Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2529/05.5TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: ÁGUAS
PROPRIEDADE
SERVIDÃO
Data do Acordão: 04/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1251, 1252, 1257, 1261, 1262, 1287, 1296, 1561, 1565, 1571 CC
Sumário: I - O direito à água que nasce em prédio alheio pode ser – conforme o título da sua constituição – um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, ou seja, um direito de propriedade, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes às necessidades deste, isto é, um direito de servidão.

II - Para aquisição do direito de servidão por usucapião, torna-se ainda necessário, além dos demais requisitos exigidos por lei, o da construção de obras visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.

III – Constituída uma servidão legal de aqueduto e passando este a ser subterrâneo, em vez de por rego a aberto à superfície, o proprietário do prédio dominante tem a faculdade de aceder ao prédio serviente para inspeccionar o aqueduto através de óculos de observação ou caixas de visita, ou para nele fazer limpeza em caso de entupimento, por tais actos se inserirem nos “adminicula servitutis”.

IV- A seca da nascente da água que serve de objecto à servidão não implica a extinção desta, enquanto não decorrer o prazo legal ( 20 anos) do não uso ou a ocorrência de outro facto extintivo.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
A (…) e esposa, B (…), agricultores, residentes em ..., ..., intentaram contra C (..) e esposa, D (…), residentes em França, a presente acção declarativa de condenação com processo comum sob a forma ordinária, pedindo a condenação dos réus no reconhecimento da propriedade dos autores sobre a água da mina existente no subsolo do prédio dos réus, ou, subsidiariamente, no reconhecimento do direito de servidão de águas, presa e aqueduto da mesma mina, bem como a não impedirem o acesso dos autores à referida mina, a arrasarem o poço que construíram e a indemnizar os autores pelos prejuízos que venham a liquidar-se posteriormente.
Alegam, para o efeito, que são donos de prédio confinante com o dos réus – ambos, anteriormente, integrantes de uma grande quinta – e que o seu prédio é, desde tempos imemoriais, abastecido por mina de água cuja boca está ao fundo do prédio dos réus, mina esta que os réus fizeram secar, abrindo um poço e desviando as águas. Acrescentam que, devido às actividades a que se dedicam, carecem de cerca de três mil litros de água por dia, pelo que os réus se teriam, assim, apropriado de água que lhes pertence seja por direito de propriedade seja por servidão por destinação de pai de família.
Contestando, para além de impugnarem parte significativa dos factos alegados pelos autores, alegam os réus que se serviam, de facto e de direito, da água da mina, sendo que, por condescendência, igualmente dela beneficiavam todos os vizinhos e quem quer que fosse, e culminam com pedido reconvencional, no sentido da declaração da propriedade dos réus sobre o terreno e casa de habitação que ocupam, e subsequente condenação dos autores nesse reconhecimento e na colocação do terreno no estado em que se encontrava.
Foi dispensada a audiência preliminar e proferido despacho saneador (fls. 110), no qual foi admitido o pedido reconvencional, definidos os factos assentes e organizada a base instrutória, sem reclamações.
Realizou-se audiência de julgamento, após o que foi proferida decisão da matéria de facto, sem reclamações.
Foram apresentadas alegações de direito por ambas as partes, tendo os autores no seu articulado invocado a existência de nulidade decorrente do facto de ter sido omitida a prestação de esclarecimentos por parte dos peritos (fls. 689 e 690).
Foi proferida sentença, constando do respectivo dispositivo:
«Nos termos expostos, julgo a presente acção não provada e improcedente, pelo que absolvo os réus do pedido.
Igualmente julgo não provada e improcedente a reconvenção, pelo que dela absolvo os autores.
Custas por autores e réus, na proporção de metade para cada um.».
Inconformados, apelaram os Autores, apresentando as seguintes conclusões:

1º - Os factos provados, quer na matéria assente, quer nas respostas à B.I., são suficientes para se demonstrar o direito dos AA à água da mina, e a sua violação pelos RR, ao privá-los do uso dessa água.

2º - Deverão, sem mais diligencias, proceder os pedidos formulados, com a alteração oportunamente requerida, com excepção do valor dos danos que, à falta de dados sobre o seu montante, deverá relegar-se para execução de sentença.

3º - Os AA, em exclusivo, e de forma correspondente aos verdadeiros e únicos titulares do direito, têm vindo a possuir e utilizar, com carácter de permanência, até Agosto de 2005, toda a água da mina que, vinda já do prédio superior aos dos RR, passa no subsolo do prédio destes, até atingir a boca ou abertura, situada ao fundo desse prédio, seguindo daí para o prédio dos RR a nível inferior.

4º - Esta utilização e posse vem sendo feita e exercida pelos AA, directamente, há cerca de 40 anos, e pelos seus antepassados desde tempos imemoriais, sem interrupção, continuadamente até Agosto de 2005, com conhecimento de toda a gente, de forma exclusiva, com intenção de exercer direito próprio (animus, que a lei presume) e demais sinais da usucapião, forma privilegiada de aquisição de direitos reais.

