Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3592/13.0TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: USUCAPIÃO
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
ENTREGA DA COISA
PROMITENTE COMPRADOR
POSSE
Data do Acordão: 11/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 410º, AL. B) DO ART.º 1263.º, E 1316º DO C. CIVIL; 5.º, N.º 2, AL. A) DO C.R.PREDIAL.
Sumário: I. A entrega da coisa prometida vender não constitui um efeito típico do contrato promessa de compra e venda (cf. art.º 410.º do CC). Daí que, nos casos em que as partes acordam na entrega antecipada da coisa prometida, celebram na verdade um contrato atípico ou inominado, diferenciado do contrato-promessa, constitutivo de um direito pessoal de gozo e sem aptidão portanto para conferir posse.

II. Todavia, há muito vêm reconhecendo a doutrina e a jurisprudência que, em casos excepcionais, nomeadamente nas situações em que o promitente-vendedor logo abdica dos poderes juridicamente resultantes da sua qualidade de proprietário em favor do promitente-comprador que passa, a partir de então, a agir sobre a coisa como dono (corpus) e com a intenção de actuar como titular do direito (animus), terá de se considerar que adquiriu uma verdadeira posse, que exerce portanto em nome próprio.

III. Tal posse, se exercida de forma pública, pacífica e continuada por determinado lapso de tempo, é susceptível de conduzir à aquisição por usucapião do direito correspondente.

IV. Adquire verdadeira posse a promitente-compradora de fracção autónoma a quem a mesma foi entregue na sequência do pagamento da totalidade do preço, tendo as partes declarado atribuir eficácia real à promessa de venda - declaração que, todavia, padece de invalidade formal - não mais se tendo a promitente-vendedora arrogado qualquer direito sobre o imóvel.

V. Tendo-se a posse da promitente-compradora iniciado em Maio de 1998, devendo ser tida como de boa-fé, ainda que não titulada - por ter resultado ilidida a presunção consagrada no n.º 2 do art.º 1260.º - e perdurado por 15 anos, adquiriu aquela por usucapião o direito de propriedade sobre a fracção, retroagindo os seus efeitos à data do início da posse.

VI. Tal direito é oponível à titular registal que adquiriu a mesma fracção em venda judicial que teve lugar no âmbito de execução fiscal promovida contra a promitente-vendedora e a registou a seu favor em 1999, mas que só se apresentou a reclamá-la no ano de 2007, quando já se tinha operado a aquisição por usucapião a favor da promitente-compradora.

VII. Tal ocorre porque a nossa ordem jurídica imobiliária assenta na usucapião, e não no registo, como resulta do disposto no art.º 5.º, n.º 2, al. a) do CRPredial.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório

A C..., SA, com sede na ..., instaurou contra E..., residente na ..., acção declarativa de condenação, pedindo a final a condenação da ré a proceder à entrega, livre e devoluta, da fracção que identifica, e ainda no pagamento da quantia de €52.605,87, na qual liquida os danos causados, acrescida dos montantes, a liquidar, que traduzam prejuízos que se venham a verificar.

Em fundamento, alegou, em síntese, ser dona da fracção autónoma designada pela letra ..., por tê-la adquirido em venda a que se procedeu no processo de execução fiscal que identifica, facto que fez inscrever a seu favor na Conservatória do Registo Predial competente. Mais alegou que, após a compra, tentou entrar na posse da fracção, o que até ao presente não logrou conseguir dada a oposição da ré, que continua a ocupar o imóvel, embora não detenha título que tal legitime. De facto, disse, embora a Ré invoque um direito de retenção, por via da outorga de um contrato promessa de compra e venda tendo por objecto a venda de tal fracção, não tendo reclamado o seu crédito no processo executivo, não lhe assiste tal direito.

Mais invocou a existência de prejuízos, em virtude da indevida ocupação, por banda da ré, da fracção reivindicada, o que suporta o pedido de indemnização formulado.

Regular e pessoalmente citada, a ré apresentou a contestação, na qual, para além do mais, invocou a excepção peremptória da prescrição do direito à indemnização peticionada dado que, assentando na responsabilidade civil por facto ilícito, há muito se mostra decorrido o prazo consagrado no art.º 498.º do Código Civil.

