Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
103/21.8PBLMG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: PENAS PRINCIPAIS
PENAS ACESSÓRIAS
PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ...
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 55.º E 56.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – Traduzindo-se a suspensão da execução da pena na não execução da pena de prisão não superior a 5 anos, a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma.

II – A revisão do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, reforçou o princípio da ultima ratio da pena de prisão, valorizou o papel da multa como pena principal e alargou o âmbito de aplicação das penas de substituição, muito embora não contemple, como classificações legais, as designações de «pena principal» e de «pena de substituição».

III – Sob o prisma dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras; penas acessórias são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal; penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas.

IV – A revogação da suspensão da execução da pena por incumprimento das obrigações impostas só pode ocorrer se o incumprimento se verificar com culpa grosseira e só terá lugar como “ultima ratio”, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes providências contidas no artigo 55.º do Código Penal.

V – Violação grosseira é toda e qualquer violação que possa evidenciar-se como qualificada, qualitativamente denotativa da dimensão do incumprimento do dever ou obrigação impostos, no sentido de se considerar que tal violação se assume como grave na própria amplitude e determinação com que, na sua essência, deixou de ser cumprida a obrigação imposta, não o sendo quando se traduz num mero incumprimento parcial de uma obrigação ou quando, tratando-se de uma obrigação de execução continuada, o incumprimento se verificou apenas em algumas vezes contadas, em comparação com outras em que a mesma foi sendo cumprida.

VI – A culpa há-de revestir intensidade relevante, seja pela natureza (violação grosseira), seja pela reiteração (atitude geral de descuido e leviandade prolongada no tempo), de molde a constituir uma actuação especialmente censurável, que o cidadão médio pressuposto pela ordem jurídica repudiaria e que, por consequência, não admite tolerância ou desculpa.

VII – Para a suspensão da execução da pena de prisão ser revogada é necessário que a infracção grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos se deva à vontade do condenado e que se conclua que nenhuma outra medida, para além da revogação, é viável para alcançar as finalidades da punição (artigos 50.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, do Código Penal).

VIII – Os relatórios de incumprimento elaborados pela DGRSP não têm que ser notificados ao arguido, por estarmos em fase pós-sentencial.

Decisão Texto Integral:


RECURSO Nº 103/21.8PBLMG-A.C1

Processo Comum Singular

Suspensão da execução de pena de prisão

Revogação

Artigos 55º e 56º do Código Penal

Juízo Local Criminal de ...

Tribunal Judicial da Comarca de Viseu


Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I – RELATÓRIO

1. … o arguido AA, … foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, nºs 1 a) e 2 b), do Código Penal (doravante CP), na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, «subordinada às seguintes regras de conduta e acompanhada de regime de prova, que, além de outras tarefas e reuniões a observar pelo arguido, que sejam concretizadas pela DGRSP, contemple:

i. a sujeição do arguido a consulta médica para aferir da eventual dependência alcoólica que poderá padecer e respectivo tratamento médico, que lhe seja prescrito, com internamento, se medicamente indicado;
ii. a frequência de sessões de prevenção de violência doméstica, orientadas no sentido de o arguido interiorizar o desvalor da sua conduta, com vista a evitar a prática de novos factos, em moldes a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais;
iii. a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes;
iv. a proibição de contactos com a vítima BB, por qualquer meio (directamente e por interposta pessoa, incluindo contactos telefónicos, por telemóvel e através da internet), e de se deslocar à residência da mesma, fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância;
v. o afastamento da vítima BB, da residência da mesma e de qualquer local onde a mesma se encontre, em distância de 250 metros, fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância».

2. Por despacho de 17 de Janeiro de 2023, foi decidida a revogação de tal suspensão da execução da pena de prisão, determinando-se que o arguido cumprirá a pena de prisão em causa, nos termos do artigo 56º, nº 2 do CP.

3. É deste despacho judicial que vem recorrer o arguido, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1ª A Douta decisão socorre-se, exclusivamente, dos Relatórios enviados aos autos pela DGRSP, que não foram notificados ao arguido para efeitos de contraditório, nem antes nem durante a diligência e, nas declarações deste.

2ª É fundamento do nosso ordenamento jurídico-penal, a possibilidade do arguido se pronunciar sobre as concretas actuações ou condutas imputadas, o que só se concretiza pelo seu conhecimento atempado. Também a nível infraconstitucional, este princípio do contraditório está presente em todas as fases do processo penal;

3ª O que acarreta a sua nulidade, por ausência de outros factos substanciadores da decisão.

4ª Assentando a decisão exclusivamente nos factos do Relatório incorreu em violação da proibição de valoração de prova, por se entender que será prova proibida, dada a inexistência de notificação, de produção ou exame na respectiva diligência.

5ª E, decidindo sem qualquer outra prova suplementar, configura vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.

6ª Pois não foi ouvido o técnico que o elaborou, ou outro da mesma Equipa de Vigilância Electrónica, sedeada em Mirandela, mas apenas o técnico pertencente à Equipa do Douro, Extensão ..., que disse, peremptoriamente, nada saber sobre o constante do relatório daquela equipa de vigilância electrónica.

7ª E, no que sabe, expressou-o no Relatório que elaborou escrevendo que o arguido tem respeitado a obrigação de tratamento de alcoologia, medicina, psicologia, enfermagem e serviço social e, que não tem contactado BB, cônjuge e vítima no processo, habitando esta com um filho maior.

8ª O arguido tem cumprido, com os técnicos da DGRSP, as diferentes regras de conduta a que ficou sujeito, e por eles indicadas e acompanhadas, conforme assegurou o técnico ouvido na diligência de audição do arguido, na sequência de incumprimentos referenciados pela equipa de controlo à distância.

9ª O art. 495º, nº2 do C.P.P. estatui que “O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”, aqui da Equipa autora do Relatório, que motivou a realização da diligência de audição e subsequente decisão recorrida. O que não sucedeu.

11ª O perímetro da zona de exclusão imposto impede praticamente o arguido de se poder deslocar, ter vida social e fazer as compras diárias necessárias à sua sobrevivência, na sua localidade. O que foi logo e de imediato questionado e evidenciado pelo arguido, requerendo, sem êxito, a sua alteração.

12ª Residindo toda a sua vida na localidade de ..., tem de socorrer-se da mercearia e simultaneamente café, únicos no local, para efectuar as suas compras, o que fez pelo tempo necessário para ver os seus amigos de sempre e fazer as compras. (que se encontra dentro da zona de exclusão).

13ª O arguido é pessoa idosa, doente do foro oncológico, com tratamentos invasivos de quimioterapia e radiologia, extremamente débil fisicamente, de parcos recursos económicos e vivendo sozinho.

14ª Apenas suplicando pela sua sobrevivência, podendo ir até aquela mercearia/café da localidade (que ainda fica a mais de 150 m da residência da vítima).

