Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
153/06.4TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
PERDA
CAPACIDADE
DANOS FUTUROS
Data do Acordão: 04/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 655.º DO CPC, 496.º, 494.º, N.º 1 DO ARTIGO 503.º E 566.º, N.º 3 DO CC
Sumário: 1. É compatível com o princípio da liberdade do julgamento a desvalorização de depoimento impreciso, conclusivo e com evidentes falhas e contradições.

2. Não provada a culpa, efectiva ou presumida, há que apelar à responsabilidade pelo risco.

3. Ainda que o lesado não tenha entrado na vida profissional remunerada, é ressarcível o dano derivado da perda de capacidade aquisitiva.

4. Para o cálculo do dano futuro deve considera-se o ingresso no mercado de trabalho aos dezoito anos e o salário médio ao alcance de um jovem saudável dotado de formação profissional média.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

 

A... , menor, solteiro, representado por seus pais B.... e C... , residentes no lugar ...., intentou acção com forma de processo ordinário contra D... Companhia de Seguros, SA., com sede na...., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 30.000,00, a título de dano não patrimonial, e, bem assim, a que se liquidar ulteriormente, respeitante à incapacidade permanente que lhe vier a ser fixada, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até integral pagamento, com o fundamento no seu atropelamento pelo veículo de matrícula 00-00-JD, conduzido por E... e seguro na ré, de que lhe sobrevieram prejuízos, que computa nas quantias pedidas, imputando a culpa na produção do acidente ao condutor do aludido veículo, por circular a velocidade superior à permitida para o local.

A ré contestou, alegando ser o acidente totalmente imputável ao menor A..., por ter invadido a via de modo imprevisto para quem nela circulava, ao fugir de uns cães que o perseguiam.

            Quanto aos danos, reputou-os viciados de manifesto exagero, até porque o autor já experimentava dificuldades de aprendizagem antes do acidente.

   Concluiu pela improcedência da acção.

   O autor replicou, por forma a manter o conteúdo da petição inicial.

   No despacho saneador, forma declaradas a validade e a regularidade da lide.

A selecção da matéria de facto foi objecto de reclamação da ré, parcialmente atendida.

Posteriormente, foi admitida a intervenção principal do Centro Hospitalar G..., que veio reclamar a quantia de € 2.297,70, acrescida de juros a partir da citação, devido a assistência médica prestada ao autor.

            Na sequência da realização de exame médico-legal a que foi submetido, o autor ampliou o pedido para € 60.000,00, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a contar da ampliação, com base na incapacidade fixada no exame.

            A ampliação foi admitida, em razão do que foi ampliada, também, a base instrutória.

            Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, que condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 65.000,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da sentença e até efectivo pagamento, e ao Centro Hospitalar G... o montante de € 2.297,70, com juros legais a contar da citação.

            Com o, assim, decidido se não conformou a ré, que interpôs recurso (apelação, com efeito devolutivo), alegou e formulou extensas conclusões (38), facilmente redutíveis a, apenas, cinco:

            1) A sentença é nula, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea e), do CPC, por ter fixado em € 65.000,00 o montante da indemnização a pagar ao autor, quando o pedido global era de, apenas, € 60.000,00.

            2) Os artigos 37.º e 38.º da base instrutória deveriam ter merecido a resposta “provado”, em face do depoimento da única testemunha presencial, F... , concatenado com o teor da participação de acidente de viação e respectivo esboço, juntos com a petição inicial.

            3) Alterada, nos temos alegados, a matéria de facto, é de atribuir a responsabilidade pela produção do acidente ao autor (ou a seus pais, por “culpa in vigilando”), o que arreda a obrigação de indemnizar.

            4) Os valores arbitrados a título de indemnização são excessivos e devem ser reduzidos.

            5) Foram violados os artigos 661.º, n.º 1 e 668.º, n.º 1, alínea e), do CPC e 491.º, 494.º, 496.º, n.º 3, 503.º, n.º 1, 505.º e 570.º do CC.

            O apelado respondeu à alegação da apelante nos seguintes termos:

            1) A sentença não condenou para além do pedido, pois que se limitou a actualizar o montante dos danos patrimoniais futuros.