Mais invocou ter entrado na posse da fracção no ano de 1989, na qual foi investida por acto da sociedade construtora, legítima proprietária do imóvel à data, na sequência de contrato promessa de compra e venda com a contestante celebrado, no âmbito do qual procedeu à entrega da totalidade do preço convencionado. E por assim ser, desde Maio de 1989 que vem exercendo sobre a fracção em causa actos de verdadeira posse pacífica, pública e de boa-fé, de modo que quando a autora reclamou a entrega da fracção, já a contestante a tinha adquirido por usucapião, que expressamente invocou.

Reconhecendo ter tido conhecimento em tempos da pendência de uma execução, mais alegou ter então invocado o seu direito de retenção, ficando convencida de que tudo se resolvera a seu contento, uma vez que continuou a fruir da fracção sem qualquer estorvo ou impedimento.

Tendo alegado a realização no imóvel, ao longo dos tempos, de obras de vulto, que lhe aumentaram o valor, constituindo portanto benfeitorias, as quais discriminou, invocou a seu favor o direito de retenção.

Com tais fundamentos, pediu a sua absolvição dos pedidos formulados pela autora e deduziu reconvenção, em cujo âmbito pediu fosse reconhecido o seu direito de propriedade sobre a fracção reivindicada, por tê-lo adquirido por usucapião, com o cancelamento do registo a favor da reconvinda; subsidiariamente, e para o caso do assim peticionado não ser atendido, pediu o reconhecimento do direito de retenção para garantia do crédito de que é titular, emergente das benfeitorias realizadas na fracção, e que liquidou em €18 355,24.

A autora replicou, pronunciando-se no sentido da improcedência da excepção da prescrição, alegando quanto ao mais que a ré sempre reconheceu o seu direito de propriedade sobre a fracção e que a adquiriu de boa-fé, expressando por último que o invocado direito de retenção carece de fundamente legal.

Concluiu pela improcedência das excepções e, bem assim, dos pedidos formulados em via reconvencional.

Teve lugar audiência prévia e nela foi proferido despacho saneador, aqui se tendo relegado para final o conhecimento da excepção da prescrição, fixado o objecto do litígio e delimitados os temas da prova, sem reclamação das partes.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo, finda a qual veio a ser proferida douta sentença, que decretou a procedência da acção e a improcedência da reconvenção. Em conformidade, condenou a ré a reconhecer a autora C..., SA como legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra ..., e a entregá-la à Autora livre e devoluta de pessoas e bens, mais a condenando no pagamento, a título de indemnização pelos danos causados pela ocupação, a quantia de €58.128,07, acrescida do montante mensal correspondente ao valor da renda actualmente fixada em €348,57 ou o valor mensal que resulte das actualizações dos coeficientes legais de actualização anual das rendas livres até à entrega efectiva da fracção, bem como os juros à taxa legal sobre o montante total da indemnização a partir da citação e até ao efectivo pagamento.

Inconformada, apelou da sentença a ré e, tendo desenvolvido nas doutas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, sintetizou-as nas seguintes conclusões:

...

A apelada CGD contra alegou, pugnando naturalmente pela manutenção da decisão.

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:

i. do erro de julgamento quanto aos factos dados como não provados constantes das als. a), b), c), d) e e) e, bem assim, no que respeita aos factos assentes sob as als. c), d) (parte) e e);

ii. indagar se ocorreu igualmente erro de julgamento no que respeita à verificação dos pressupostos da aquisição originária por usucapião invocada pela autora, que deverão ser tidos por verificados;

iii. para o caso de assim não se entender, decidir se a autora beneficia do direito de retenção em relação à fracção reivindicada;

iv. indagar se operou a prescrição do direito da autora a uma indemnização por danos.

i. do erro de julgamento na decisão proferida sobre a matéria de facto:

...

II. Fundamentação

De facto

Agora estabilizada e lógica e cronologicamente ordenada, é a seguinte a matéria de facto a atender:

1. Em Maio de 1989 a sociedade “R..., Lda.”, representada pelos sócios-gerentes ..., como promitente vendedora, e a Ré, como promitente compradora, celebraram contrato promessa de compra e venda por documento particular junto aos autos para os devidos efeitos legais como documento n.º 1.