5º - Tal água estava represada à boca da mina, onde os AA têm feito o seu represamento e vigilância, ao fundo do prédio dos RR, junto ao caminho público que separa os prédios (de AA e RR) - sendo aqueles de baixo e este de cima – e era conduzida da mina até ao prédio dos RR, através de canos introduzidos no interior da mina, que a levavam até junto da casa dos AA e regos a descoberto até uma poça existente em frente a essa casa.

6º - O 1º cano de que há conhecimento foi colocado pelos AA há cerca de 40 anos, tendo sido substituído pelos AA por outro (quando a mina abateu há cerca de 5 anos), tendo este último sido cortado pelos RR, em Agosto de 2005, o que determinou os AA a colocarem, em vez do tubo, 8 manilhas introduzidas no interior da mina.

7º - Além da utilização da água - pelos AA – para uso doméstico, lavagem de roupa, instalações e bebedouros de animais (vacarias, pocilgas, galinheiros, etc.) e também para os logradouros, jardins e 13 has de terra, era também usada, de forma esporádica e ocasional, por quem passasse no caminho, para beber no local, ou até, de quando em vez, através da recolha em recipientes para uso doméstico.

8º - Esta utilização por vizinhos ou passantes, significa tão só um acto de tolerância, condescendência e boa vizinhança por parte dos Autores, jamais se podendo considerar um direito que, aliás, ninguém reivindicou.

9º - O direito dos AA resulta de uma posse centenária, pelos AA (desde há 40 anos) e pelos antecessores desde tempos imemoriais, exercida de forma pacífica, com conhecimento público e respeito de toda a gente, sempre em nome próprio e com consciência e “animus” de exerceram direito próprio.

10º - Posse revelada não só pelo uso, mas também por obras, designadamente a preparação e modificação da represa, a colocação de uma porta pelo A – que ...va a chave - e instalação e utilização de tubagem e rego a descoberto, sendo que a localização da mina, nos limites dos dois prédios, ao fundo do dos RR e ao cimo do dos AA, evidencia, só por si, a verdadeira aparência do direito dos AA.

11º - O animus é presumido por lei a favor de quem detém o poder de facto – art. 1251 n.º 2.

12º - Da posse presume-se também o direito de propriedade – art. 1258 do C.C.

13º - Provado está ainda que os 3 prédios dos AA – formando agora a Quinta do Prazo – resultaram da partilha de uma Quinta maior, pelo que, também, além da usucapião se poderá concluir que os prédios e a água (esta sem necessidade de sinais reveladores de antigo proprietário) vieram à titularidade dos AA por destinação do antigo proprietário ou pai de família.

14º - Com a abertura de um poço com 5 metros de fundo, nas imediações da mina, a água deixou de correr nesta, ficando retida no poço, pelo que existe um nexo de causalidade evidente, e não uma mera coincidência, entre a privação da água pelos AA e o acto dos RR, sendo certo que se fez prova (pela confissão do R ao 1º perito) que aquele colocara godos do rio à volta do poço, como forma de conduzir a água da mina para o poço.

15º - Acto que é ilícito e constitui violação dos direitos de terceiros – arts. 1389, 1390 e 1394 n.º 1do C.C.

16º - A matéria provada é, só por si, suficiente para a procedência do pedido, no que diz respeito à declaração da propriedade da água da mina e à ilicitude dos actos dos RR.

17º - Se assim se não entender, por mera hipótese absurda, e sem conceder, deverá anular-se o julgamento, ordenando-se as diligências essenciais requeridas, como seja a inspecção ao local, com trabalhos de pesquisa à volta do poço, até 5 metros de profundidade, e daí até se encontrar a mina, e sua obstrução, e ainda os esclarecimentos dos Senhores Peritos, sem prejuízo de o Tribunal oficiosamente ordenar nova peritagem.

18º - A omissão dessas diligências, que foram requeridas e são essenciais à descoberta da verdade – finalidade última do processo – constitui uma nulidade, só suprível pelo reconhecimento de que a prova da captação artificial da água está feita, de forma convincente.

19º - A invocação, em sede de fundamentação da decisão judicial sobre a matéria de facto, do protesto exarado pelo mandatário pela intervenção e actuação do Exmo. Juiz, e bem assim os comentários e a censura feita ao mesmo advogado de querer boicotar o processo fazendo-o retardar quando os depoimentos lhe não convinham, é inaceitável e não pode servir de fundamente das respostas, como foi.
Também os Réus discordaram da sentença, interpondo recurso de apelação, onde formulam as seguintes conclusões:

I – Os RR/reconvintes e ora recorrentes são os legítimos proprietários dos prédios rústico e urbano identificados nas alíneas D e E dos Factos Assentes, ou seja dos prédios identificados nos artigos 54º e 56º da reconvenção e que possuem como se de um único prédio se trate, em virtude de os terem adquiridos por usucapião.