            2) O julgamento da matéria de facto mostra-se absolutamente correcto, tendo em conta a prova global produzida, que não é abalada pelo depoimento da testemunha F..., ambíguo, confuso e, por isso, falho de credibilidade.

            3) Não há que equacionar a “culpa in vigilando”, na medida em que não foram alegados factos que a pudessem sustentar.

            4) Os danos foram correctamente avaliados e valorizados.

            5) A sentença não merece censura.

            A ex.ma juiz reparou a nulidade arguida pela apelante, nos termos do artigo 668.º, n.º 4, do CPC, tendo reduziu o valor do dano patrimonial para € 30.000,00 e o montante global da condenação para € 60.000,00.

            As partes conformaram-se com a decisão, vindo, no entanto, a apelante esclarecer que mantinha interesse no recurso, mas, apenas, quanto aos restantes fundamentos da sua alegação.  

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Ultrapassada a questão da nulidade da sentença, por via da sua reparação, como antes se disse, subsistem, para apreciação, as seguintes questões:

            a) A alteração da matéria de facto;

            b) A responsabilidade pela produção do acidente;

            c) O valor da indemnização.

           

           II. A matéria de facto dada por assente na sentença recorrida:

A) No dia 20 de Fevereiro de 2003, pelas 17 horas, na Rua Dr. Pedro Lemos, na Lousã, ocorreu um acidente de viação.

            B) Tal acidente consistiu no atropelamento do Autor pelo veículo Jeep com a matrícula 00-00-JD, conduzido por F... e seguro no H..., Companhia de Seguros SA.

            C) O local do acidente configura uma recta imediatamente antecedida de um cruzamento da Travessa Dr. Pedro Lemos com a Avenida do Brasil e a Rua Dr. Pedro Lemos sendo que

            D) A via mede 6,10 m de largura.

            E) À data do acidente, o condutor do veículo 00-00-JD tinha a responsabilidade civil emergente de acidente de viação transferida para O G..., Companhia de Seguros SA., através da apólice nº 383862.

            F) O condutor do veículo Jeep provinha da Travessa Dr. Pedro Lemos e ao alcançar o referido cruzamento passou a circular na Rua Dr. Pedro Lemos, no sentido Avenida do Brasil/Escolas.

            G) O menor atravessava a Rua Dr. Pedro Lemos, da esquerda para a direita, considerando o sentido Avenida do Brasil/Escolas, encontrando-se a 2,30 m do lancil do passeio esquerdo.

            H) Em consequência deste acidente, foi instaurado procedimento criminal contra o condutor do veículo, tendo os autos sido arquivados por morte deste, ocorrida em 9 de Outubro de 2004.

            I) Esta seguradora foi incorporada na D..., Companhia de Seguros, SA, sucedendo-lhe em todos os direitos e obrigações.

            J) Não existia qualquer obstáculo que impedisse a visibilidade do condutor do veículo.

            L) A faixa de rodagem era avistável em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 metros.

            M) O menor foi imediatamente transportado de urgência para o Centro de Saúde da Lousã e daqui transferido para o Hospital Pediátrico G..., onde ficou internado no serviço de ortopedia durante um mês.

            N) Apresentando fractura exposta do membro inferior esquerdo e várias equimoses no braço esquerdo.

            O) O menor foi tratado com tracção e gesso.

            P) Durante o período de internamento teve de manter a perna engessada e imobilizada no ar, com um peso.

            Q) O menor teve alta do Hospital Pediátrico G... em 19/03/03, tendo permanecido em casa durante um mês ficando a perna imobilizada com bota de gesso até ao joelho.

            R) Após alta hospitalar, continuou a ser seguido na consulta externa de ortopedia onde se detectou que claudicava na marcha por dismetria.

            S) Quando lhe foi retirado o gesso, passou a locomover-se com o auxílio de duas canadianas durante dois meses.

            T) As lesões descritas e os tratamentos médicos a que o menor foi submetido, causaram-lhe intensas dores e sensações fortes de desconforto e mal-estar.

            U) Também sofreu a angústia do internamento e incómodos por ter de usar canadianas e não poder movimentar-se.

            V) Em consequência das lesões supra descritas, o menor padeceu de sequelas que lhe determinaram uma incapacidade geral absoluta pelo período de dois meses.