2. Nos termos do referido acordo a primeira contraente, aí designada por “promitentes vendedores”, declarou ser a única proprietária do prédio sito ao Loteamento do ... e nessa qualidade prometeu vender à Ré (designada promitente comprador) o 1.º andar esquerdo, constituído por ... pelo preço total de Esc. 4.500.000$00 (quatro milhões e quinhentos mil escudos.

3. Mais declararam as outorgantes que “atribuem ao presente contrato eficácia real e subordinam-no ao regime de execução específica (art.º 830º do C.C.)”;

4. As assinaturas de ..., legais representantes da promitente vendedora, foram feitas e reconhecidas no dia 23 de Maio de 1989, no Cartório Notarial de ... e, nessa data, declarado pela “R..., Lda.” “ter já recebido da 2ª outorgante a totalidade do preço a título de sinal e do qual dá quitação”;

5. Os sócios-gerentes da sociedade “R..., Lda.” procederam, naquela data, à entrega à Ré das chaves da fracção “D”.

6. A escritura não se chegou a realizar, tendo a sociedade construtora alegado na altura a necessidade de obtenção de documentação.

7. A Ré mudou-se de imediato para o andar dos autos, onde passou a ter instalada a sua economia familiar e, desde então, é aí que a Ré vive, dorme, toma as suas refeições, recebe amigos, familiares e correspondência.

8. Em 02/06/1989 a Ré requisitou o fornecimento de água junto dos Serviços Municipalizados da Câmara Municipal de ... e pagou as respectivas taxas.

9. Desde meados de 1996, também o sobrinho da Ré, ..., à data recém-nascido, passou a habitar com esta na dita fracção, sendo que actualmente, residem na fracção dos autos a Ré e o sobrinho, conjuntamente com a companheira e o filho menor de ambos.

10. Desde Maio de 1989 tem a Ré continuado aí a viver, mantendo-se na utilização ininterrupta do andar dos autos, de forma continuada, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, pelo menos até Setembro de 2007, nela fazendo obras e suportando os respectivos encargos.

11. A Ré procedeu à substituição da alcatifa do chão por material/mosaico de cerâmica, adquiridos em 21 de Julho de 2000.

12. Ainda a Ré, ao longo dos anos, foi fazendo reparações que se mostravam necessárias, e obras de remodelação, nomeadamente procedeu à demolição de uma parede de divisão do hall de entrada, colocou janelas de alumínio de correr na marquise da sala, azulejos na sala e hall, a cerca de um metro de altura, colocou azulejos na cozinha e WC, procedeu à pintura dos interiores e remodelou a cozinha com móveis novos e tampos e mesa, bem como procedeu à colocação de armários embutidos e substituiu a porta de entrada por uma porta de madeira maciça.

13. Com as obras realizadas e descritas nas anteriores alíneas a Ré gastou quantia não apurada ou quantificada.

14. As obras em causa foram realizadas na fracção pela Ré na convicção de ser sua proprietária, pois que a havia adquirido e pago à construtora.

15. Desde Maio de 1989 que a Ré tem vivido na fracção convencida de que esta fracção “D” lhe pertence, o que ocorreu pelo menos até Setembro de 2007.

16. Desde Maio de 1989 tem sido a Ré quem custeia todos as despesas e encargos inerentes à fracção D, das quais €1.355,24 são despesas de condomínio.

17. Os factos descritos foram realizados de boa-fé, pacificamente, à vista de todos, pelo menos desde Maio de 1989 e até 17 de Setembro de 2007.

18. A Ré, ao outorgar o contrato de promessa referido e ao receber o andar da R..., Lda., actuou convencida de que não lesava o direito de outrem.

19. A escritura definitiva nunca se realizou.

20. Em circunstâncias e data não apuradas, mas decorridos alguns anos de ali viver e quando já tinha realizado obras na fracção, a Ré teve conhecimento que corria termos uma execução nas finanças onde a sua fracção, entre outras, iria ser posta em venda, sendo que sensivelmente na mesma altura soube da existência da hipoteca à C...

21. Após esse facto a Ré e o seu agregado familiar mantiveram-se na utilização, ininterrupta, da fracção D dos autos.

22. A fracção autónoma designada pela letra D correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio urbano sito na ..., foi adquirida pela Autora em 24/11/1998, em venda judicial mediante proposta em carta fechada, pelo valor de €27.558,58, venda essa realizada no âmbito do processo de execução fiscal que correu termos na Repartição de Finanças do concelho de ..., processo n.º ..., movido contra a sociedade R..., Lda.

