeitos ter qualquer repercussão na sua esfera jurídica.

8- É que a anulabilidade só pode ser arguida por quem nela tenha interesse, o que não é o caso do Banco.
9- Ao pronunciar-se pela anulabilidade do contrato, nos termos em que o fez a decisão recorrida é nula, por violação do disposto no artº 668º, nº 1, al. d).
10- A decisão recorrida viola o disposto nos artºs 261º e 287º do Código Civil e 397º, nºs 2, 3 e 5, do Código as Sociedades Comerciais.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, condenando-se a ré B..., no pedido formulado e dele se absolvendo o réu C....
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Para a decisão do recurso importa ter em consideração o seguinte:
A) - Foi junto com a petição inicial um documento, com o nº 1 (fls. 7 e 8), com a seguinte redacção (na parte que aqui interessa): “CONTRATO – Entre as sociedades B..., com sede na Rua de Santa Iria, nº 32 cv, Tomar, (…), no presente contrato representada por Dr. Paulo Manuel Quintão Guedes de Campos e A..., com sede na Bela Vista, Águeda, (…), no presente contrato representada pelo Eng. Paulo Alexandre Mendonça da Silva (…), ajusta-se entre ambas o seguinte:
1º - A Segunda Contraente prestará à primeira os serviços anteriormente referidos na obra propriedade da Primeira a decorrer na parcela “D” do Empreendimento do Vale da Aguieira, Crafuncho, Mortágua e que consiste na construção de um conjunto habitacional e na parcela “B” do mesmo empreendimento e que consiste na construção de infra-estruturas de turismo e lazer.
§ Único………………………………………………………………………
2º - O prazo do contrato é de um ano, com início em um de Janeiro de 1999 e renovar-se-á por igual período de tempo (…).
3º - O preço é de 4.896.000$00 anuais para os serviços prestados na fracção

“B” é de 5.208.000$00 anuais para os serviços prestados na fracção “D” preços sem IVA e será pago em duodécimos mensais.
Elaborado em Tomar, em duplicado, em 1 de Janeiro de 1999”.
Seguem-se as assinaturas dos respectivos representantes.
B) - O representante da A... (ora autora) no contrato era, na altura, administrador da B... (doc. de fls. 45/55).
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No saneador/sentença decidiu-se que não se verifica a nulidade do negócio celebrado entre a autora e a ré B..., por violação do preceituado no artº 397º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais, como vem invocado pelo réu C..., uma vez que não houve qualquer negócio entre uma sociedade e um seu administrador, mas sim entre duas pessoas distintas, a autora e a 1ª ré.
Mais se decidiu que, no entanto, a situação configura a verificação de um contrato consigo mesmo, com previsão no artº 261º do Código Civil - que pode ocorrer quando o gerente de duas sociedades distintas, actuando como seu representante, celebra determinado contrato -, o qual é meramente anulável.
E, muito embora o 2º réu tenha enquadrado esta questão em sede de nulidade do artº 397º do C.S.Com., entendeu-se que a diferente qualificação jurídica pelo Tribunal não obsta ao seu conhecimento e declaração e que, dado que foi deduzido um pedido contra o 2º réu, com fundamento em tal negócio, embora não outorgante, o Banco tem legitimidade para arguir o vício, de acordo com o artº 287º do Código Civil.
Em consequência, foi declarado anulado o contrato celebrado a 01/01/1999 entre a autora A... e a ré B....

A autora, ora recorrente, discorda, por entender que o preceituado no artº 261º do Código Civil é inaplicável ao presente caso pelo facto de existir lei especial, que é a constante do Código das Sociedades Comerciais (artº 397º), que regula as relações entre as sociedades e os seus administradores, por si ou por interposta pessoa.

Sem dúvida que o artº 397º do CSC regula as relações entre as sociedades e os seus administradores, nomeadamente a celebração de contratos entre eles, e que o saneador/sentença bem decidiu não ser aplicável ao presente caso, em

virtude de não ter havido qualquer negócio entre uma sociedade e um seu administrador, directamente ou por interposta pessoa.
Simplesmente, a situação prevista nesse normativo é diferente da prevista no artº 261º do Código Civil, já que neste o que está em causa é o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, enquanto naquele é o negócio celebrado pelo representante (administrador) com a sociedade (que tem personalidade própria, distinta da dos respectivos sócios).

No entanto, entendemos que, in casu, não se verifica a existência da figura do negócio consigo mesmo, pelo facto de o contrato ter sido outorgado por um administrador comum à autora A... e à ré B....
É que estas têm personalidade própria, distinta da do aludido administrador, tendo este tido intervenção apenas na qualidade de representante da autora e tendo a ré B... sido representada no contrato por outra pessoa, que não aquele administrador.
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Mas, ainda que se considere que, como se decidiu na 1ª instância, estamos perante a figura do negócio consigo mesmo, e dado que o mesmo é anulável, será que é de admitir que tal vício foi invocado pelo réu C... ?
Na 1ª instância decidiu-se pela afirmativa, já que, como se recorda, se diz que, embora aquele réu tenha enquadrado a questão em sede de nulidade do artº 397º do CSC, a diferente qualificação jurídica pelo Tribunal não obsta ao seu conhecimento e declaração.
Entendimento contrário tem a recorrente, ao afirmar que, não sendo a anulabilidade de conhecimento oficioso e não vindo pedida por nenhuma das partes, não podia o tribunal declará-la.
Independentemente de saber se o réu B.I.I. tinha legitimidade para arguir a anulabilidade do contrato em questão - pronunciamo-nos pela negativa, em virtude de no negócio consigo mesmo a anulabilidade apenas poder ser invocada pelo representado, como resulta do disposto nos artºs 261º, nº 1 e 287º , nº 1, do Código Civil (cfr. Ac. do S.T.J. de 14/10/2004, Proc. nº 04B 2212, in www.dgsi.pt) -, é preciso ter em consideração que o referido réu não arguiu a anulabilidade do contrato, mas sim a sua

nulidade.
Ora, embora o tribunal não esteja vinculado à qualificação jurídica das partes (artº 664º do Cód. Proc. Civil), não estando perante um vício de nulidade (mas antes perante um caso de anulabilidade) não pode conhecer dele oficiosamente.
Assim, no presente caso, como a anulabilidade não foi arguida pela representada, nem pelo réu BII, não podia aquela ser declarada no saneador/sentença, como o foi.
Por isso, terá a decisão que ser revogada nessa parte, bem como na parte que absolveu a ré B... do pedido.
Embora esta ré não tenha contestado, tem a acção que prosseguir contra ela, com observância do disposto no artº 485º, al. a), do Código de Processo Civil.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em dar provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte em que declarou a anulabilidade do contrato celebrado em 01/01/1999 entre a autora A... e a ré B... e absolveu esta ré do pedido, contra a qual deverão os autos prosseguir os seus normais termos.

Custas a cargo da parte vencida a final.