           X) Em consequência do acidente, o A. sofreu:

            Período de incapacidade temporária geral total fixável em 60 dias;

            Período de incapacidade temporária geral parcial fixável em 638 dias;

            Período de incapacidade temporária total para as actividades escolares, fixável desde 20 de Fevereiro de 2003 até ao início do 3º período do ano lectivo de 2002/2003;

            Período de incapacidade temporária parcial para as actividades escolares desde o início do 3º período do ano lectivo 2002/2003 até à data da consolidação;

            Quantum doloris fixável no grau 4 numa escala de 1 a 7;

            Incapacidade permanente geral fixável em 5%, a partir da data da consolidação;

            As sequelas resultantes do acidente são, em termos de rebate profissional, compatíveis com o exercício das actividades escolares do A., exigindo-lhe alguns esforços suplementares nas actividades desportivas que exijam boa mobilidade dos membros inferiores;

            O prejuízo de afirmação pessoal foi fixado no grau 1 numa escala de 1 a 5,

            Z) E ficou com a incapacidade permanente de 5%.

            AA) A IPP de 5% reflectir-se-á sempre numa maior dificuldade de exercer as actividades do quotidiano, sejam pessoais, domésticas, profissionais ou lúdicas,

            BB) Teve durante vários meses queixas dolorosas na mobilidade e flexibilidade da perna.

            CC) Revelando dificuldade em iniciar a marcha.

            DD) À data da propositura da presente acção, o menor apresentava queixas de dores na perna e joelho esquerdos.

            EE) Em consequência do acidente o menor A...sente uma ligeira dor ao nível da face posterior da perna, quando marcha em calcanhar.

            FF) O A...sofreu encurtamento de 5 mm no fémur esquerdo, compatível com sequela de fractura diafisária.

            GG) Em virtude do acidente, o menor sofreu uma quebra no seu rendimento escolar.

            HH) Foi obrigado a faltar às aulas e, quando assistia às mesmas, o poder de concentração e aprendizagem revelava-se diminuído.

            II) No ano lectivo seguinte não logrou transitar de ano, fruto da sua má preparação, no ano anterior, decorrente do acidente.

            JJ) O facto de ter perdido o ano escolar causou um enorme desgosto ao A....

            LL) À data do acidente era uma criança que gozava de boa saúde e era alegre.

            MM) Face às lesões que sofreu, o A... passou a ter medo de ficar aleijado e de não poder mais jogar futebol.

            NN) Não pode acompanhar os colegas nos jogos de futebol e corridas com a mesma desenvoltura com que fazia anteriormente.

            OO) Sentindo-se complexado, triste e com menor dinamismo.

            PP) A assistência hospitalar prestada ao menor pelo HUC orçou em 2.297,70 euros.

   III. O direito:

            a) A alteração da matéria de facto

            A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se constarem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida – alínea a) do nº 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo DL 303/07, de 24 de Agosto, que é a aqui aplicável.

            Quando a impugnação se basear em depoimentos gravados, é necessário que o recorrente indique, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa; neste caso, tem, ainda, o recorrente de correlacionar os depoimentos com o assinalado na acta (artigos 690.º-A, n.º 1, e 522.º-C do aludido diploma).

            Sendo indiscutível que a recorrente cumpriu os requisitos legais de que depende a impugnação dos factos assentes – indicou os pontos de facto que entendeu mal decididos, concretamente, os quesitos 37 e 38, referiu os meios de prova que, na sua óptica, impunham decisão diversa, a saber, o depoimento da testemunha F..., e situou esse depoimento na cassete gravada, que, aliás, transcreveu, ainda –, nada obsta, naturalmente, à reapreciação da prova.

            Resta saber se a sua argumentação colhe.

            Os artigos 37 e 38 da base instrutória, que foram julgados não provados, mas que, na opinião da apelante deveriam ter sido considerados provados, estão assim redigidos:

            37 – “Quando, de repente, lhe surge na sua frente a correr o menor A...?”.

            38 – “A não mais de 2/3 metros de distância?”.          

Para responder negativamente, ponderou o tribunal que ninguém assistira ao acidente, para além do condutor da viatura atropelante, já falecido, e, pretensamente, da testemunha F..., mas o depoimento desta não merecia credibilidade, por ser conclusivo e contraditório com outros elementos de prova.