II – Nesses prédios e mais concretamente no prédio referido em D dos Factos Assentes, em Agosto ou Setembro de 2005 os AA procedem ao levantamento da mina lá existente, e ali colocaram oito manilhas de forma a fazerem um encanamento para captarem água, derivando-a para o rego exterior e daqui para o seu terreno, escavaram toda a área da mina com retroescavadora, removeram terras, (alíneas W a Z dos Factos Assentes).

III – Estes factos foram praticados pelos AA sem conhecimento e sem autorização dos réus. (alínea AA dos F. A.)

IV – Dos factos provados resulta que os AA não são titulares de qualquer direito que lhes permitisse ou permita a conduta referida no antecedente ponto II, tendo a acção sido julgada improcedente e não provada relativamente ao direito por si invocado, ou seja o Tribunal não lhes reconheceu qualquer direito de propriedade ou servidão sobre a água da mina.

V – Desta forma, a actuação dos AA consubstanciada na prática dos factos discriminados nas alíneas W a Z dos Factos Assentes, é ilegal e ilegítima e viola o direito de propriedade dos RR sobre os seus prédios ora em questão.

VI – O facto dos AA não negarem o direito de propriedade que os RR têm sobre os seus prédios não torna a sua actuação legal e legítima, já que a violação do direito de propriedade dos RR se consubstancia com a prática, pelos AA, dos factos provados em W a Z dos Factos Assentes e sem autorização dos RR, mesmo que os AA não contestem aquele direito de propriedade em si mesmo.

VII – Consequentemente, a reconvenção deveria ter sido julgada provada e procedente e os AA condenados nos pedidos lá formulados.

VIII – Não tendo assim decidido, o Senhor Juiz “a quo” violou e/ou fez errada interpretação no disposto dos artº. 342º, 1305º e 1311º do C. Civil já que deveria ter interpretado e aplicado tais normativos legais no sentido da total procedência da reconvenção.
Ambos os recorrentes apresentaram contra-alegações, preconizando a improcedência do recurso da parte contrária.

II. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões:
i) Apreciação do recurso da matéria de facto;
ii) Apreciação da pretensão de anulação do julgamento;
iii) Caracterização do direito dos autores;
iv) Efeitos da extinção da água na mina;
v) Apreciação da existência de “adminicula servitutis”, apesar da extinção da água da mina.