23. A referida fracção encontra-se registada definitivamente a favor da Autora pela AP ...

24. Após ter tido conhecimento, no ano de 2007, que a fracção D era ocupada pela ré, a autora contactou-a por carta, tendo em vista recuperar o imóvel, o que não conseguiu até à data.

25. A Ré ocupa o andar em causa e foi interpelada para efectuar a entrega do imóvel à Autora, livre e devoluta de pessoas e bens, através das cartas registadas com aviso de recepção, enviadas em 17/09/2007 e 9/10/2007, ocupação que, pelo menos desde 17/09/2007, é efectuada com a oposição da Autora.

26. No âmbito da execução supra referida a Ré não apresentou reclamação de créditos, designadamente invocando a existência de direito de retenção a seu favor, por incumprimento de contrato promessa de compra e venda da fracção em causa.

27. Em 30 de Julho de 2007 a Ré, por intermédio e aconselhada pela sociedade que geria o condomínio do prédio, comunicou à Autora e expôs a situação, no sentido de chegarem a uma solução amigável.

28. O referido imóvel, entregue à Autora em 24/11/1998, podia ter sido colocado no mercado de arrendamento, com uma renda inicial, em Novembro de 1998, de €236,93, posteriormente submetida à aplicação dos coeficientes legais de actualização anual das rendas, calculada de harmonia com os elementos que constam do documento junto aos autos a fls. 31, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

29. Na alternativa, a quantia despendida pela Autora na aquisição do referido imóvel podia ter sido aplicada em operações activas de longo prazo, como são as dos empréstimos para aquisição de habitação própria celebrados entre aquela e os mutuários, com remuneração às taxas vigentes desde 24/11/1998.

30. Até ao presente a Ré não procedeu ao pagamento de qualquer quantia à Autora.

31. A fracção apresentava defeitos de construção que causam humidades, tendo actualmente (por referência à data do encerramento da discussão) um valor de mercado de cerca de €25.000,00.

De Direito

ii. da aquisição da fracção D pela ré apelante pela via da usucapião:

A presente acção configura-se como uma acção de reivindicação.

Alegou a autora como causa de pedir a aquisição da fracção reivindicada por meio de venda judicial que teve lugar em processo de execução fiscal, que é modo aquisitivo válido nos termos do art.º 1316.º do Código Civil[1], invocando ainda a inscrição registral a seu favor na Conservatória do Registo Predial competente, assim beneficiando da presunção consagrada no art.º 7.º do CRP, nos termos da qual se presume que o direito existe e pertence ao titular inscrito.

Conforme é sabido, quem beneficia de uma presunção fica dispensado de fazer prova do facto a que ela conduz (cf. art.º 351 n.º 1), cabendo à parte contrária a sua ilisão, mediante prova do contrário (cf. o n.º 2 do mesmo preceito).

De harmonia com o disposto no n.º 2 do citado art.º 1311.º, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos termos da lei. Assim, demonstrado pela demandante o seu direito de propriedade, a demandada e ora apelante só poderá obstar ao efeito restitutório fazendo prova de que a coisa lhe pertence por qualquer título admitido em direito, que tem sobre ela direito real que justifique a sua posse ou que detém a coisa por virtude de um direito pessoal bastante[2].

No caso, a ré invocou a aquisição originária por usucapião - não só em sede de defesa por excepção, visando obstar à procedência da pretensão da autora, mas autonomizando-a como fundamento do pedido de reconhecimento a seu favor do direito de propriedade sobre a fracção reivindicada que formulou em via reconvencional - o que, como vimos, não lhe foi reconhecido.

Equacionando correctamente a questão, perguntou-se o Mm.º juiz “a quo” se poderia “alguém que está na posse de um imóvel - ou fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal, ao caso não releva - por via da outorga de um contrato-promessa de compra e venda, cuja respectiva escritura nunca foi celebrada, adquirir a respectiva propriedade por usucapião, em detrimento de quem adquiriu o imóvel - ou fracção, no caso vertente - em execução/venda fiscal ou judicial”. Ao assim perguntado veio a responder negativamente, estribando-se em abundante doutrina e jurisprudência, que convocou, com a argumentação que ora se sintetiza, reconhecendo embora que com eventual excessiva, ainda que voluntária, simplificação: a entrega da coisa prometida vender no âmbito do contrato-promessa não é uma verdadeira posse, mas antes uma mera detenção; a posse iniciada como precária só é apta a conduzir à usucapião mediante a inversão do título de posse (cf. art.º 1290.º), o que no caso não se verificou.

