Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4353/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: ESCUTA TELEFÓNICA
Data do Acordão: 02/15/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALBERGARIA-A-VELHA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 187º, 188º E 189º, DO C. P,. PENAL
Sumário: I- Qualquer despacho (daí também o que autoriza escutas telefónicas) deve ser fundamentado, fundamentação consistindo no necessário para salvaguardar os interesses legalmente protegidos e salvaguardar a inexistência de dúvidas sobre a ponderação judicial sobre tais interesses;
II- O juiz de instrução não deixa de dar cumprimento ao disposto no art.º 188º do C. P. Penal se, baseado no conteúdo das gravações que lhe são apresentadas reproduzidas, emite um juízo autónomo sobre a sua relevância.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. A arguida A..., com os demais sinais nos autos, recorre do despacho proferido pela M.ma JIC (e ora certificado a folhas 17/18) no âmbito do supra aludido processo de instrução e no qual judicialmente se considerou como insubsistente a arguição feita pela mesma arguida de pretensa nulidade de escutas telefónicas aí consideradas (as escutas haviam sido efectivamente realizadas no âmbito de uns outros autos – 959/99.9 JAAVR - mas foram certificadamente juntas aos em causa).
1.2. A recorrente, inconformada, depois de motivar devidamente o requerimento de interposição de recurso, ofereceu as conclusões seguintes:
1.2.1. Nos despachos que autorizaram as escutas telefónicas, oriundas de um outro processo, não foi justificada a sua necessidade.
1.2.2. O juiz, embora não tenha que proceder pessoalmente às escutas telefónicas, tem que acompanhar as mesmas, temporal e materialmente, de forma contínua e próxima, a fim de, em função do decurso das mesmas, manter ou alterar a autorização que deu para a elas se proceder.
1.2.3. Tem de ter um efectivo acompanhamento e controlo da escuta que tiver ordenado, enquanto durarem as operações em que esta se materializa, sem que decorram largos períodos de tempo em que essa actividade do juiz se não mostre documentada nos autos.
1.2.4. É ao juiz – e só a ele – que, de entre os elementos probatórios recolhidos através das escutas telefónicas, há-de decidir quais é que, por serem relevantes para a investigação, devem ser transcritos em auto, a juntar ao processo.
1.2.5. No caso, tal não ocorreu, porquanto o Sr. Juiz a quo, não só não acompanhou a evolução das escutas, como as próprias transcrições foram da iniciativa da Polícia, em coordenação com o Ministério Público.
1.2.6. As provas obtidas mediante escuta telefónica com violação do artigo 188.º do Código de Processo Penal [CPP] são nulas, por proibidas.
1.2.7. Isto, visto o disposto nos artigos 32.º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa [CRP]; 126.º, n.ºs 1 e 3 e 189.º, ambos do CPP, normativos que a decisão recorrida, assim, violou.
1.3. Admitido o recurso, o Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu defendendo o acerto do aí decidido.
1.4. Instruídos os autos e proferido despacho tabelar de manutenção do despacho questionado, subiram os mesmos a este Tribunal.
1.5. Aqui, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente ao não provimento do recurso.
Determinado o cumprimento do estatuído pelo artigo 417.º, n.º 2 do CPP, houve réplica da recorrente.
No exame preliminar a que alude o n.º 3 do último preceito indicado consignou-se que nada obstava ao conhecimento de meritis.
Colhidos os vistos dos M.mos Adjuntos, cabe, então, apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
2.1. Como resulta das conclusões da motivação do recurso, que balizam o objecto do mesmo (artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do CPP), as questões postas à apreciação deste Tribunal, prendem-se, fundamentalmente, com o apurarmos se: a) as escutas telefónicas em causa se devem considerar como nulas por falta de fundamentação do despacho que as determinou relativamente à respectiva necessidade de efectivação (rectius condições de admissibilidade), ou, na negativa a tal questão, b) ainda se assim devem considerar-se por falta do seu acompanhamento judicial (rectius preterição das formalidades da sua captação).