A tese da recorrente é a de que o depoimento desta testemunha, na parte em que relatou ter visto “duas crianças a caminharem no passeio do lado esquerdo na brincadeira (…) deveriam vir da escola (…) inopinadamente o peão, vamos-lhe chamar assim, quer dizer, mete-se à frente do carro, o condutor coitado não teve a mínima hipótese de evitar o embate no menino (…) nem houve rastos de travagem (…) aquilo que aconteceu àquele senhor acontecer-me-ia a mim se fosse eu na posição dele (…) o senhor não teve tempo para reagir”, conjugado com a Participação de Acidente de Viação e respectivo Esboço, juntos aos autos, implicavam que as respostas fossem de sentido positivo.

A fazer fé na versão do acidente avançada por esta testemunha, dúvidas não há de que as repostas teriam de ser afirmativas. A questão é que o seu depoimento é, de facto, conclusivo, impreciso e, até, contraditório nos próprios termos.

É bom que se note, em primeiro lugar, que a testemunha parece ter vindo a tribunal altamente contrariada, quando a sua profissão – perito averiguador de companhias de seguros – até faria pressupor o contrário; denotou, mesmo, algum azedume contra a mãe do autor, por o ter arrolado, perfeitamente perceptível em passagens como estas: “eu fui arrolado como testemunha, não sei a título de quê … nem sequer me identifiquei à GNR como testemunha, nem pouco mais ou menos, porque farto de acidentes de viação ando eu … não achei necessidade nenhuma de me estar a identificar como testemunha. Passados uns tempos fui incomodado pela mãe do menino, várias vezes, que queria que eu fosse à força testemunha e eu disse: minha senhora, não me ponha como testemunha”.

Depois, não obstante ter afirmado que seguia mesmo atrás do veículo atropelante (um todo o terreno Suzuki Vitara), que ia com muita atenção e que via tudo o que se passava à frente deste – “eu consigo visualizar toda a largura e extensão do passeio do lado esquerdo como o que se passa à frente do veículo que vai a circular à minha frente” (mas como seria possível visualizar tudo o que se passava à frente do Suzuki, se o depoente conduzia um pequeno utilitário, Renault Clio, que é cerca de 20 centímetros mais baixo e sensivelmente da mesma largura daquele, como se pode ver em qualquer catálogo automóvel) –, não conseguiu dizer a que distância se achava o autor do veículo segurado quando iniciou a travessia da rua, nem qual o ponto do embate (sequer, a que distância do passeio), nem, ainda, a parte do veículo que colheu o autor.

Por outro lado, pese embora, ainda, a sua tão decantada atenção, não soube esclarecer, aproximadamente, sequer, durante quanto tempo circulou atrás do todo o terreno nem a distância percorrida nessa situação; a ideia que transmite é que transitavam os dois numa avenida comprida, quando, afinal, o acidente ocorreu mal o Jeep (chamemos-lhe assim, por comodidade de expressão) dobrara uma curva desenhada para a respectiva direita.

Asseverou que o autor caminhava no passeio do lado esquerdo, considerando o sentido de marcha dos veículos, acompanhado de outro menino, e que, subitamente, se atravessou à frente do Jeep, quando o acompanhante do autor (a testemunha I... ) transpôs a rua antes do embate e, já do outro lado, avistou o veículo do depoente a uma distância considerável, como referiu.

Começou por dizer que pensava ter visto uns cães – “acho que havia para aí um cão qualquer” – para dizer, depois, que só tinha uma noção, mas não a cem por cento, e concluir, finalmente, que “eu não tenho essa noção do cão, não sei se havia cão, se não havia” (repare-se que, na tese da ré, o autor iria a fugir de uns cães); mais curioso, talvez, quando advertido para dizer só o que soubesse, rematou deste modo: “tenho uma ideia, mas não tenho, tenho assim um vulto, mas não…”.

Disse estar no local, com a sua viatura atrás do Jeep, quando a GNR levantou o auto (“tanto estive, que tive de esperar que o senhor do Jeep tirasse o carro”), mas o agente participante (a testemunha J... ) afirmou não se recordar de haver qualquer veículo atrás da viatura atropelante (certo é que o não sinalizou na participação).