15ª O arguido, admitiu que se esqueceu, à noite, uma ou duas vezes, de colocar a carregar o aparelho, como sucedeu que depois de carregado, o aparelho perdeu a carga durante o resto da noite. E, por se ter constatado que a bateria estava velha e “viciada” os Serviços resolveram substituí-la. Por duas vezes, não conseguiu de imediato coloca-la a carregar por falha da energia eléctrica. Como também admitiu que a trabalhar no seu quintal, logradouro da casa - fora da zona de exclusão – pousou o aparelho, por ser pesado, e com receio que caísse e se danificasse, durante a execução dessas tarefas.

16ª Porém, nunca nos episódios relatados pela Equipa de Vigilância, nem noutra qualquer vez, se aproximou de forma intencional ou deliberada da habitação da vítima, de local onde ela pudesse estar, ou a tentou por qualquer meio contactar.

17ª Nem a vítima alguma vez relatou qualquer episódio que a pusesse em risco ou tenha manifestado medo com os episódios verificados.

18ª O arguido era primário, não tinha cometido antes qualquer crime, nem cometeu qualquer outro depois;

19ª Não foi beliscado o juízo de prognose inicial e fundamento da suspensão, pois decorrido cerca de um ano após a sentença, e muito mais desde o terminar da relação entre o arguido e a vítima, não houve qualquer aproximação, qualquer contacto, ainda que telefónico, sendo a ausência de aproximação física a última ratio da suspensão.

20ª Se tal tivesse acontecido, poderia, aí sim, consubstanciar uma violação, grosseira e indesculpável que permitiria aferir da sua intensidade e grau de culpa posto nessa conduta, e da inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena, conduzindo à revogação da suspensão.

21ª Ponderadas as circunstâncias concretas da vida do arguido, a sua situação económica, a doença e idade, o contexto geográfico, e que a única e última finalidade da pena, não foi nem foi nem está posta em causa – pela absoluta ausência de contactos entre arguido e mulher – sobressaindo razões humanitárias, deve ponderar-se a reconfiguração da zona de exclusão e/ou com imposição de outros deveres ou regras de conduta, ouvido o arguido na presença do respectivo técnico.

22ª O Douto Despacho recorrido viola os artigos 55.° e 56º do C.P. e 495.° nº 2 do C.P.P. violando igualmente os mais elementares direitos e garantias constitucionais, desde logo o art. 1.°, 9.°, 27.° e 29.° e 30.° da Constituição, na vertente da preterição de formalidades probatórias essenciais na defesa, para além da violação do principio da legalidade previsto no art. 1 e art. 40.° do Código Penal.



            4. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que a decisão recorrida deve ser mantida.

            5. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento.

            6. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

           

1.

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, a questão a decidir consiste em saber:

            - se o despacho recorrido deve ser revogado ou mantido, ou seja, se constam já dos autos suficientes elementos que justifiquem a conclusão de que o arguido infligiu grosseira ou repetidamente as regras de condutas impostas e que estão comprometidas as finalidades da sua primitiva condenação.

            2. DO DESPACHO RECORRIDO

            É este o teor do despacho recorrido (transcrição):

«O arguido foi condenado, nos presentes autos, por sentença transitada em julgado em 19.04.2022, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, com regime de prova e subordinada a regras de conduta, como sejam:

▫ a sujeição a consulta médica para aferir de eventual dependência alcoólica que poderá padecer e tratamento médico que venha a ser prescrito;

▫ a frequência de sessões de prevenção de violência doméstica; ▫ a colaboração com os técnicos da DGRSP;

▫ a proibição de contactos com a vítima, BB, por qualquer meio e de se deslocar à residência da mesma, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância;

▫ o afastamento da vítima, BB, da sua residência e de qualquer local onde a mesma se encontre, em distância de 250 metros (de zona fixa de exclusão e 150 metros de zona de exclusão dinâmica, em volta da vítima e de qualquer local onde esta se encontre – cfr. ofício datado de 09.05.2022), fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.

Vieram, nessa sequência, a ser remetidos aos autos relatórios da DGRSP – equipa de vigilância electrónica, datados de 16.05.2022, 23.05.2022 e 03.06.2022, no qual se deu conhecimento aos autos do incumprimento das regras de conduta de afastamento da vítima, o que motivou a audição de condenado, após o que foi proferido despacho a manter a suspensão da execução da pena de prisão e suas condições, com solene advertência – cfr. despacho datado de 02.06.2022.

Após, foi remetido aos autos o relatório da DGRSP – equipa de vigilância electrónica, datado de 02.12.2022, no qual se deu conhecimento aos autos do incumprimento das regras de conduta de afastamento da vítima, o que motivou nova audição do condenado – cfr. auto datado de 15.12.2022.

Nessa sequência, o Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido.

O arguido, regularmente notificado, pugna pela manutenção da suspensão da execução da pena de prisão.

Cumpre apreciar e decidir:        

Nos termos do disposto no artigo 56º, nº 1, alínea a), do Código Penal, “a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social”.

O condenado infringe grosseiramente os deveres ou as regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social quando, culposamente, os não observa.

Basta, para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, que da conduta provada resulte um modo de agir do condenado especialmente reprovável e, portanto, uma conduta onde a falta de cuidado, a imprevidência assume uma intensidade particularmente elevada.

O período de suspensão em causa corre até 19.10.2025.

Efectivamente, conforme consta da informação junta aos autos, designadamente do relatório de incidentes efectuados pela equipa de vigilância electrónica, e foi confirmado pelo arguido nas suas declarações, este, por diversas vezes, continua a deslocar-se e permanecer dentro da zona de exclusão fixada.

Acresce que, conforme resulta da última informação, há ainda diversas situações de dano, sabotagem, não transporte da unidade de posicionamento móvel, bem como falha de carregamento de tal unidade, o que também vem ocorrendo sucessivamente.

Justificou tal actuação por necessitar de ir ao café e à mercearia, que é a única ali existente, bem como que não carrega o equipamento por não ter energia eléctrica ou por esquecimento.

Ora, ao contrário do que o arguido pretende fazer crer, os incidentes reportados não se tratam de meras passagens repentinas ou cruzamentos de passagem com a vítima, dado que, conforme se constata facilmente do relatório de incidentes, o mesmo continua a permanecer durante várias dezenas de minutos dentro das zonas de exclusão, o que faz reiteradamente.

Acresce que, também ao contrário do que procurou fazer crer, não resultou das suas declarações nem de quaisquer elementos juntos aos autos que esteja, de todo, impossibilitado de efectuar as suas compras noutro local, tanto mais que referiu que, por vezes, já solicitou a um vizinho que lhe trouxesse alguns mantimentos.

Aliás, conforme por si referido, o supermercado mais próximo situa-se a cerca de um quilómetro e meio, pelo que o arguido tem, efectivamente, outras alternativas para efectuar as suas compras, sem que tenha de, necessariamente, se deslocar àquele local, que se situa dentro da zona de exclusão.

Inexiste qualquer justificação – nem o mesmo conseguiu adiantar nenhuma – para que, conforme resulta do relatório de incidentes, se desloque e permaneça dentro da zona de exclusão.