1. Apreciação do recurso da matéria de facto.
(…)
2. Fundamentos de facto
Face ao que ficou decidido supra, são os seguintes os fatos provados nesta acção:
1) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº X... o prédio urbano situado no sítio do Prazo, freguesia de ..., com a área de 70m2, composto de r/ch e 1º andar, que confronta, a Norte, Sul, Nascente e Poente, com (…), inscrito na matriz sob o artº 000....
2) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº Y... o prédio rústico situado na Quinta do..., freguesia de ..., com a área de 123.652m2, composto por terra de centeio, batata, oliveiras, fruteiras, lameiro, mata de carvalhos, pastagem e vinha, que confronta, a Norte, com (…), a Sul e Poente, com a Quinta da ..., e a Nascente, com o caminho, inscrito na matriz sob o artº 001....
3) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., , sob o nº W... o prédio rústico situado na Quinta da ..., freguesia de ..., com a área de 1.280m2, composto por terra de vinha, que confronta, a Norte, (…), a Sul, com (…), a Nascente, com (…), e a Poente, (…), inscrito na matriz sob o artº 0002....
4) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº K... o prédio rústico situado na Quinta das..., freguesia de ..., com a área de 6.460m2, composto por terra de cultura de batata e centeio, fruteiras, videiras e pomar, e casa de habitação, que confronta, a Norte, (…) a Sul e Nascente, com caminho público, e a Poente, com (…), inscrito na matriz sob o artº 004....
5) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº Z... o prédio urbano situado na Quinta das..., freguesia de ..., com a área de 100m2, composto de rés-do-chão e 1º andar, que confronta, a Norte, com (…), a Sul, com caminho, a Nascente, com caminho público, e a Poente, com (…), inscrito na matriz sob o artº 005....
6) Os autores, por escritura de justificação notarial lavrada no Cartório Notarial da ... a 22 de Maio de 1990, declararam que eram donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, dos prédios anteriormente mencionados e inscritos sob os artºs 000..., 001... e 0002..., os quais eram por eles possuídos há mais de vinte anos, sem interrupções, exercendo sobre eles posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, com exclusão dos demais, à vista de todos e sem discussão ou oposição de ninguém, fruindo as utilidades possíveis, tendo-os adquirido por usucapião.
7) Os réus adquiriram os prédios inscritos sob os artºs 004... e 005..., o rústico por escritura pública e o urbano por contrato verbal, ambos a 23 de Setembro de 1977, de (…) e esposa, (…).
8) A casa de habitação que integra o prédio inscrito sob o artº 004... encontra-se presentemente desabitada e degradada.
9) Os prédios inscritos sob os artºs 004... e 005... são confinantes e contíguos, sendo utilizados pelos réus, há mais de vinte anos, como se de um único prédio se tratasse.
10) Os réus vêm utilizando tais prédios ocupando-os, dando-os de arrendamento, limpando-os, tirando deles todas as utilidades, o que sempre fizeram à vista de toda a gente, sem interrupções, sem oposição de quem quer que seja, convictos de serem seus proprietários e de não estarem a lesar direitos de outrem.
11) Os autores residem no prédio inscrito sob o artº 000....
12) Na quinta utilizada pelos autores criam-se e reproduzem-se muitas cabeças de gado.
13) No subsolo dos prédios dos réus existe uma mina, que tem cerca de um metro e oitenta de altura, aberta em saibro ou terra compacta, cuja extensão ultrapassará os limites dos prédios dos réus para o prédio superior. Trata-se de uma mina cuja boca ou parte final se encontra a cerca de seis metros de um caminho público, caminho que segue em direcção à estrada nacional nº 18, e que separa, no local, os prédios dos autores e os dos réus.
14) Na parte superior da quinta dos autores, junto ao caminho, existe uma charca, na qual existe também uma nascente privativa.
15) Há cerca de cinco anos chegou à quinta a água da rede pública. Os autores, apesar de terem água boa e bastante, aproveitaram também esse benefício, requisitando água da rede.
16) Há cerca de quatro ou cinco anos, abateu a mina, aproximadamente nos últimos cinco metros.
17) No mês de Agosto de 2005 os réus cortaram o tubo que existia na mina. E abriram um poço, que forraram com dez manilhas de cinquenta centímetros de altura cada, para armazenamento de água.
18) Os autores possuem para a área agrícola a água da charca situada ao cimo do seu prédio, junto ao caminho.
19) Os autores, entre finais de Agosto e meados de Setembro de 2005, procederam ao levantamento da mina e recolocaram as manilhas, em número de oito, para restabelecimento da captação e curso de água. Para o efeito, com o auxílio de uma máquina retroescavadora, os autores escavaram toda a área da mina que havia ruído e parte da entrada da mina não ruída, tendo removido as respectivas terras. Colocaram e encadearam na entrada da mina as manilhas de cimento, de forma a fazerem um encanamento condutor de água através das manilhas, as quais cobriram com a terra removida. Desta forma, os autores fizeram derivar a água da mina conduzida pelo interior das manilhas para o rego exterior e daqui para o seu terreno.
20) Tais obras foram feitas sem o conhecimento e sem autorização dos réus, que à data se encontravam em França.
21) Os autores utilizam os prédios inscritos sob os artºs 000..., 001... e 0002... indistintamente e sem divisórias, formando uma quinta única. Tais prédios são resultantes da partilha de uma quinta muito maior, pertencente a uma única pessoa, que, depois, virias a ser objecto de partilha, dela tendo resultado vários prédios distintos, entre eles os dos autores e os dos réus.
22) A quinta que os autores utilizam constituída, indistintamente, pelos seus três prédios, tem uma área de cerca de treze hectares, constituídos por terra, parte da qual de cultura, e também vários edifícios, incluindo casa de habitação e edifícios anexos, destinados a arrumação, instalações próprias para criação de animais, entre as quais vacaria e sala de ordenha, zona de jardinagem e logradouros.
23) Os autores têm vindo a cultivar a parte cultivável dessa quinta retirando batatas, centeio, milho, pastagens, árvores de fruto e vinha, habitando a casa, melhorando-a, modificando-a, utilizando os logradouros e anexos, ...ndo e criando o gado, com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, desde há mais de vinte anos, sem interrupções.
24) Na casa de habitação da quinta os autores juntam, por vezes, familiares.
25) Para todo o complexo agrícola, os autores necessitam de água, medida em quantidades próprias para a área da quinta em causa, bem como para a utilização que se provou que os autores lhe dão, mas quantidades essas que, em concreto, não foi possível apurar.
26) Desde tempos imemoriais, que ultrapassam a memória dos vivos, que a mina subterrânea referida em “N” tem permanentemente fornecido água para o terreno onde se encontra, e que constituiu primeiramente, uma única quinta, depois vários prédios partilhados, utilizando os Autores a referida água nos seus prédios identificados em 1), 2) e 3), desde há pelo menos 35 anos.
27) Toda a gente respeitava o facto de os autores utilizarem a água da mina, nos termos em que se alude no ponto anterior.
28) Para segurar as águas na parte final da mina, assim permitindo que as pessoas bebessem água, havia um parapeito em cimento, com cerca de sessenta centímetros de altura, e chegou a haver também uma porta em ferro, com chave, de dimensões que, em concreto, não foi possível apurar – construção essa que permitia, a quem passasse, recolher água para beber. Na parte superior do parapeito havia, inclusivamente, um orifício em V por onde se escoava a água, quando atingisse o cimo do reservatório.
29) A água que saía da mina fluía por desníveis e irregularidades do terreno, formando o que é comummente designado por rego ou barroca, e daí seguia, em termos que não foi possível apurar em pormenor, até à quinta dos autores, onde estes dela se serviam, nos termos já referidos.
30) Há cerca de quarenta anos, os autores ou seus então antecessores colocaram, no interior da mina um sistema rudimentar que canalizava água até junto da casa de habitação.
31) Existia em frente à casa uma poça em terra onde os autores lavavam a roupa com água vinda da mina.
32) Em circunstâncias de tempo que não foi possível apurar, os autores instalaram máquina de lavar roupa e tanques em cimento.
33) Através do sistema de canalização a que se alude na resposta ao ponto “21”, os autores passaram a receber água da mina, através de uma torneira, para um uso dentro de casa, mas para finalidades que, em pormenor, não foi possível apurar.
34) Os autores, mesmo depois da instalação da água de rede, continuaram a utilizar água da mina, em condições e proporções que não foi possível apurar.
35) O facto referido em “16.” provocou a interrupção da chegada da água à casa de habitação, nos termos vertidos nas respostas aos pontos “21” e “24”. Os autores colocaram um tubo de dimensões que não foi possível apurar para restabelecer a circulação da água interrompida aquando do abatimento da mina. A água deixou de circular no sistema a que se alude nas respostas aos pontos “21” e “24”, depois de adaptado com o tubo a que se alude em “T” e na resposta ao ponto “29”.
36) O poço foi aberto nas imediações da mina. Na construção do poço, foram utilizadas manilhas, em quantidade que, em concreto, não foi possível apurar. Aquando da realização das obras, a mina deixou de deitar água. O facto referido em “W” não fez com que os autores voltassem a ter água da mina, já que a mesma continuou sem deitar água.
37) Quando deixaram de ter água da mina, os autores passaram a utilizar, unicamente, a água proveniente de outras fontes, inclusivamente a da rede pública.
38) Os autores destinam a água da charca quase exclusivamente a regas. Esta água não satisfaz as necessidades de consumo diárias dos autores, para casa e para os animais.
39) Parte da água da mina era e sempre foi, desde há mais de vinte anos, utilizada no próprio prédio dos réus, quer para consumo doméstico, quer para outros fins das pessoas que habitavam a casa, que nunca teve água canalizada, quer para consumo de alguns animais domésticos que essas pessoas tinham no prédio dos réus, quer ainda para as regas do próprio prédio, sendo a água captada para tais fins na boca da mina, através de cântaros e baldes. Tal como o faziam também os herdeiros de (....), para utilização na sua casa de habitação, situada a poucos metros da mina.
40) Os autores e antecessores no direito também obtinham a água da mina, destinando-a ao consumo doméstico da casa, através de cântaros e baldes.
41) Quando as havia, as águas sobrantes seguiam pela barroca, para destino que, em concreto, não foi possível apurar.
42) Os réus foram emigrantes em França.
43) A cerca de cento e cinquenta metros de casa dos autores, situada em terreno pertencente aos autores, existe uma mina e uma nascente de água que represam, a qual é utilizada há mais de quarenta anos pelos autores e antecessores no direito, pelo menos para rega de parte da quinta e para consumo de alguns animais.