2.2. Breves considerações genéricas servirão à dilucidação deste primeiro aspecto colocado pela recorrente.
Decorre do artigo 34.º, n.º 4 da CRP (texto revisto em 1997) que «É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal». (sublinhado nosso)
Nesta consonância, o artigo 187.º do CPP menciona as condições de admissibilidade para que se proceda, então, à intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas e que, bem vistas as coisas, a recorrente não questiona terem sido postas em causa, por tal, no caso concreto.
Esta intercepção e gravação representam, porém, uma restrição ao direito fundamental de inviolabilidade da correspondência. Daí que deva, então, limitar-se ao necessário para salvaguardar esse ou outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, sem jamais diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial respectivo (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP).
Necessidade que, por seu turno, também há-de resultar do despacho que autoriza a sua efectivação, em virtude ou como corolário do dever geral de fundamentação das decisões judiciais acolhido pelos artigos 205.º, n.º 1 da CRP e 97.º, n.º 4 do CPP (e punctum saliens colocado pela recorrente).
De não olvidar, igualmente, e na senda de jurisprudência do Tribunal Constitucional (v.g., aresto n.º 396/2003 citado na decisão recorrida, prolatado em 30 de Julho de 2003, e publicado no Diário da República, II.ª Série, de 4 de Fevereiro de 2004) que tal fundamentação se basta, sendo até aconselhável por razões de mera economia processual, através da remissão para a promoção do Ministério Público ou para outras peças processuais, desde que se salvaguarde a inexistência de quaisquer dúvidas sobre a ocorrência de ponderação judicial.
No caso dos autos:
Vêem questionados os despachos proferidos em 9 de Fevereiro e 6 de Abril, ambos do ano de 2000, ora certificados a fls. 111 e 112, através dos quais se autorizaram o início e prorrogação das escutas telefónicas visando a recorrente.
Como correctamente se aduz no despacho aqui em crise eles remetem expressa (o primeiro) ou manifestamente (o segundo) para elementos do processo que os antecedem donde que, como consequência, daí decorre inequivocamente a ponderação do apontado elemento da necessidade da realização das escutas telefónicas à recorrente.
Na verdade, o despacho de 9 de Fevereiro dá expressamente por reproduzidos os fundamentos da promoção sobre que incidiu (fls. 113 e 114 deste recurso), entre os quais foi referido mostrar-se imprescindível a realização do mencionado meio de prova para eficaz prosseguimento da investigação, referindo ainda e subscrevendo o Ministério Público as razões invocadas pelo investigador na informação que antecedeu tal promoção (fls. 115 e 116), mencionando as suspeitas da existência de uma actividade criminosa organizada e o interesse das intercepções para recolha dos necessários meios de prova.
Por outro lado, no subsequente despacho de 6 de Abril, apreciando-se a promoção que o antecedeu e que remete novamente para informação recente do investigador na qual é indicada a obtenção de importantes elementos probatórios através das escutas até então realizadas, é expressamente referido que a prorrogação é autorizada “porque o meio de prova em causa (…) tem revelado utilidade na investigação”. Isto é, para além de se remeter para os fundamentos do despacho de autorização inicial, é reapreciada a necessidade das escutas telefónicas para a descoberta da verdade, também à luz dos resultados entretanto obtidos.
Do que decorre, então, a improcedência deste primeiro fundamento do recurso.
2.3. Segundo aspecto que urge agora apreciar é o da (in) observância das formalidades exigíveis à consideração como válidas das escutas realizadas.
Tem sido este tema candente na nossa sociedade.
A fundamentação da recorrente assenta neste circunspecto no entendimento de que é ao juiz que cabe, de entre os elementos probatórios recolhidos através das escutas telefónicas, decidir quais é que, por serem relevantes para a investigação, devem ser transcritos em auto, a juntar ao processo.