Além disso, existem ainda várias situações em que o arguido não cumpre as suas obrigações decorrentes dos meios técnicos de controlo à distância, não levando consigo o equipamento de posicionamento móvel e não o carregando, permanecendo várias horas seguidas sem que se consiga efectivar o controlo do cumprimento da regra de conduta de proibição de contactos e afastamento da vítima.

Acresce que, nessas situações, o arguido não atende as chamadas que lhe são feitas pelos técnicos da vigilância electrónica, tendo determinado, nos períodos mais longos, a colaboração das entidades policiais, sendo que, quando conseguem estabelecer contacto com o arguido, este apresenta atitude desrespeitosa para com aqueles técnicos.

Caso tal sucedesse por esquecimento ou por receio de estragar o aparelho, como procurou justificar, tal situação não seria, como é, recorrente, dado que, conforme informação da equipa de vigilância electrónica, quando conseguem contactar o arguido, este é sucessivamente alertado para os necessários carregamentos do aparelho e de que tem que se fazer acompanhar do mesmo em todas as situações, além de que o arguido tem pleno conhecimento dessas suas obrigações.

Acresce que não foi minimamente credível, nem verosímil, a justificação avançada de que não tinha corrente eléctrica para não proceder a esse carregamento, dado que, além de acabar por, posteriormente, conseguir carregar o aparelho, tal alegada ausência de corrente eléctrica não decorre, conforme admitiu, de falta de pagamento da respectiva conta e não se verificarem cortes de energia que durem várias horas em diversos dias da mesma semana.

Apesar de tais avisos e alertas, por diversas vezes, o arguido continua a não se fazer acompanhar de tal aparelho ou de não proceder ao seu carregamento, ficando, por várias horas seguidas e, pelo menos num dos dias, por várias vezes, nesse mesmo dia, durante várias horas, sem o efectivo controlo e fiscalização do cumprimento da regra de conduta de afastamento da vítima.

Por fim, conforme informa a equipa de vigilância electrónica, em caso de violação das zonas de exclusão ou afastamento do aparelho móvel, o arguido não responde aos contactos telefónicos efectuados pelos respectivos técnicos e, quando o faz, apresenta uma postura arrogante, desajustado, sem qualquer interiorização da conduta que adopta.

A violação das zonas de exclusão, o afastamento do aparelho móvel e/ou o seu não carregamento têm sido, reiteradamente, praticadas pelo arguido, que, com esse comportamento, não permite a fiscalização das regras de conduta que lhe foram impostas, nem garantir a segurança da vítima.

Aliás, segundo informação da equipa de vigilância electrónica, a vítima, quando contactada em virtude dos descritos comportamentos do arguido, verbaliza receio da atitude que este possa ter, procurando proteger-se e afastar-se dos locais onde, previsivelmente, pensa que este poderá estar.

A idade do arguido, a doença de que, infelizmente, padece e a sua habituação a determinadas rotinas não são justificação suficiente para que, reiterada e sucessivamente, continue a incumprir as condições de suspensão da execução da pena de prisão.

O que o arguido pretende é impor a sua forma de cumprir a pena a que foi condenado, teimando, injustificadamente e apesar de conhecedor das consequências de tal comportamento, na manutenção do seu comportamento incumpridor das condições de suspensão da execução da pena de prisão, designadamente de afastamento da vítima, violando, reiteradamente, as zonas de exclusão determinadas.

Acresce que, pela postura que adoptou na sua última audição e pela forma como prestou as suas declarações, facilmente se conclui que pretende manter o mesmo comportamento, impondo a sua vontade na forma de cumprimento da pena a que foi condenado.

Tal conclusão retira-se,  com evidência,  das suas declarações, quando afirma, peremptoriamente e apesar de alertado expressamente para as consequências do incumprimento, que irá continuar a ir ao café/mercearia, dizendo que “só tem um caminho a seguir”, “o caminho que tenho não vou deixar de o fazer” e que “possivelmente venho cá [ao Tribunal] mais vezes”.

Resulta patente, pela forma como prestou as suas declarações, que o arguido tem extrema dificuldade em respeitar as ordens que lhe são impostas, bem como as directrizes dos técnicos da equipa de vigilância electrónica, sendo notório que pretende impor a sua vontade na maneira de cumprir as condições da suspensão da pena a que foi condenado.

Além disso, resultou evidente que o mesmo parece desprendido e alheado das suas obrigações, sem qualquer preocupação pelas consequências do desrespeito das condições que lhe foram impostas, tanto mais que afirmou, por diversas vezes e de forma peremptória, que continuará a praticar os mesmos comportamentos.

Conforme já se referiu, o arguido tem alternativas para prover à sua subsistência, designadamente pedindo auxílio a um vizinho, conforme o próprio confirmou, ou adquirir o que necessita noutro local, pelo que se conclui que não cumpre as obrigações que lhe foram impostas como suspensão da execução da pena de prisão por assim não querer.

Assim, de tais informações e do comportamento do arguido, pode concluir-se que o mesmo nunca se empenhou no cumprimento de tais condições de suspensão da execução da pena de prisão, apesar de saber da pendência destes autos e da aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução, com subordinação a regras e deveres de conduta que, naturalmente, tinham que ser cumpridas.

Esta sua actuação revela um incumprimento culposo, que lhe é imputável, por, manifestamente, o arguido não cumprir tais obrigações por não querer, voluntário, por as regras de conduta serem passíveis de cumprimento por parte do arguido, não representando obrigações que, razoavelmente, não lhe sejam exigíveis, reiterado e dotado de gravidade, tanto mais que a solene advertência que já foi alvo não surtiu qualquer efeito, o que se revela na continuidade do mesmo tipo de comportamentos subjacentes a tal solene advertência.

Não se vislumbram quaisquer outros deveres ou regras de conduta que possam ser impostos ao arguido que permitam alterar o seu comportamento e fazer com que o mesmo interiorize que tem que cumprir as condições da suspensão da execução da pena de prisão, que foram impostas por se vislumbrarem necessárias à reintegração do arguido na sociedade, protecção da vítima e garantia das exigências de prevenção geral e especial.

Como resulta manifesto de tudo quanto acima se expôs, o arguido não cumpre a regra de conduta de afastamento da vítima que lhe foi imposta, além de, conforme informado pelo técnico da DGRSP na diligência efectuada, lhe ir ser dada alta do tratamento médico por parte do CRI por o arguido não ter revelado empenho nem adesão ao tratamento médico, mantendo uma postura displicente, desajustada, ausente de autocrítica e interiorização da sua conduta, a que acresce a posição assumida de reiteração dos seus comportamentos incumpridores de tais regras de conduta e condições.

Infringiu, assim, de forma grave, repetida e grosseira os deveres para si resultantes daquele dever, infracção essa ocorrida em pleno período de suspensão da execução da pena.

Com a actuação demonstrada nos autos, o arguido não soube valorizar e aproveitar as oportunidades que se lhe ofereceram, incluindo a solene advertência que já lhe foi efectuada.