3. Fundamentos de direito
3.1. Apreciação do recurso dos autores
3.1.1. Caracterização do direito dos autores
Nas conclusões 1.ª a 14.ª, alegam os Apelantes/autores, que dos factos provados se deverá concluir juridicamente pela ocorrência por usucapião, da aquisição da propriedade da água.
Na petição inicial, pedem a condenação dos réus no reconhecimento da propriedade dos autores sobre a água da mina existente no subsolo do prédio dos réus, ou, subsidiariamente, no reconhecimento do direito de servidão de águas, presa e aqueduto da mesma mina.
Vejamos a primeira possibilidade:
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[1] em anotação ao artigo 1390.º do Código Civil: «O direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste, No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água; no segundo, é a da servidão. A constituição dum direito de propriedade depende da existência de um título capaz de a transferir; a constituição de uma servidão, da existência de um dos meios referidos no artigo 1547.º: contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença e decisão administrativa.»
Prevê-se expressamente a possibilidade de constituição de qualquer dos dois direitos referidos, na parte final do n.º 1, do normativo citado.
Como se realça no acórdão do STJ de 20.01.2010[2]: «Existe, porém, uma profunda diferença entre estes dois direitos, tanto no seu conteúdo como na sua dimensão ou extensão: no primeiro caso há um direito pleno e, em princípio, ilimitado, sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo apenas possibilita ao seu titular efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante.»[3]
Na situação sub judice, não se provou o uso exclusivo da água por parte dos autores.
Com efeito os Autores alegaram a utilização “em exclusivo de toda
a água da mina”, facto que foi vertido no quesito 18.º, e que não mereceu resposta positiva, tendo-se apenas provado que «Desde tempos imemoriais, que ultrapassam a memória dos vivos, que a mina subterrânea referida em “N” tem permanentemente fornecido água para o terreno onde se encontra, e que constituiu primeiramente, uma única quinta, depois vários prédios partilhados, e que os Autores utilizam a referida água nos seus prédios identificados em A), B) e C), desde há pelo menos 35 anos.» (facto 12).