Assim, aduz, uma vez que o M.mo Juiz, alegadamente, não acompanhou a evolução das escutas e como as transcrições foram da iniciativa da Polícia, em coordenação com o Ministério Público, as mesmas devem considerar-se como nulas.
Quid iuris?
No artigo 188.º do CPP definem-se as formalidades das operações de captação das escutas telefónicas judicialmente ordenadas.
De facto, aí se preceitua:
“1. Da intercepção e gravação a que se refere o artigo anterior é lavrado auto, o qual, junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações, com a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados relevantes para a prova.
2. O disposto no número anterior não impede que o órgão de polícia criminal que proceder à investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação interceptada a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
3. Se o juiz considerar os elementos recolhidos, ou alguns deles, relevantes para a prova, ordena a sua transcrição em auto e fá-lo juntar ao processo; caso contrário, ordena a sua destruição, ficando todos os participantes nas operações ligados ao dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento.
(…)”
Acresce, nos termos do disposto no subsequente artigo 189.º que todos os requisitos e condições referidos nos artigos 187.º e 188.º são estabelecidos sob pena de nulidade.
Nos autos não se observaram tais normativos, mostrando-se inquinadas as escutas realizadas, como clama a recorrente?
Breves palavras apontarão o sentido da decisão a proferir-se.
Com efeito, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 426/2005, proferido em 25 de Agosto de 2005, e publicado no Diário da República, II.ª Série, de 5 de Dezembro pretérito veio consignar que “ (…) não é constitucionalmente imposto que o único modo pelo qual o juiz pode exercitar a sua função de acompanhamento da operação de intercepção de telecomunicações seja o da audição, pelo próprio, da integralidade das gravações efectuadas ou sequer das passagens indicadas como relevantes pelo órgão de polícia criminal, bastando que, com base nas menções ao conteúdo das gravações, com possibilidade real de acesso directo às gravações, o juiz emita juízo autónomo sobre essa relevância, juízo que sempre será susceptível de contradição pelas pessoas escutadas quando lhes for facultado o exame do auto de transcrição. (…)”. Como assim, entendeu-se no mesmo aresto “ (…) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que são válidas as provas obtidas por escutas telefónicas cuja transcrição foi, em parte, determinada pelo juiz de instrução, não com base em prévia audição pessoal das mesmas, mas por leitura de textos contendo a sua reprodução, que lhe foram espontaneamente apresentados pela Polícia Judiciária, acompanhados das fitas gravadas ou elementos análogos (…)”.
Ora, in casu, como consta dos autos, mormente dos despachos certificados de fls. 237 e 315 dos principais, o M.mo Juiz tomou conhecimento do conteúdo das cassetes referentes às escutas que lhe foram apresentadas, reconhecendo a fidelidade e a relevância das transcrições apresentadas pela autoridade policial e ordenando a sua junção aos autos.
Na verdade, deles resulta que apenas após verificação do conteúdo das gravações, relevância e coincidência com o que consta dos autos de transcrição foi ordenada a junção destes àqueles.
Daqui decorre, inequivocamente, haver-se logrado cumprir o exigível acompanhamento judicial sendo irrelevante a fundamentação oferecida pela recorrente e segundo a qual uma vez que as transcrições foram da iniciativa da Polícia, em coordenação com o MP, as mesmas se mostram nulas.
Este é o regime de jure constituto.
Como nota final de referir que se mostra ligeira a afirmação contida na réplica apresentada pela recorrente, quer ao modo como judicialmente se vem entendendo o regime decorrente do actual diploma processual, quer ao que apontaria a autorização legislativa com base na qual se procedeu à alteração do primitivo regime sobre as formalidades a que devem obedecer as escutas telefónicas.
É que, e apenas nos referindo a estas, são exactamente elas um dos elementos que melhor comportam a solução como a recolhida no despacho recorrido!
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III – Decisão.
São termos em que, perante todo o exposto, se nega provimento ao recurso mantendo-se, consequentemente, o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 12 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 15 de Fevereiro de 2006