Note-se que, conforme decorre do processado, até à presente data, não decorreu sequer um ano desde o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida, tendo sido já realizadas duas audições de condenado por incumprimento das condições de suspensão.

Afigura-se-nos, assim, sem margem para dúvidas, que o condenado nestes autos, não cumprindo as regras de conduta a que ficou sujeita a suspensão da pena de prisão, associada à sua postura, contínua, persistente e reiterada, de assunção que não pretende cumprir as mesmas, não interiorizou a mesma, inutilizou a confiança na reinserção em liberdade que a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão significou, tornando claro que as finalidades na origem da suspensão da pena de prisão aplicada não foram por meio dela alcançadas.

Como tal, e por tudo o exposto, proferir-se-á decisão de revogação de suspensão da execução da pena de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido.

Face ao exposto, nos termos do preceituado no artigo 56º, nº 1, alínea a), e nº 2 do Código Penal, decide-se REVOGAR a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA e, consequentemente, determinar o cumprimento da pena de 3 anos e 6 meses de prisão a que foi condenado.

*

Notifique, sendo o arguido, na sua pessoa – por notificação simples, com prova depósito, para a morada do termo de identidade e residência – e do seu defensor.

* ».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. Recorre o arguido do despacho judicial que lhe revogou a suspensão da execução de uma pena privativa de liberdade anteriormente aplicada, determinando o cumprimento dessa pena de prisão.

Estamos a falar de uma pena autónoma – a de suspensão da execução da pena de prisão.

O artigo 50º, nº 1, do CP dispõe:

«O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

            As finalidades da punição são, nos termos do disposto no artigo 40º, do CP, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

            Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos (outrora era de 3 anos), entendemos, com o apoio da melhor doutrina e jurisprudência, que a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma (cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 10.07.2007, Proc. nº 912/07-1, www.dgsi.pt).    

            Já assim se devia entender face à versão originária do Código Penal de 1982, como se infere das discussões no seio da Comissão Revisora do Código Penal, em que a suspensão da execução da pena, sob a designação de sentença condicional ou condenação condicional (que no projecto podia assumir a modalidade de suspensão da determinação concreta da duração da prisão ou de suspensão da execução total da pena concretamente fixada) figurava como uma verdadeira pena, ao lado da prisão, da multa e do regime de prova, no art. 47º do projecto de 1963, que continha o elenco das penas principais.

             No seio da Comissão, Eduardo Correia, autor do projecto do Código Penal, teve a oportunidade de sustentar o carácter autónomo, de verdadeiras penas, da sentença condicional e do regime de prova, contrariando o entendimento de que seriam institutos especiais de execução da pena de prisão (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, Separata do B.M.J.)

            Figueiredo Dias, a propósito do projecto de 1963 e do Código Penal de 1982, recorrendo a algumas expressões que haviam sido utilizadas na discussão travada na Comissão Revisora, assinalou:

              «(…) as “novas” penas, diferentes da de prisão e da de multa, são “verdadeiras penas” – dotadas, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de determinação da pena (artº 72º) -, que não meros “institutos especiais de execução da pena de prisão” ou, ainda menos, “medidas de pura terapêutica social”. E, deste ponto de vista, não pode deixar de dar-se razão à concepção vazada no CP, aliás continuadora da tradição doutrinal portuguesa segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz-se sempre em aplicar, na vez desta, uma outra pena» (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 90).

            O mesmo autor, definindo a suspensão da execução da pena de prisão como “a mais importante das penas de substituição” (e estas são, genericamente, as que podem substituir qualquer das penas principais concretamente determinadas), chama a atenção para o facto de, segundo o entendimento dominante na doutrina portuguesa, as penas de substituição constituírem verdadeiras penas autónomas (cfr. ob. cit., p. 91 e p. 329).

Nas suas palavras, «a suspensão da execução da prisão não representa um simples incidente, ou mesmo só uma modificação da execução da pena, mas uma pena autónoma e, portanto, na sua acepção mais estrita e exigente, uma pena de substituição» (cfr. ob. cit., p. 339).

            A revisão do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, reforçou o princípio da ultima ratio da pena de prisão, valorizou o papel da multa como pena principal e alargou o âmbito de aplicação das penas de substituição, muito embora não contemple, como classificações legais, as designações de «pena principal» e de «pena de substituição».

            A classificação das penas como principais, acessórias e de substituição continua a ser válida e operativa, ainda que a lei não utilize expressamente estas designações, a não ser no tocante às penas acessórias.

Deste modo, sob o prisma dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras; penas acessórias são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal; penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas.

            Se assim é, ou seja, se a pena de suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição em sentido próprio (em contraste com as penas de substituição detentivas ou em sentido impróprio), temos como pressuposto material da sua aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

           

3.2. In casu, e por sentença transitada em julgado em 19/4/2022, a pena de prisão aplicada ao arguido de 3 anos e seis meses foi suspensa na sua execução condicionado ao seguinte:

«(…) subordinação da suspensão da execução da pena a regime de prova, com elaboração de plano de reinserção social, devendo o controlo por parte dos serviços da DGRSP ser efectivo e contínuo, e a determinadas regras de conduta para alcançar esse objectivo, em benefício tanto do arguido como da vítima, nos termos do disposto nos artigos 50º, nº 2, 52º, nº 1, alíneas b), 2, alíneas b), c) e 3, e 53º, do Código Penal como sejam:

1ª CONDIÇÃO:

a) asujeição do arguido a consulta médica para aferir da eventual dependência alcoólica que poderá padecer e respectivo tratamento médico, que lhe seja prescrito, com internamento, se medicamente indicado, além de manutenção da medicação, consultas e acompanhamento médico que se encontra actualmente prescrito – ao qual o arguido deu o seu consentimento;

2ª CONDIÇÃO:

b) a frequência de sessões de prevenção de violência doméstica, orientadas no sentido de o arguido interiorizar o desvalor da sua conduta, com vista a evitar a prática de novos factos, em moldes a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais;

3ª CONDIÇÃO:

c) a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes;

4ª CONDIÇÃO:

d) a proibição de contactos com a vítima BB, por qualquer meio (directamente e por interposta pessoa, incluindo contactos telefónicos, por telemóvel e através da internet), e de se deslocar à residência da mesma, fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância – aos quais o arguido deu o seu consentimento;

5ª CONDIÇÃO:

e) o afastamento da vítima BB, da residência da mesma e de qualquer local onde a mesma se encontre, em distância de 250 metros, fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância – aos quais o arguido deu o seu consentimento».

3.3. Acontece que se entendeu, por despacho de 17/1/2023, que o arguido incumpriu «grosseira e repetidamente» os deveres ou regras de conduta impostos, à luz do artigo 56º, nº 1, alínea a) do CP, determinando, por isso, a revogação dessa suspensão.

De facto, estipula o artigo 56º do CP:

1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado».