Não se discorda, dir-se-á, de nenhum dos considerandos jurídicos em termos genéricos efectuados na douta sentença recorrida, de resto uma peça cuidadosamente elaborada; não obstante, discorda-se, o que desde já se antecipa, da decisão a que chegou o Mm.º juiz, por entendermos, em contrário do decidido, que o caso dos autos configura uma daquelas situações excepcionais em que o promitente-comprador adquiriu o direito potestativo a adquirir por usucapião a coisa objecto do contrato prometido.

Vejamos então:

Da factualidade apurada nos autos, resulta ter a ré celebrado em Maio de 1989 com a sociedade “R..., Lda.”, no acto representada pelos sócios-gerentes ..., contrato promessa de compra e venda, nos termos do qual a primeira, arrogando-se a qualidade de única proprietária do prédio sito ao Loteamento do ..., prometeu vender à Ré que, por seu turno, declarou comprar, a fracção autónoma correspondente ao 1.º andar esquerdo, constituído por ... pelo preço total de Esc. 4.500.000$00.

Tal acordo, reduzido a escrito, foi assinado no Cartório Notarial de ... pelos identificados sócios da promitente vendedora em 23 de Maio de 1983, assinaturas na ocasião reconhecidas, tendo declarado no acto “ter já recebido da 2ª outorgante a totalidade do preço a título de sinal e do qual dá quitação”, mais tendo os outorgantes declarado que “atribuem ao presente contrato eficácia real e subordinam-no ao regime de execução específica (art.º 830º do C.C.)”. E nessa mesma data foram as chaves da fracção entregues à ré, que para ela se mudou de imediato, ali tendo instalado a sua economia familiar e residindo desde então.

Não subsiste dúvida quanto à caracterização do contrato em causa como contrato-promessa de compra e venda, qualificação jurídica na qual as partes não dissentem.

É ainda sabido que o “contrato promessa é um acordo preliminar que tem por objecto uma convenção futura, o contrato prometido. (…) Reveste, em princípio, a natureza de puro contrato obrigacional, ainda que diversa seja a índole do contrato definitivo. Gera uma obrigação de prestação de facto, que tem de particular consistir na emissão de uma declaração negocial. Trata-se de um pactum de contrahendo.”[3].

Resulta do que vem de se dizer que a entrega da coisa prometida vender não constitui um efeito típico do contrato promessa de compra e venda (cf. art.º 410.º). Todavia, casos há em que as partes convencionam a “traditio” da coisa objecto do contrato prometido, o que pressupõe a sua entrega material e a correspondente detenção por banda do promitente-comprador. Tal acordo vem sendo caracterizado como um contrato atípico ou inominado, diferenciado do contrato promessa, constitutivo de um direito pessoal de gozo, traduzido na antecipação de um dos efeitos do contrato definitivo, no pressuposto da realização desse contrato[4], sem aptidão portanto para conferir posse.

No entanto, há muito vem sendo reconhecido, quer ao nível da doutrina, quer da nossa jurisprudência, que, pese embora “dum modo geral, o promitente-comprador deva ser havido como um mero detentor ou possuidor precário, nos termos do art.º 1253º, al. c), uma vez que possui em nome do promitente vendedor até à realização do contrato definitivo - por si só, o contrato promessa não é susceptível de transmitir para o promitente-comprador a posse, já que, consistindo esta no “poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (art.º 1251º), o que normalmente sucede é o contrato promessa transmitir apenas o elemento material (corpus), mas não o elemento psicológico (animus) da posse verdadeira e própria - (…) em determinadas hipóteses a posse exercida pelo promitente-comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e susceptível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, justamente por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa.[5]

 Verifica-se, portanto, que “circunstâncias de diversa ordem podem confluir para atribuir, desde logo, ao promitente-comprador a qualidade de verdadeiro possuidor. A liberdade de actuação das partes, num campo onde predominam os interesses privados, pode traduzir consequências que, logo em sede de contrato-promessa de compra e venda, se reconduzem à aquisição da posse por parte do promitente- comprador, como reflexo da perda da qualidade de possuidor por parte do promitente-vendedor. Basta que este abdique dos poderes juridicamente resultantes da sua qualidade de proprietário, em benefício do promitente-comprador que, a partir de então, passa a agir como verdadeiro titular. O pagamento da totalidade ou da maior parte do preço ou a verificação de circunstâncias que dificultam a concretização da escritura de compra e venda, apesar de esta ser desejada por ambas as partes, pode redundar precisamente na atribuição ao promitente-comprador da qualidade de possuidor, paulatinamente exteriorizada através da prática dos actos que, em tese, incumbiriam apenas ao proprietário”[6][7].