Um depoimento desta natureza não pode ter, de facto, credibilidade; não é aceitável que uma testemunha que alardeia um cuidado e uma atenção ao trânsito muito para além do normal, que demonstra uma enorme auto-satisfação quando lhe é dito (pela ex.ma advogada do autor) que tem um GPS na cabeça (a resposta “chame-lhe o que quiser” e o riso que a acompanhou dizem muito) e que, ademais, tem como profissão analisar acidentes de viação para companhias de seguros, não seja capaz de precisar coisas tão elementares como o local do embate ou a parte do veículo que embateu, incorra em tantas incorrecções e se contradiga quando instado a esclarecer a razão de se lembrar de determinados pormenores.

Testemunha que “despeja” conclusões (perdoe-se a expressão) e ignora factos não merece ser levada a sério; para mais, quando procura, a todo o transe, furtar-se ao dever cívico de depor em tribunal.

Afastado este depoimento, nada mais existe que dê consistência à posição da apelante; nenhuma outra testemunha presenciou o acidente (o colega do autor que o acompanhava antes do acidente, mas atravessara, entretanto a rua, encontrava-se de costas, segundo afirmou) e os elementos materiais recolhidos, mormente pelo agente da autoridade que acorreu ao local, não são conclusivos quanto à dinâmica do evento.

Diz a própria apelante, e muito bem, citando, de resto, jurisprudência uniforme, que só o erro notório de julgamento, patenteado na desconformidade flagrante entre os elementos de prova recolhidos e a decisão da matéria de facto, permite à Relação modificar a factualidade dada por assente em 1.ª instância; é, na realidade, a conclusão óbvia a extrair do princípio da livre apreciação das provas, plasmado no artigo 655.º do CPC.

Não se vislumbrando, no caso, essa desconformidade (devido, até, à escassez e à contraditoriedade dos elementos de prova recolhidos), só há que concluir que a decisão de facto não merece censura e não pode, portanto, ser alterada por este Tribunal.

            b) A responsabilidade pela produção do acidente

            Na sentença recorrida entendeu-se não ser possível imputar a culpa pela produção do acidente a qualquer dos respectivos intervenientes (condutor do veículo atropelante e peão atropelado), em razão do que se fez apelo à responsabilidade pelo risco, que se atribuiu por inteiro ao condutor da viatura, na consideração de que o peão não produz risco algum.

            A apelante não questionou o acerto da decisão, enquanto baseada nos factos dados por assentes. A sua posição é a de que deveria ter sido considerado provado que o menor atropelado se atravessou, a correr, na frente do veículo, quando este não estava a mais de 2/3 metros de distância, do que derivaria ser ele o único culpado pela produção do acidente.

            A improcedência da impugnação da matéria de facto e a falta de discordância quanto ao sentido da decisão, fora do condicionalismo da alteração daquela, haverão de conduzir, como não pode deixar de ser, à aceitação da tese perfilhada na sentença.

            Sempre se dirá, de todo o modo, que essa é a interpretação mais razoável, em face dos factos que, agora, se acham definitivamente consignados e são os seguintes:

            O atropelamento ocorreu na Rua Dr. Pedro Lemos, que é uma recta imediatamente antecedida de um cruzamento: o cruzamento da Travessa Dr. Pedro Lemos com a Avenida do Brasil e a Rua Dr. Pedro Lemos.           

            O condutor da viatura provinha da Travessa Dr. Pedro Lemos e, ao alcançar aquele cruzamento, passou a circular na Rua Dr. Pedro Lemos, no sentido Avenida do Brasil/Escolas.

            O menor atravessava a Rua Dr. Pedro Lemos, da esquerda para a direita, considerando o sentido Avenida do Brasil/Escolas, encontrando-se a 2,30 metros do lancil do passeio esquerdo.

            A via onde ocorreu o atropelamento tinha 6,10 metros de largura.

            A faixa de rodagem era visível em toda a sua largura numa extensão de 50 metros, pelo menos, sendo que o condutor do veículo não tinha qualquer obstáculo à sua frente.

            O que desta matéria se pode extrair é que nem o condutor do veículo nem o peão praticaram (rectius, não se provou que tenham praticado) qualquer infracção que tenha sido causal do acidente.