A revogação da suspensão da execução da pena por incumprimento do agente das obrigações impostas só pode ocorrer se o incumprimento se verificar com culpa grosseira (entre outros, acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/01/2009, processo nº2555/08.1 e de 04/05/2009, processo nº 2625/05.9PBBRG-A.G1 e do Tribunal da Relação do Porto de 09/12/2004, processo nº 0414646) e só terá lugar como “ultima ratio”, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes providências contidas no artigo 55º do Código Penal.

Como referem Leal Henriques e Simas Santos (in Código de Processo Penal Anotado, 2ª edição, 1995, Vol I, pág 478) «O não cumprimento das obrigações impostas não deve desencadear necessariamente a revogação da condenação condicional. Na verdade, se se quer lutar contra a pena de prisão, e se a revogação inelutavelmente a envolve, daí resulta que tal revogação só deverá ter lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes providências (…)».

E continuam esses autores:

«Mas as causas de revogação não devem ser entendidas como um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão.

O réu deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena. Aliás, como se viu, o Tribunal goza de uma ampla faculdade de prescindir da revogação, mesmo que exista mau comportamento durante o período de suspensão».

Efectivamente, para a aplicação da norma da al. a), do nº 1 do art. 56º do CP, a revogação da suspensão da execução da pena como reacção ao incumprimento dos deveres ou regras de conduta «parece» só se aplicar quando o agente infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras impostos (já no domínio do art. 50º do CP/1982 inculcava que apenas a infracção, grave ou reiterada, das obrigações deveria impor a revogação, na medida em que esta só deveria acontecer como ultima ratio, tendo em vista evitar a pena de prisão – cfr. os Acs. da Relação de Coimbra de 13/3/1985 e de 29/7/1985, in CJ, X, 2, p. 72 e BMJ 349-563, respetivamente; idem, Leal-Henriques e Simas Santos, CP de 1982, 1986, 303 ss).

É farta a jurisprudência sobre o assunto.

Já para o distante Acórdão da Relação de Lisboa, de 19/2/1997 (CJ, Ano XXII, Tomo I, pág. 167) “a infração dos deveres impostos não opera automaticamente como causa de revogação da suspensão da execução da pena, como medida extrema que é, não devendo o tribunal atender ao aspeto meramente formal daquela violação, mas, prevalentemente, ao desejo firme e incontroverso de cumprimento das obrigações”.

Nos dizeres do Ac. da RL de 1/3/2006 (proc. nº 566/2006-3) “(…) a atual versão da norma do art. 56º nº 1, al. a), do CP impõe que só o incumprimento grosseiro ou repetido dos deveres ou regras de conduta impostos possam conduzir à revogação da suspensão da execução da pena”.

Também para o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa 6/6/2006 (Processo: 147/2006), “O incumprimento culposo determina a aplicação do regime do art. 55º do CP mas só o incumprimento grosseiro ou repetido das condições de suspensão ou a prática de crime pelo qual o condenado venha a ser condenado revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, conduzem à aplicação do art. 56º do CP. A escolha da mais severa sanção para a revogação da suspensão só deverá adotar-se, sobretudo se se trata de pena de prisão, como ultima ratio, quando se mostrem ineficazes ou esgotadas as restantes medidas e o comportamento do arguido se revele doloso ou gravemente culposo”.

No mesmo sentido decidiu o Ac. da R. Évora de 18/2/2014 (proc. nº 25/07.5PESTR.E2), com o seguinte sumário: “Só o incumprimento grosseiramente culposo do dever de pagar as quantias arbitradas a título de indemnização implica a revogação da suspensão da execução da pena de prisão”.

Mas em que consiste a grosseria do comportamento do agente?

Note-se que, como diz o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6/3/2013 (Processo: 876/06.8PLLSB-G.L1-3), ”I- A lei, representada no artº 56º, nº 1, al. a), do Código Penal, não define o que deve entender-se por “infringir grosseiramente ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos”, deixando ao critério do aplicador da lei a fixação dos seus contornos”.

Também o Acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Fevereiro de 1997 (in CJ, XXII, 1, 166 e ss), apontou alguns critérios orientadores, a saber:

“II - A violação grosseira de que se fala, há-se ser uma indesculpável atuação em que o comum dos cidadãos não incorre não merecendo ser tolerada, indesculpável”.

Na mesma linha, no Acórdão de 18/7/2013 (proc. nº 1/05.2JFLSB.L1-3), a Relação de Lisboa entendeu que «A violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a) do nº 1 do artigo 56º do CP, há-de constituir uma indesculpável atuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada».

Também a nossa Relação já decidiu que (Ac. RC de 4/5/2016 - proc. nº 86/07.7GBCLD) “Dúvidas não subsistem, portanto, de que o recorrente não cumpriu, totalmente, a condição económica da condição da suspensão. Não é, no entanto, um qualquer incumprimento que releva para este fim. A lei exige que seja grosseiro ou repetido o que significa que a conduta infratora deve ser especialmente qualificada, deve revelar um grau de culpa muito elevado, uma completa indiferença pelo condenado relativamente ao sentido de ressocialização que a condição imposta significava, na medida em que é parte integrante do ‘projeto’ de recuperação social subjacente ao decretamento da pena de substituição. Para as outras condutas infratoras, para aquelas que não densificam um tão elevado grau de indiferença e culpa, permitindo manter-se de pé a projetada realização das finalidades que estiveram na base do decretamento da suspensão, a lei prevê, no art. 55º do C. Penal, a aplicação de outras medidas”.

Apele-se ainda ao teor do Acórdão da Relação de Guimarães, datado de 4/5/2015 (proc. nº 713/09.1GAFAF.G1):

“A lei não revela o que se deve considerar como uma infracção grosseira ou uma infracção repetida dos deveres ou regras de conduta impostos, mas a jurisprudência tem considerado que a situação de facto prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 56º do Código Penal há-de constituir um comportamento que se revele intolerável e inadmissível para o comum dos cidadãos (Acórdão da Relação de Lisboa de 19-02-1997, in CJ, XXII, t. 1, 166), que revele uma culpa temerária, o esquecimento dos deveres gerais de observância e signifique a demissão pelo agente dos mais elementares deveres (Acórdãos da Tribunal da Relação do Porto de 10-03-2004, processo 0345918, e de 05-05-2010, processo 259/06.0GBMTS.P1 www.dgsi.pt )”.

Violação grosseira será assim aquela que toda e qualquer violação que possa evidenciar-se como qualificada, qualitativamente denotativa da dimensão do incumprimento do dever ou obrigação impostos, no sentido de se considerar que tal violação se assume como grave na própria amplitude e determinação com que, na sua essência, deixou de ser cumprida a obrigação imposta, e não, portanto, quando se traduz num mero incumprimento parcial de uma tal obrigação ou, tratando-se de uma obrigação de execução continuada, que tal incumprimento se verificou apenas em algumas vezes contadas, em comparação com outras em que a mesma foi sendo cumprida.