Alegaram também os autores que «Dada a orientação da mina, incluindo o posicionamento da boca na extremidade, tal água era utilizada e é utilizada apenas pela quinta dos autores?», facto que veio a ser vertido no quesito 17.º, ao qual o tribunal a quo respondeu negativamente, propondo os Apelantes no recurso da matéria de facto, que se desse como provado «com o esclarecimento de que para beber também essa água era utilizada por vizinhos ou passantes, por mera condescendência e relações de solidariedade e boa vizinhança», tendo-se considerado improcedente o recurso nessa parte.
Em suma: os autores não lograram provar «o uso pleno da água, sem qualquer limitação» a que se referem Pires de Lima e Antunes Varela na obra citada supra, pelo que se impõe a conclusão de que não estão provados nos autos, factos que permitam a conclusão jurídica defendida pelos autores: o direito de propriedade sobre a água que existia no subsolo do prédio dos réus.
Vejamos agora se a factualidade provada configura a aquisição do direito de servidão.
Como ficou dito, o direito à água que nasce em prédio alheio pode ser – conforme o título da sua constituição – um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, ou seja, um direito de propriedade, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes às necessidades deste, isto é, um direito de servidão.
Para aquisição do direito de servidão por usucapião, torna-se ainda necessário, além dos demais requisitos exigidos por lei, o da construção de obras visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.
Isto significa que ao corpus possessório é aqui essencial um requisito que não seria necessário à face dos princípios gerais, visando o legislador, com esta exigência, excluir da usucapião, em matéria de águas, situações de posse equívoca.
Como se refere no acórdão do STJ de 20.01.2010, citando o Professor Henrique Mesquita[4], impendendo sobre os proprietários a obrigação de dar escoamento às águas que naturalmente e sem obra do homem provenham de prédios superiores (art. 1351º) e facultando-lhes a lei, em compensação deste encargo, o poder legal de as aproveitar (art. 1391º), a simples fruição, pelos proprietários inferiores, da água de uma fonte ou nascente, tanto pode traduzir o cumprimento de um encargo e o mero exercício de uma faculdade legal, como a intenção de agir uti dominus, e para destruir esta equivocidade o legislador faz depender a posse da construção de obras no prédio superior nos termos referidos.
Ora, na situação em apreço, verificam-se todos os requisitos para a constituição de uma servidão de águas:

Desde tempos imemoriais, que ultrapassam a memória dos vivos, que a mina subterrânea referida em “N” tem permanentemente fornecido água para o terreno onde se encontra, e que constituiu primeiramente, uma única quinta, depois vários prédios partilhados, utilizando os Autores a referida água nos seus prédios identificados em 1), 2) e 3), desde há pelo menos 35 anos. (facto 26)

Toda a gente respeitava o facto de os autores utilizarem a água da mina, nos termos em que se alude no ponto anterior. (facto 27)

A água que saía da mina fluía por desníveis e irregularidades do terreno, formando o que é comummente designado por rego ou barroca, e daí seguia, em termos que não foi possível apurar em pormenor, até à quinta dos autores, onde estes dela se serviam, nos termos já referidos. (facto 28)

Há cerca de quarenta anos, os autores ou seus então antecessores colocaram, no interior da mina um sistema rudimentar que canalizava água até junto da casa de habitação. (facto 29)

Existia em frente à casa uma poça em terra onde os autores lavavam a roupa com água vinda da mina. (facto 30)

Através do sistema de canalização a que se alude na resposta ao ponto “21”, os autores passaram a receber água da mina, através de uma torneira, para um uso dentro de casa, mas para finalidades que, em pormenor, não foi possível apurar. (facto 32)