E vem sendo igualmente entendido que tal depende “fundamentalmente de uma ponderação casuística que valore adequadamente os termos e o conteúdo do negócio, as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração”[8].

Pois bem, da análise do acervo factual destaca-se, desde logo, a circunstância do preço convencionado ter sido integralmente pago - na sequência do que as chaves foram entregues à apelante, que se instalou na fracção - e, em nosso entender mais relevante, o facto das partes outorgantes terem declarado atribuir eficácia real ao contrato celebrado. É certo que, face ao que então (como agora) dispunha o art.º 413.º do CPC, tal declaração é nula por não ter observado a forma imposta pela lei, mas na sua interpretação, de harmonia com os critérios plasmados nos art.ºs 236.º a 238.º, não pode deixar de ser-lhe atribuído um claro sentido: o de que a sociedade construtora, então titular do direito de propriedade sobre a fracção, se demitia dos seus poderes, neles investindo a ré promitente-compradora. E tanto isto é exacto que não mais aquela entidade se arrogou qualquer direito sobre a fracção ou interferiu com o uso e plena fruição que a ré desde então dela vem fazendo, conforme a factualidade apurada ilustra de forma exuberante.

Estamos portanto perante uma das referidas situações de excepção, em que a entrega da fracção foi acompanhada da intenção, comum aos contraentes, de operarem a transferência da propriedade, de modo a que o imóvel passasse a ser da demandada, que assim passou a considerá-la. Vale isto por dizer que a ré adquiriu, pela tradição material da fracção, uma verdadeira posse, nos termos da al. b) do art.º 1263.º, e não a mera detenção ou uma posse precária ou em nome alheio.

Ora, nos termos do antes citado art.º 1316.º, o direito de propriedade adquire-se, dentre os demais modos ali enumerados, por usucapião. Assim, a posse que perdure por determinado lapso de tempo tem a virtualidade de conferir ao possuidor o direito de propriedade sobre a coisa possuída (vide art.º 1287.º). Havendo título de aquisição e registo, a usucapião tem lugar quando a posse, sendo de boa-fé, tenha durado 10 anos contados do registo, ou 15, no caso de ser de má-fé; tais prazos, não existindo registo do título ou da mera posse, elevam-se para 15 e 20 anos, consoante estejamos perante posse de boa ou de má-fé (cf. art.ºs. 1294.º a 1296.º).

A posse, define-a a lei como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real (art.º 1257.º).

A actuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor constitui o “corpus”, resultando ainda da lei a exigência do “animus” ou intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela. Todavia, consciente da dificuldade, senão impossibilidade de “fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o n.º 2 do artigo 1252.º uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (“corpus”), tendo o STJ afirmado a doutrina de que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” o que equivale a dizer, numa outra formulação, que “no exercente do poder de facto presume-se o “animus” (Cf. o AUJ de 14 de Maio de 1996, in DR n.º 144 de 24/6/96).

Revertendo de novo ao caso dos autos, temos a posse da ré como iniciada em Maio de 1998. Trata-se de uma posse não titulada mas, ainda assim, idónea a facultar ao possuidor a aquisição por usucapião. Com efeito, a ausência de título apenas releva para a determinação do prazo necessário para que a usucapião possa ser invocada, que sofre um alargamento, uma vez que a posse não titulada se presume de má-fé, nos termos do citado art.º 1296.º. Trata-se, todavia, de uma presunção “juris tantum” que, neste caso, resultou ilidida, conforme resulta lapidarmente do facto assente em 18.