Assim sendo, a revogação da suspensão por incumprimento dos deveres impostos não é automática e só é possível se este resultar de uma conduta culposa do condenado. E a culpa há-de revestir intensidade relevante, seja pela natureza (violação grosseira) seja pela reiteração (atitude geral de descuido e leviandade prolongada no tempo), de molde a constituir uma actuação especialmente censurável, que o cidadão médio pressuposto pela ordem jurídica repudiaria e que, por consequência, não admite tolerância ou desculpa.

Acresce que, tais circunstâncias têm que ser aferidas e demonstradas em concreto, não bastando a constatação de que decorreu um período temporal alargado sem que a condição se mostre cumprida nem tão pouco a formulação de juízos de valor ou verosimilhança sobre o comportamento exigível ao condenado.

Quanto ao incumprimento do plano de reinserção social, atente-se no enunciado do Acórdão da Relação de Coimbra de 30/1/2019 (proc. nº 127/17.0GAMGR-A.C1):

“I – O condenado infringe grosseiramente os deveres ou as regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social quando, culposamente, os não observa.

II – Basta, para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, que da conduta provada resulte um modo de agir do condenado especialmente reprovável e portanto, uma conduta onde a falta de cuidado, a imprevidência assume uma intensidade particularmente elevada.

III – Trata-se, no fundo, de um conceito próximo da culpa grave portanto, aquela que só é susceptível de ser actuada por uma pessoa particularmente descuidada ou negligente.

IV – Em qualquer dos fundamentos da revogação, estamos perante situações limite, onde o condenado, através da intensidade do grau de culpa posto na sua conduta, inutilizou o capital de confiança na reinserção em liberdade que a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão significou”.

3.4. Com este pano de fundo conceptual, avancemos na apreciação do recurso, começando pela 1ª questão suscitada.

Houve revogação desta suspensão com preterimento de alguma regra de contraditório?

A nossa resposta só pode ser negativa.

Alega a defesa que nunca lhe foram notificados os vários relatórios de incumprimento elaborados pela DGRSP.

Nem tinham de o ser pois estamos em fase pós-sentencial, não sendo aqui aplicáveis as normas referidas no ponto i. da motivação de recurso, adiantando apenas o artigo 495º do CPP, a norma aqui aplicável, que:

«1. Quaisquer autoridades e serviços aos quais seja pedido apoio ao condenado no cumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos comunicam ao tribunal a falta de cumprimento, por aquele, desses deveres, regras de conduta ou obrigações, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 51º, no nº 3 do artigo 52º e nos artigos 55º e 56º do Código Penal.

2. O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente».

Foi o arguido aqui ouvido duas vezes sobre estes incidentes e nas suas inquirições – sobretudo na última que ouvimos – foi sempre posto ao corrente das acusações que lhe faziam em sede de incumprimentos.

E nessa inquirição, foram-lhe lidas partes suficientes dos relatórios da DGRSP capazes de o fazer compreender as acusações que lhe eram feitas, nada lhe tendo sido escondido (nem a si nem ao seu ilustre defensor, também presente, que, note-se, em sede dessa inquirição, nada requereu nesse sentido).

Alega ainda a defesa que foi violado o artigo 495º, nº 2 do CPP por não ter estado presente na sua inquirição o técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão.

Ora, como se constata vendo a acta de fls 35 e 36, esteve nessa inquirição presente o técnico da DGRSP CC, como legalmente era exigido, sendo tal técnico até o subscritor do relatório de 25/10/2022 (a nada obrigando que seja o técnico A ou B, bastando que seja alguém da DGRSP que esteja a trabalhar no processo do inquirido).

É verdade que o relatório que mais influenciou o despacho recorrido data de 2/12/2022, elaborado por DD, da Equipa de Vigilância Electrónica 05 Mirandela, não tendo tal técnica estado presente na inquirição de 15/12.

Mas não tinha de estar, bastando que estivesse o Técnico da DGRSP, CC que, de uma forma mais ampla, monitoriza o cumprimento das condições desta pena suspensa aplicada ao AA.

Inexiste assim qualquer nulidade, vício da matéria de facto (a defesa fala em insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito) ou violação das regras do artigo 32º da CRP, não tendo sido preterido qualquer contraditório, aqui até exercido bastas vezes, bastando contar as vezes em que este homem foi chamado a tribunal para dizer de sua justiça sobre estes «incidentes».

3.5. Entremos no fundo da questão.

O prazo da suspensão da execução desta pena de prisão está a correr desde o dia 19 de Abril de 2022 (até ao dia 19/10/2025).

Passou desde aí apenas UM ano.

São noticiados nos autos, ao longo deste ano, incidentes relacionados com a violação da zona de exclusão fixa e dinâmica e com o não transporte da Unidade de Posicionamento Móvel, com falha de carregamento da energia da mesma.

Não há quaisquer indícios de que as outras condições estejam a ser incumpridas, nomeadamente, a mais gravosa, que passa pela proibição de contactos com a vítima, ainda sua mulher.

Estamos cientes que foi o arguido ouvido em tribunal por duas vezes durante este ano de suspensão por causa destes incidentes.

Na vez primeira, foi advertido das possíveis consequências da sua postura.

Não se duvida que este seu comportamento é culposo e até doloso, aqui e ali – a forma como respondeu à Mª Juíza a 15/12/2022 é sintomática – ouvimo-lo em gravação e há frases como: «O aparelho é vosso, não é meu»; «Não posso falar, não estou dentro do assunto»; «o caminho que tenho não vou deixar de o fazer» e «possivelmente venho cá mais vezes».

Portanto, é inegável que incumpriu de forma grosseira e reiterada as regras de condutas impostas na parte referente ao «afastamento da vítima BB, da residência da mesma e de qualquer local onde a mesma se encontre, em distância de 250 metros, fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância».

Pode mudar de mercearia, pode pedir a um vizinho que lhe traga víveres, pode adoptar comportamentos alternativos que o não façam constantemente violar a zona de exclusão fixa e dinâmica.

Pergunta-se:

Isso bastará para a revogação desta pena suspensa?

3.6. Admitimos que existiu um incumprimento voluntário e reiterado por parte do ora recorrente de uma das obrigações que lhe foi fixada, tendo agido com indiferença em relação a tal questão.

Note-se que ele nunca se aproximou da vítima, indicando o relatório de fls 14 que «foi a vítima alertada, não havendo indicação de risco acrescido para a mesma».

Já a fls 14-v, se deixa escrito que «a ofendida continua a verbalizar receio da atitude do condenado, aludindo ao facto de que quando percepciona a proximidade deste, tenta proteger-se e afastar-se dos locais onde depreende que o mesmo se encontra».

Ou seja, haverá violação da zona de exclusão fixa mas não ao ponto de ter havido contactos directos entre as duas pessoas.

Cremos, por isso, que a revogação foi excessiva e não deveria ter sido AINDA decretada, numa altura em que nem sequer um ano tinha passado sobre o trânsito em julgado da condenação.