Os autores, mesmo depois da instalação da água de rede, continuaram a utilizar água da mina, em condições e proporções que não foi possível apurar. (facto 33)
Começamos por uma abordagem ao instituto da posse.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251.º CC).
Este preceito traduz a consagração, na nossa lei, de uma concepção subjectiva do instituto possessório, nos termos da qual a posse é integrada por dois elementos: o corpus possessório e o animus possidendi.
O corpus traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251.º e 1252.º/2), actividade que não carece, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o corpus permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257.º/1).
O animus, elemento de natureza psicológica, caracteriza-se como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados, consistindo na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.
Possuidor é, pois, para a nossa lei, apenas aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem, tem, além do corpus possessório, também o animus possidendi –a intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio.
Perante a dificuldade de demonstrar a posse em nome próprio, ou seja, do referido animus, a lei estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o corpus tem também o animus (veja-se o artigo 1252, nº 2, e o assento, hoje acórdão uniformizador de jurisprudência, do STJ de 14/5/96, in “DR, II Série, de 24.06.1996)[5].
Podem assim adquirir por usucapião, se a presunção não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.
Como decorre do citado artigo 1287º, a verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo (este variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa).
A posse, para conduzir à usucapião, tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262º); posse pacífica é a que foi adquirida sem violência (art. 1261º/1).
Os demais caracteres da posse (titulada, de boa ou má fé, etc.) apenas relevam quanto ao prazo, dispondo o artigo 1296.º que não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode ocorrer no termo de 15 anos se for de boa fé e de 20 se for de má fé.
Voltando ao caso sub judice, provou-se que inicialmente a água corria para o prédio dos autores por um rego e que há cerca de quarenta anos, os autores ou seus então antecessores colocaram, no interior da mina um sistema rudimentar que canalizava água até junto da casa de habitação.
Estes factos integram a qualificação de obras visíveis e permanentes, no prédio onde existe a mina, que revelem a captação e a posse da água.
Acresce que se provou que:

Desde tempos imemoriais, que ultrapassam a memória dos vivos, que a mina subterrânea referida em “N” tem permanentemente fornecido água para o terreno onde se encontra, e que constituiu primeiramente, uma única quinta, depois vários prédios partilhados, utilizando os Autores a referida água nos seus prédios identificados em 1), 2) e 3), desde há pelo menos 35 anos. (facto 26)

Toda a gente respeitava o facto de os autores utilizarem a água da mina, nos termos em que se alude no ponto anterior. (facto 27)
Ou seja: provou-se a posse, o decurso do tempo, a natureza pública e pacífica.
Perante esta prova, não podemos estar de acordo, salvo o devido respeito, com a decisão recorrida, havendo que declarar a aquisição da servidão do direito de água por parte dos autores, relativamente ao prédio dos réus.
Quanto ao âmbito e natureza dessa servidão, face ao disposto no n.º 1 do artigo 1561.º do Código Civil, trata-se de uma servidão legal de aqueduto, considerando que os actos materiais de posse integram a respectiva previsão legal: «encanar subterraneamente ou a descoberto as águas particulares (…) através de prédios rústicos alheios».
Procede, em consequência, nesta parte, o recurso dos autores.

3.1.2. Efeitos da extinção da água
Provou-se que a mina deixou de ter água (factos 35, 36 e 37).
O desaparecimento da coisa sobre que incide o direito deverá provocar, de acordo com a mais elementar lógica, a extinção do próprio direito.
Rege, no entanto nesta matéria, o artigo 1571.º do Código Civil, que dispõe: «A impossibilidade de exercer a servidão não importa a sua extinção, enquanto não decorrer o prazo da alínea b) do nº 1 do artigo 1569º».
O prazo referido é de vinte anos.
A ratio legis do normativo transcrito é lapidarmente definida por Pires de Lima e Antunes Varela[6], nestes termos:

«Suponhamos que seca a nascente de água que servia de objecto à servidão, ou que é dado outro destino ao edifício onde estava a igreja ou a fábrica, às quais tinha acesso o dono do prédio dominante. Se os factos forem temporários, seria manifesto desacerto considerar extinta a servidão, prejudicando definitivamente os interesses do proprietário dominante. Mesmo, porém, que a impossibilidade seja considerada permanente e irremediável, se nenhum interesse reveste a afirmação (platónica) de que a servidão se mantém, também se afigura manifestamente inútil a declaração formal da sua extinção.».
Na situação sub judice, os réus não pediram em reconvenção, a extinção da servidão, pelo que ao tribunal não seria lícito o seu conhecimento, mas mesmo que o tivessem feito, não poderia ser decretada a extinção da servidão, apesar da provada inexistência da água.
Em suma, e conforme imperativamente decorre do normativo citado, a servidão matem-se, apesar do desaparecimento da coisa sobre a qual incide o direito dos autores, até que decorra o prazo previsto na lei, ou até à ocorrência de outro facto extintivo.
A solução poderá parecer absurda, como implicitamente admitem os insignes professores citados, mas é inquestionável a imperatividade do artigo 1571.º do CC.
Esta solução jurídica leva-nos directamente à análise do segundo pedido dos autores: que sejam os réus condenados a reconhecer e respeitar o direito à água (servidão) e como tal a nada fazerem para impedir os autores de utilizar essa água, ou que possa diminuir o respectivo caudal.
Tendo-se provado que não há água para utilizar, mantendo-se por força de norma imperativa uma servidão esvaziada de qualquer utilidade, seria absurda a condenação dos réus a nada fazerem para impedirem a utilização da água (que não existe), ou a não diminuírem o caudal (inexistente).
Haverá assim apenas que condenar os réus a reconhecerem a existência da servidão legal de aqueduto.
Face a tudo o que ficou dito, deverão improceder o 3.º e 4.º pedido dos réus no arrasamento do poço e em indemnização por alegados prejuízos decorrentes da interrupção do fornecimento de água aos autores, considerando que não se provou que a água tenha sido desviada com o poço, nem que a interrupção do fornecimento da água fosse consequência de qualquer conduta dos autores.
Com fundamento em todo o exposto, concluímos pela procedência parcial do recurso dos autores, nos termos referidos: condenação dos réus no reconhecimento do direito de servidão de aqueduto dos autores, apesar da inexistência de água, e absolvição dos restantes pedidos.
Deverá ser revogada a douta sentença, em conformidade.