            Quanto ao veículo, desconhece-se a velocidade a que transitava (havendo de admitir-se, porém, que não era elevada, pois, nesse caso, seriam, com certeza, mais funestas as consequências do embate) e as condições em que o fazia, mormente se seguia atento ou desatento à condução. Certo que teria de ocupar, ao menos, em parte, a metade esquerda da faixa de rodagem (em contravenção, portanto, ao disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código da Estrada, na redacção do DL 265-A/01, de 28 de Setembro), uma vez que o embate ocorreu a 2, 30 metros do lancil do passeio esquerdo, quando a via tinha 6,10 metros de largura; o problema é que se desconhece por que o fez, conquanto, aparentemente, não existisse obstáculo algum a que respeitasse o comando do artigo 13.º, n.º 1, do mesmo diploma, circulando, por conseguinte, mais próximo da sua berma direita.

            De qualquer sorte, não é possível afirmar que tenha sido esse o motivo determinante do embate, até porque se ignoram, também, as circunstâncias em que o peão se abalançou a atravessar a faixa de rodagem, nomeadamente, o modo como o fez (lentamente ou com rapidez) e a distância a que se achava, então, a viatura que o veio a colher; a observância, ou não, das disposições legais relativas ao atravessamento da faixa de rodagem (artigo 101.º do aludido código) é algo que permanece por completo na sombra.

           Num quadro factual tão falível, seria demasiado ousado concluir, seja pela violação de qualquer regra estradal, seja pela infracção dos deveres de diligência que são apanágio de um bom pai de família (artigo 487.º, n.º 2, do C. Civil).  

           Afastada a culpa efectiva e não se detectando presunção de culpa aplicável ao caso,[1] cair-se-á, necessariamente, na responsabilidade pelo risco, nos termos do n.º 1 do artigo 503.º do último diploma mencionado, já que o acidente não é, também, imputável a terceiros nem resultou de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505.º do mesmo código).

           Responsabilidade que cabe totalmente ao condutor da viatura, como bem se considerou na sentença, pois que o peão não produz risco.

           c) O valor da indemnização

  O autor computou em € 35.000,00 o valor (actualizado, com reporte à data da sentença) do dano não patrimonial e em € 25.000,00 o valor do dano patrimonial futuro.

  A sentença apelada, por sua vez, fixou em € 30.000,00 o valor do dano não patrimonial (após correcção derivada da sanação da nulidade da sentença, arguida pela apelante) e em igual quantia o valor do dano patrimonial futuro.

A recorrente não questionou a existência dos danos, mas, tão-só, os montantes atribuídos, que considerou exagerados, conquanto não indicasse os que entendia correctos.

No que tange ao dano patrimonial futuro, a especificidade do caso torna extraordinariamente difícil o seu cálculo, uma vez em que o autor tinha, apenas, 11 anos à data do acidente, não havendo, por conseguinte, profissão a atender, nem sobejando elementos que permitam aferir em que medida as lesões sofridas poderão influenciar a sua capacidade de ganho.

Mas, não havendo dúvidas de ser ressarcível o dano, ainda quando o lesado não exerça qualquer profissão remunerada (acórdão do STJ de 07.02.2008, CJ de Acórdãos do Supremo, Ano XVI, Tomo I, página 91), haverá que atender à incapacidade para a generalidade das profissões, à incapacidade genérica para utilizar o corpo enquanto prestador de trabalho e produtor de rendimento e a possibilidade da sua utilização em termos correspondentemente deficientes ou penosos (acórdão do mesmo Tribunal de 02.10.07, CJ de Acórdãos do Supremo, Ano XV, Tomo III, página 68).

Para respeitar o enquadramento legal da reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562.º do CC), o critério a seguir será o de achar uma indemnização em dinheiro que corresponda a um capital gerador de rendimento equivalente ao que o lesado deixará de auferir, mas que se extinga no período provável de vida activa (acórdãos do STJ de 04.06.98, BMJ 478, página 344, de 15.12.1998, CJ de Acórdãos de Supremo, Ano VI, Tomo III, página 155, e de 25.06.2002, mesma CJ, Ano X, Tomo II, página 128).

A solução que tem sido entendida como mais adequada para achar o cálculo dessa indemnização é a que parte de determinadas fórmulas matemáticas, mas sempre sujeitas ao tempero da equidade (artigo 566.º, n.º 3, do CC).