Como bem enuncia o acórdão da Relação de Lisboa, datado de 25/5/2017 (proc. nº 317/14.7PBPDL-A-L1):

 “I- Da conjugação dos artigos 55º e 56º do Código Penal resulta claro, que o simples incumprimento, ainda que com culpa, dos deveres impostos como condição da suspensão, pode não justificar a revogação, sendo que a suspensão da pena radica e tem como finalidade principal, o afastamento do arguido, no futuro, da prática de novos crimes;

II-A revogação da suspensão só se impõe, nos termos da al. a) do nº 1 do art. 56º do Código Penal quando o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos, ou o plano individual de reinserção e cumulativamente revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, assim a infracção grosseira será só a que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade, aqui se incluindo a colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de reinserção;

III- Verificando-se uma situação de incumprimento das condições da suspensão da pena, haverá que distinguir duas situações, em função das respectivas consequências: uma primeira, quando no decurso do período de suspensão, o condenado, com culpa, deixa de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta, ou não corresponde ao plano de readaptação (que com a revisão de 2007 passou a ser designado de “plano de reinserção”), pode o tribunal optar pela aplicação de uma das medidas previstas no artigo 55º do C. P., a saber: fazer uma solene advertência; exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; prorrogar o período de suspensão; e outra segunda, quando no decurso da suspensão, o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de readaptação, ou comete crime pelo qual venha a ser condenado e assim revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta, ser alcançadas, a suspensão é revogada (artigo 56º, nº 1, do C. Penal)”.

Na realidade, a finalidade politico-criminal da suspensão da execução de uma pena de prisão é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes “e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. (...) Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência” - cfr. Prof. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas Do Crime, pág.343, §519.

Por tudo isto, damos o nosso pleno aval à ideia de que “só a inconciabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena deve conduzir à revogação” – Ac. da RL de 19 de Fevereiro de 1997 (CJ, Ano XXII, Tomo I, pág. 167); idem, o Ac. da RC de 17/10/2012, proc. nº 91/07.3IDCBR.C1; da RC de 8/9/2010, proc. nº 87/02.1TAACN.C2; da RE de 23/2/2016, proc. nº 301/09.2IDFAR-A.E1, este citando o Professor Jorge de Figueiredo Dias (em «Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime», Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 355/356): «O critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado».

No fundo, a condição prevista na parte final da al.ª b) do nº 1 (“e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas») refere-se a ambas as causas de revogação da suspensão previstas nas duas alíneas (exactamente neste sentido, Figueiredo Dias, in Actas CP/Figueiredo Dias, 1993:66 e 469) - Ac. da RE de 23/2/2016, proc. nº 301/09.2IDFARA.E1 e Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, no «Código Penal, Parte Geral e Especial», Almedina, 2014, pp. 335/336).

Diremos assim:

Importa averiguar se o agente, com a sua conduta, destruiu a esperança que se depositou na sua recuperação – cfr. Acórdão da RG de 4/5/2015, proc. nº 713/09.1GAFAF.G1 e Acórdão da RP de 5/5/2010, proc. nº 259/06.0GBMTS.P1 que ditou o seguinte: “II- O juízo sobre a revogação da suspensão da pena há-de decorrer de uma manifesta violação dos deveres impostos ao condenado que mostre inequivocamente uma frustração da finalidade prosseguida pela suspensão da execução da pena» (no mesmo sentido, o Acórdão da RP de 27/10/2010, proc. nº 2165/04.3JAPRT”, que determinou que é de revogar a suspensão quando se concluir que «as finalidades punitivas visadas com a imposição de pena suspensa se encontram irremediavelmente comprometidas»).

3.7. Por isto, entendemos que a decisão de revogação foi prematura.

Havendo cinco condições nesta suspensão, parece-nos ainda cedo para decidir pela revogação da mesma só pela reiterada e grosseira violação da condição nº 5 (na parte atinente ao afastamento do espaço circundante da localização da vítima), sendo ainda certo que desta violação não resulta inelutavelmente que deixamos de ter confiança na recuperação deste homem, que se revela teimoso, é certo, mas não necessariamente um potencial assassino (estamos ainda longe de poder concluir que as finalidades punitivas visadas com a imposição desta pena suspensa se encontra irremediavelmente comprometida).

Mas mais.

Veja-se até o que se deixa escrito na decisão recorrida:

«Como resulta manifesto de tudo quanto acima se expôs, o arguido não cumpre a regra de conduta de afastamento da vítima que lhe foi imposta, além de, conforme informado pelo técnico da DGRSP na diligência efectuada, lhe ir ser dada alta do tratamento médico por parte do CRI por o arguido não ter revelado empenho nem adesão ao tratamento médico, mantendo uma postura displicente, desajustada, ausente de autocrítica e interiorização da sua conduta, a que acresce a posição assumida de reiteração dos seus comportamentos incumpridores de tais regras de conduta e condições».

Perante esta afirmação por parte da DGRSP, na inquirição de 15/12/2022, e ainda antes de proferir o despacho de revogação da suspensão, deveria ter o tribunal indagado da justeza oficial desta realidade.

Estará também o arguido a incumprir a condição nº 1?

Ouvimos dizer na inquirição que o arguido vai às consultas mas que não se revela especialmente empenhado.

É assim?

Há relatório circunstanciado da DGRSP sobre isto?

Sempre teve alta não por cura mas por falta de empenho do arguido?

Não tem este tribunal dados seguros para também concluir pelo incumprimento culposo das restantes condições, sobretudo, um ano após o início do prazo da suspensão, assente que é excessivo, nesta fase, concluir já pela não recuperação deste homem por questões meramente atinentes a factores técnicos relacionados com a sua teimosa deambulação pela terra onde vivem ambos os actores desta história.

Estamos a falar de uma reclusão.

De um homem doente de 67 anos de idade.

Embora o tenhamos ouvir dizer durante a sua inquirição que «estou preparado para ir para a prisão», a verdade é que este tribunal de recurso não está ainda preparado para concluir que a prisão se revela absolutamente indispensável para este homem que, reconhecemo-lo, parece querer cumprir a pena à sua «moda».

Além disso, nem sequer o despacho recorrido pondera a possibilidade de aplicar o artigo 55º do CP, nunca explicitando de forma clara a razão pela qual descarta esse artigo em benefício da medida mais gravosa do 56º (alude apenas a que «não se vislumbram quaisquer outros deveres ou regras de conduta que possam ser impostos ao arguido que permitam alterar o seu comportamento»).

Já acima se disse:

A revogação da suspensão da execução da pena não é, de facto, uma consequência automática da conduta do condenado, encontrando-se dependente da verificação dos pressupostos acima enunciados, e da conclusão de que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

Por essa razão se prevê que mesmo no caso de incumprimento culposo, grosseira e/ou reiterado das condições fixadas, o tribunal ainda pode optar por fazer uma solene advertência, exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão, impor novos deveres ou regras de conduta, ou prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado (art. 55º do CP).

Sabemos que já foi feita uma 1ª inquirição antes da de 15/12/2022 – aí terá havido uma 1ª advertência.