E que mais revelam os autos? Tendo-a adquirido de boa-fé, a ré passou a exercer actos de verdadeira posse pública, pacífica e de boa-fé sobre a mesma fracção, como se fosse a sua proprietária, actuação que manteve imperturbada e sem interrupção[9] até Setembro de 2007 (cf. art.ºs 1257.º, 1292.º e 323.º), data em que a autora se apresentou a reivindicá-la. Não secundamos, neste conspecto, a apreciação feita pelo Mm.º juiz quanto à equivocidade da actuação da ré porquanto, a nosso ver, ela é inequívoca: a ré actuou sobre a fracção pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, isto para usar as palavras da lei, só assim se compreendendo o investimento que nela tem efectuado ao longo dos anos, muito para além das meras obras de conservação, antes se inscrevendo numa estratégia de introdução de verdadeiras e substanciais melhorias no imóvel, procedendo ao pagamento das quotas do condomínio, em tudo procedendo como é próprio de um proprietário. E fê-lo, conforme igualmente se apurou, convencida de que detinha essa mesma qualidade e com intenção se actuar como titular do direito correspondente -elemento subjectivo que, em todo o caso, sempre seria de presumir.

Deste modo, tendo a posse, com os assinalados caracteres, sido exercida de forma continuada por mais de 15 anos, à data em que a autora se apresentou a reivindicar a fracção, já a ré tinha adquirido, pela via da usucapião, o direito de propriedade sobre a mesma, irrelevando em absoluto que se tenha proposto, em sede de tentativa de resolução extrajudicial e amigável do litígio, adquiri-la, ou aqui tenha pedido, em via subsidiária, o reconhecimento do direito de retenção sobre ela.

E não se diga que não ocorreu inversão do título para que se possa falar de verdadeira posse. Tal hipótese, pressupondo uma oposição ao detentor do direito contra aquele em cujo nome possui (cf. art.º 1265.º), não tem aqui aplicação, uma vez que a posse da ré foi sempre, como se disse, exercida em nome próprio[10].

Deste modo, tendo a ré adquirido por usucapião, cujos efeitos retrotraem à data do início da posse, consoante dispõe o art.º 1288.º, o seu direito impõe-se à autora, resultando ilidida a presunção que o registo lhe confere. E assim é porque tal presunção não assegura ao titular registal a efectiva titularidade do direito, não podendo esquecer-se “que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registais; vale por si. Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos, mas nada pode contra a usucapião”.[11] Tal é o que, de forma expressa, consta do disposto no art.º 5.º, n.º 2, al. a) do CRPredial.

Procedendo, pelo exposto, os fundamentos do recurso, haverá que julgar procedente o pedido reconvencional formulado em via principal, do que decorre a improcedência da acção, ficando em consequência prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas (cf. art.º 608.º, n.º 2, aplicável aos acórdãos por força do n.º 2 do art.º 663.º, ambos os preceitos do CPC).

III Decisão

Acordam os juízes da 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente a apelação e, em consequência:

a) julgam improcedente a acção, absolvendo a autora E... dos pedidos contra ela formulados pela autora C...;

b) julgam procedente o pedido reconvencional e declaram que a ré reconvinte é a dona da fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio urbano sito na ..., por tê-la adquirido por usucapião, mais determinando o cancelamento do registo existente a favor da autora.

Custas da acção e da reconvenção, nesta e na 1.ª instância, a cargo da autora/reconvinda.

Sumário:

I. A entrega da coisa prometida vender não constitui um efeito típico do contrato promessa de compra e venda (cf. art.º 410.º do CC). Daí que, nos casos em que as partes acordam na entrega antecipada da coisa prometida, celebram na verdade um contrato atípico ou inominado, diferenciado do contrato-promessa, constitutivo de um direito pessoal de gozo, e sem aptidão portanto para conferir posse.

II. Todavia, há muito vêm reconhecendo a doutrina e a jurisprudência que, em casos excepcionais, nomeadamente nas situações em que o promitente-vendedor logo abdica dos poderes juridicamente resultantes da sua qualidade de proprietário em favor do promitente-comprador que passa, a partir de então, a agir sobre a coisa como dono (corpus) e com a intenção de actuar como titular do direito (animus), terá de se considerar que adquiriu uma verdadeira posse, que exerce portanto em nome próprio.

III. Tal posse, se exercida de forma pública, pacífica e continuada por determinado lapso de tempo, é susceptível de conduzir à aquisição por usucapião do direito correspondente.