A regra é atender ao tempo provável de vida activa do lesado – que, não obstante alguma variação de entendimento, se pode situar nos 65 anos, como se considerou naquele primeiro aresto, mas sem esquecer que a vida se vai prolongando cada vez mais para além da reforma, podendo o lesado, mesmo nessa fase, retirar outros proventos –, à incapacidade de que ficou portador, ao salário auferido ou ficcionado, conforme for o caso, e à taxa de juro.

Sempre que o lesado, devido à idade, não tenha entrado, ainda, no mercado de trabalho, deve ser considerado o seu ingresso na vida activa aos 18 anos e o salário médio acessível a um jovem saudável dotado de formação profissional média (acórdão do STJ de 02.10.2007, antes referido).

Como salário médio pode aceitar-se um valor na ordem dos € 650,00,[2] não muito superior, de resto, ao valor do salário mínimo nacional e como taxa de juro 4%.

Considerando, portanto, um salário anual de € 9.100,00 (€ 650,00x14), um tempo provável de vida activa de 47 anos (65-18), o coeficiente de incapacidade de 5% e uma taxa de juro de 4%, obtém-se um valor ligeiramente superior a € 20.000,00.

Julga-se que esta é a quantia que melhor se adequa à situação, tendo em conta que os factores que apontam para o aumento do valor (o prolongamento da IPP para além da fase da reforma, o progressivo aumento dos salários, as próprias expectativas de se vir a alcançar um salário mais elevado por via do completamento de formação académica ou de formação técnico-profissional, a tendência para a melhoria das condições de vida e a inflação) e os que aconselham a sua descida (essencialmente, a incerteza da duração da vida e da satisfação das expectativas criadas e o recebimento antecipado daquilo que só muito mais tarde viria ao património do lesado) se equilibram razoavelmente entre si.

No que tange ao dano de natureza não patrimonial, cuja ressarcibilidade depende da sua gravidade, os critérios para a sua fixação encontram-se estabelecidos nos artigos 496.º e 494.º do CC; a regra base é a equidade, tendo em atenção as circunstâncias do caso, de que avultam o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e outras que se tenham apurado. 

“A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo …, e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, página 600).

Para as circunstâncias do caso, hão-de relevar a natureza e o grau das lesões, as suas sequelas (físicas e psíquicas), os tratamentos médicos, mormente intervenções cirúrgicas, os internamentos, o tempo de doença, o “quantum doloris”, a afirmação social, a alegria de viver, a auto estima, a idade, a esperança de vida e perspectivas de futuro (acórdão do STJ de 02.10.2007, acima referido).

A culpa não foi apurada, sendo que é ignorada a situação económica do lesado (com reporte, naturalmente, à de seus pais, na medida em que ele é estudante) e elevada a da obrigada a indemnizar, como o é, em geral, a das companhias de seguros.

Quanto às circunstâncias do caso, é este o quadro fáctico:

O autor sofreu fractura exposta do membro inferior esquerdo, para além de equimoses no braço esquerdo, tendo sido tratado com tracção e gesso.

Esteve internado desde a data do acidente (20.02.2003) até 19.03.2003, ou seja, durante um mês.

Durante o internamento teve de manter a perna engessada e imobilizada no ar, com um peso.

Teve alta em 19.03.2003, permanecendo, depois, em casa, durante um mês, com a perna imobilizada com bota de gesso até ao joelho.

Continuou, após a alta, a ser seguido na consulta externa de ortopedia, onde se detectou que claudicava na marcha por dismetria.

Retirado o gesso, passou a locomover-se com o auxílio de duas canadianas durante dois meses.

As lesões e os tratamentos causaram-lhe dores intensas e sensação forte de desconforto e mal estar.

Sofreu a angústia do internamento e incómodos por ter de usar canadianas e não poder movimentar-se.

Em consequência das lesões ficou com sequelas que lhe determinaram uma incapacidade geral absoluta pelo período de dois meses.

Teve um período de incapacidade geral total de 60 dias, um período de incapacidade temporária geral parcial de 638 dias, um período de incapacidade temporária total para as actividades escolares desde 20.02.2003 até ao início do 3.º período do ano lectivo de 2002/2003 e um período de incapacidade temporária parcial para as actividades escolares desde o início do 3.º período de 2002/2003 até à data da consolidação.