Podemos até compreender a indignação da Mº Juíza recorrida perante o discurso desinteressado do arguido de que não vai cumprir uma das condições, façam o que fizerem.

Tem é que se extrair no caso concreto não ser já possível efectuar um juízo de prognose favorável em relação ao condenado, e que as finalidades que estiveram na base da suspensão da execução da pena se encontram definitivamente comprometidas.

Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 3ª ed., pág. 317), “o critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado”.

Tudo isto porque a pena de prisão só deve ter lugar como ultima ratio, após ponderadas todas as restantes possibilidades; e caso se conclua que as finalidades que estiveram na base da suspensão ainda podem ser alcançadas, deve o tribunal aplicar as medidas previstas no art. 55º do CP.

Em suma, para a suspensão ser revogada é necessário que a infracção grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos se deva à vontade do condenado, e que se conclua que nenhuma outra medida para além da revogação é viável para alcançar as finalidades da punição (arts. 50º, nº 1, e 40º, nº 1, do CP).

A hoje Juíza Conselheira Ana Brito decidiu na sua Relação de Évora, corria o dia de 28/3/2018 (Pº 2207/13.1GBABF-A.E1) que:

«I. O incumprimento culposo dos deveres e regras de conduta impostos na sentença como condição de suspensão da prisão, consente as consequências previstas nas alíneas do art. 55º do Código Penal, medidas que o despacho judicial que conhece do incumprimento tem sempre de equacionar expressamente.

II. Estando em causa, não o cometimento de um novo crime no decurso do período da suspensão da prisão, mas a violação de dever, de regra de conduta ou a não correspondência a plano de reinserção, comportamentos que integram a previsão do art. 55º do Código Penal, deve o tribunal pronunciar-se expressamente sobre a eficácia das medidas previstas nesta norma para se alcançarem ainda as finalidades da punição.

III. E mesmo em caso de infracção grosseira e repetida aos deveres e às regras de conduta (podendo já configurar-se a previsão do art. 56º, nº 1, al. a), do CP), há que ponderar sempre, e previamente, a viabilidade da manutenção da ressocialização em liberdade.

IV. Os princípios da proporcionalidade e da necessidade de pena norteiam a ponderação até à extinção da sanção, e a prorrogação do período de suspensão da prisão (art. 55º al. d) do CP) será a resposta mais adequada se, no quadro de um incumprimento culposo e grosseiro, as circunstâncias do caso ainda permitirem conservar a confiança na eficácia da pena não detentiva».

Totalmente de acordo com estas conclusões.

Nas medidas a tomar em sede de monitorização do que se passou durante o período de suspensão da execução de uma pena de prisão, o tribunal deverá optar pelas menos gravosas e só decidir por uma quando conclua pela inadequação da que, imediatamente, a precede, deixando para o fim de linha a revogação prevista do artigo 56º.

Aqui chegados, não podemos, assim, deixar de considerar prematura esta decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 3 anos e seis meses.

De facto, entendemos que não foi produzida a prova relevante para se chegar à conclusão de que as finalidades da suspensão – da pena inicial – não foram alcançadas pelo arguido.

Deixou ele de cumprir a 1ª, 2ª, 3ª e 4ª condição?

Que se passa com o acompanhamento médico do arguido?

Neste momento em que se reavalia este processo na Relação e a trajectória deste homem, pode ter havido mudanças benignas na vida do arguido.

E, por isso, entendemos revogar a decisão recorrida por não haver ainda prova segura da infracção grosseira e repetida do seu plano de reinserção social, nas suas 3 vertentes, a justificar, JÁ, a entrada deste homem de 67 anos numa prisão – onde nunca esteve - para cumprir uma pena de prisão, devendo o tribunal recorrido agora, baixados os autos, produzir prova suplementar a fim de, posteriormente, decidir:

- ou pela aplicação do artigo 55º do CP (admoestando, alterando alguma cláusula ou prorrogando o prazo da suspensão);

- ou, em última instância, pela revogação da execução da pena de prisão (artigo 56º do CP), explicitando as razões pelas quais não se bastou pela aplicação do artigo 55º.

Desta forma, previamente, deve o tribunal recorrido diligenciar no sentido de recolher factos que lhe permitam concluir, conforme exige a al. b), do nº 1, do art. 56º do CP, que com a condenação sofrida as finalidades que estavam na base da suspensão da execução da pena aplicada ao arguido já não podem ser alcançadas (cfr. nº 2 do artigo 495º do CPP).

Ou seja: terá o tribunal recorrido que diligenciar pela obtenção de elementos sobre a situação actualizada do arguido para, obtidos estes, decidir pela eventual aplicação do artigo 55º do CP ou pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos autos, caso se demonstre que as finalidades que a determinaram não poderão mais ser alcançadas por esta via.

Desta forma, o recurso procederá na medida em que se revogará o despacho recorrido.

O tempo pode ser mesmo um grande escultor, como afirma Yourcenar.

Mas o tempo é dinâmico e a vida dos homens também o é, não correndo sempre a história dos homens e das mulheres em conjunturas lineares.

E deve agir-se com toda a prudência e actualidade quando estamos a falar da privação da liberdade de um homem com quase 70 anos que não vai conseguir em reclusão curar-se desse etílico mal maior, temos a certeza, podendo e devendo fazê-lo de forma mais satisfatória no exterior dos muros da fria prisão.

Tal se faz pois não há, de facto, notícia de novas violências contra a vítima.

3.8. Assim se fará a revogação do despacho recorrido, devendo a 1ª instância agora:

a) ouvir a vítima a sós, aferindo o que se passa realmente no seu seio e na sua vida, sobre se tem havido agressões ou ameaças por parte do arguido;

b) averiguar com celeridade se o arguido ainda mantém o acompanhamento médico referido na 1ª condição e a frequência das sessões referidas na 2ª condição;

c) averiguar se, após a diligência de 15/12/2022, voltou a haver incidentes técnicos do género dos veiculados no relatório de 2/12/2022;

d) ponderar, oportunamente, a aplicação de alguma das medidas do artigo 55º do CP (mudando, aqui e ali, alguma cláusula, gerindo com alguma razoabilidade a questão do «café-mercearia», podendo aí rever a zona de exclusão fixa e dinâmica);

e) ou em definitivo aplicar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, à luz do artigo 56º, nº 1, alínea a) do CP, caso não seja situação plausível de ter a benevolência do tratamento do referido artigo 55º.

Ainda a tempo de evitar os inconvenientes de uma real privação de liberdade…

Não deixando de salvaguardar os supremos interesses da vítima que ainda o é, por estatuto legal.

III – DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em conceder provimento ao recurso intentado pelo arguido e, em consequência:

· revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que espelhe o que se deixa exarado nos pontos 3.7 e 3.8 deste acórdão.     

SEM custas.


Coimbra, 10 de maio de 2023

(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo também revisto pelo segundo e terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP)



Relator: Paulo Guerra

Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro

Adjunto: Cristina Pêgo Branco






[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.