IV. Adquire verdadeira posse a promitente-compradora de fracção autónoma, a quem a mesma foi entregue na sequência do pagamento da totalidade do preço, tendo as partes declarado atribuir eficácia real à promessa de venda - declaração que, todavia, padece de invalidade formal - não mais se tendo a promitente-vendedora arrogado qualquer direito sobre o imóvel.

V. Tendo-se a posse da promitente-compradora, aqui ré, iniciado em Maio de 1998, devendo ser tida como de boa-fé, ainda que não titulada - por ter resultado ilidida a presunção consagrada no n.º 2 do art.º 1260.º - e perdurado por 15 anos, adquiriu aquela por usucapião o direito de propriedade sobre a fracção, retroagindo os seus efeitos à data do início da posse.

VI. Tal direito é oponível à titular registal que adquiriu a mesma fracção em venda judicial que teve lugar no âmbito de execução fiscal promovida contra a promitente-vendedora e a registou a seu favor em 1999, mas que só se apresentou a reclamá-la no ano de 2007, quando já se tinha operado a aquisição por usucapião a favor da promitente-compradora.

VII. Tal ocorre porque a nossa ordem jurídica imobiliária assenta na usucapião, e não no registo, como resulta do disposto no art.º 5.º, n.º 2, al. a) do CRPredial.

                                                                        

Maria Domingas Simões (Relator)

Adjuntos:

1º - Alexandre Reis

2º - Jaime Ferreira

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[1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Cf. Prof. Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, pág. 848.
[3] Inocêncio Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., Coimbra.
[4] Cf. Ana Prata, “O Contrato Promessa e o seu Regime Legal”, pág. 839.
[5] Do aresto do STJ de 9/11/2012, processo n.º 4436/03.7 TBALM-C1-S1, acessível em www.dgsi.pt, citado pela apelante.
[6] Acórdão da Relação de Lisboa de 19/11/2002, processo n.º 8205/2002-7, também citado pela apelante (embora por lapso atribuído ao STJ) e disponível no mesmo sítio.
[7] Ainda neste sentido, entre outros, acórdão da mesma Relação de Lisboa de 5/8/2008, processo n.º 1331/2008-6, no citado sítio, de que se destaca este ponto do sumário “ iv- É juridicamente possível e admissível que, no âmbito de um contrato-promessa em que houve, paralelamente, tradição da coisa e desde que verificadas determinadas circunstâncias que indiciem, suficientemente, esse propósito e realidade, o promitente-comprador exerça poderes de facto sobre o bem em causa (“corpus”), com o “animus” correspondente ao direito de propriedade ou a outro direito real menor (que se presume, nos termos do art.º 1268.º, n.º 1 do Código Civil) posse essa em nome próprio que, desde que desenvolvida pública, pacificamente e pelo período de tempo legalmente imposto, é susceptível de consubstanciar a prescrição aquisitiva da coisa possuída, passando o respectivo possuidor ou os seus sucessores a serem titulares, em termos originários, do direito real em questão”.
No mesmo sentido, acentuando a excepcionalidade da situação acórdão do STJ de 12/7/2011, processo n.º 899/04.1 TBSTB-E.S1, em www.dgsi.pt.
Na doutrina, Gravato de Morais, “Contrato Promessa em Geral - Contratos promessa em especial”, págs. 245 a 247, apontando como caso típico aquele em que ocorreu pagamento integral do preço.
[8] Já citado acórdão do STJ de 12/7/2011.
[9] A ocorrência de um facto interruptivo, atenta a sua natureza exceptiva, sempre teria de ser alegada e demonstrada pela autora, nos termos do n.º 2 do art.º 342.º. 

[10] Tal ocorre nos casos em que “[o] promitente-comprador, uma vez posto a usufruir o imóvel, age, não em nome do promitente-vendedor mas em nome próprio (uti dominus), com intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real, mais precisamente quando a “res” é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e quando, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade” – do acórdão do STJ de 12/7/2011, processo n.º 899/04.1 TBSTB-E1-S1, que incidiu sobre factualidade com claras semelhanças com o caso que nos ocupa.
[11] Prof. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4.ª edição, pág. 367. Neste mesmo sentido, o acórdão do STJ de 14/9/2010, proferido no processo n.º 1618/04.TBLLE.E1.S1, em www.dgsi.pt.