O “quantum doloris” foi de grau 4 numa escala de 1 a 7.

Ficou com uma incapacidade permanente geral de 5% a partir da data da consolidação.

As sequelas do acidente exigem-lhe esforços suplementares nas actividades que demandem boa mobilidade dos membros inferiores.

O prejuízo de afirmação pessoal é de grau 1 numa escala de 1 a 5.

Ficou com uma IPP de 5%, que se reflectirá sempre numa maior dificuldade de exercer as actividades do quotidiano, sejam pessoais, domésticas, profissionais ou lúdicas.

Durante vários meses teve queixas dolorosas na mobilidade e flexibilidade da perna, revelando dificuldades em iniciar a marcha.

À data da propositura da acção apresentava queixas de dores na perna e joelho esquerdos.

Sente uma ligeira dor ao nível da face posterior da perna quando marcha em calcanhar.

Sofreu encurtamento de 5 mm no fémur esquerdo.

Sofreu uma quebra no seu rendimento escolar.

Foi obrigado a faltar às aulas e, quando a elas assistia, o poder de concentração revelava-se diminuído.

No ano lectivo seguinte não logrou transitar de ano, fruto da sua má preparação no ano anterior, decorrente do acidente, o que lhe causou um enorme desgosto.

À data do acidente era uma criança que gozava de boa saúde e era alegre.

Devido às lesões passou a ter medo de ficar aleijado e não poder jogar futebol.

Não pode acompanhar os colegas nos jogos de futebol com a mesma desenvoltura com que o fazia anteriormente, sentindo-se complexado, triste e com menor dinamismo.

O descrito quadro é, sem sombra de dúvida, grave, sobretudo pelo internamento, pelos tratamentos, pela imobilização, pelo condicionamento posterior da mobilidade, pelas dores, pela angústia, pelo receio do futuro, pelas dificuldades actuais em certas actividades e pela perda do ano escolar.

O ressarcimento dos danos não patrimoniais não visa, no entanto, a reconstituição natural (o sofrimento físico e anímico, a privação da mobilidade e a perda de rendimento escolar não são passíveis de ser removidos), mas, simplesmente, atribuir ao lesado uma compensação monetária que, de algum modo, lhe atenue os incómodos por que passou e lhe permita aceder a benefícios que lhe proporcionem prazer.

Ponderadas as referidas circunstâncias, tendo presentes as consequências definitivas das lesões e não esquecendo que se não apurou a culpa do lesante, julga-se equitativo o montante de € 20.000,00 para ressarcir o apurado dano.

IV. Síntese final:

a) É compatível com o princípio da liberdade do julgamento a desvalorização de depoimento impreciso, conclusivo e com evidentes falhas e contradições.

b) Não provada a culpa, efectiva ou presumida, há que apelar à responsabilidade pelo risco.

c) Ainda que o lesado não tenha entrado na vida profissional remunerada, é ressarcível o dano derivado da perda de capacidade aquisitiva.

d) Para o cálculo do dano futuro deve considera-se o ingresso no mercado de trabalho aos dezoito anos e o salário médio ao alcance de um jovem saudável dotado de formação profissional média.

V. Decisão:

Em face de tudo quanto se expôs, decide-se julgar a apelação parcialmente procedente, em razão do que se alteram os valores arbitrados em primeira instância para o dano patrimonial futuro e para o dano não patrimonial, que se fixam, cada qual, em € 20.000,00 (vinte mil euros), mantendo-se, no mais, o que ficou decidido.

Custas por apelante e apelado na proporção do respectivo decaimento.


[1] A recorrente apela à presunção de culpa dos pais do autor menor, nos termos do artigo 491.º do CC, mas só para a hipótese de resultar provada a matéria dos quesitos 37.º e 38.º, o que não sucedeu; diga-se, de todo o modo, que se não vê qual a utilidade da citação do preceito, uma vez que o mesmo se limita a impor ao representante legal do incapaz a obrigação de ressarcir os danos resultantes dos actos praticados por este e, no caso, nenhum pedido foi formulado contra eles.
[2] No acórdão do STJ de 02.10.2007, optou-se pelo valor de € 600,00.