4. Apreciação do recurso dos réus
Pediram os réus, por via reconvencional, a condenação dos autores: no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre os prédios identificados no pontos 4 e 5 dos factos provados; a retirar do prédio as manilhas que lá colocaram e a abster-se de entrar no prédio.
Na douta sentença recorrida foram julgados improcedentes estes pedidos.
No que concerne ao primeiro pedido, salvo o devido respeito, não restam dúvidas sobre a sua procedência, tanto mais que nem sequer é impugnado pelos autores o direito de propriedade invocado.
Isso mesmo foi reconhecido na sentença sob recurso (fls. 729), onde se diz: «Assiste-lhes, sem dúvida, razão, quanto à propriedade de tais prédios; os autores, aliás, não só não negaram essa alegação, como, inclusivamente, a invocaram, como fundamento da própria acção.»
Conclui-se, no entanto, na sentença recorrida, que os autores não tiveram qualquer actuação que visasse beliscar ou sequer contestar a propriedade dos réus sobre os prédios que lhes pertencem e só assiste aos réus o direito de verem a sua propriedade declarada contra aqueles que, de algum modo, perturbem ou contestem esse direito.
Nas suas alegações, os réus contrapõem que nos prédios em causa os autores procedem ao levantamento da mina lá existente, e ali colocaram oito manilhas sem conhecimento e sem autorização dos réus e que o fizerem não sendo titulares de qualquer direito que lhes permitisse essa conduta.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar com a posição expressa na sentença, que confunde o pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado em reconvenção, com a acção de reivindicação prevista no artigo 1311.º do CC, onde se prevê o pedido de reconhecimento do direito por parte do seu titular, contra o detentor ou possuidor da coisa.
Como ensinam os professores Pires de Lima e Antunes Varela[7], não é acção de reivindicação aquela em que o autor «estando já na posse da coisa, se limita a pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade, tornado duvidoso por qualquer circunstância».
O que se poderia discutir in casu, seria a questão do “interesse processual”, que Antunes Varela[8] reconduz à exigência de objectividade e de gravidade na ameaça ao direito.
In casu, os réus entenderam como ameaça ao seu direito de propriedade a conduta dos autores que na sua ausência e sem a sua autorização entraram no seu prédio com uma retroescavadora, escavaram a área da mina e colocaram manilhas no terreno, e em resposta ao pedido formulado pelos autores, pedem a condenação destes no reconhecimento do seu direito, e a retirarem as manilhas, repondo o terreno na situação anterior.
O facto de os autores não impugnaram o direito cujo reconhecimento é pedido, não obsta a que o tribunal o declare, e a conclusão retirada pelo M.º Juiz do tribunal a quo, de que não assiste aos réus o direito de verem a sua propriedade declarada contra os autores, porque estes não perturbaram ou contestaram esse direito, é, salvo o devido respeito, claramente contraditória com a conclusão que também consta da sentença, de que não assistia qualquer direito aos autores (de propriedade ou de servidão das águas do prédio dos réus).
Há assim que declarar o direito de propriedade invocado pelos réus.
Quanto aos restantes pedidos de condenação, há que considerar a faculdade designada por “adminicula servitutis”, prevista no artigo 1565.º do CC: o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação.
Como se refere no acórdão do STJ de 23.10.2008[9], a servidão de aqueduto, por rego aberto à superfície, tem como complemento inerente a faculdade ou adminiculum de entrada e passagem pelo prédio serviente, sem o que não seria possível ou se tornaria muito difícil o seu exercício.
Passando o aqueduto a ser subterrâneo, em vez de por rego aberto à superfície, deve reconhecer-se ao proprietário do prédio dominante a faculdade de acesso ao prédio serviente, quando as circunstâncias o imponham, para inspeccionar o aqueduto através dos óculos de observação ou caixas de visita, ou para nele fazer a limpeza, em caso de entupimento.
Na situação comprovada nos autos, a mina abateu, a água deixou de correr no prédio dos autores, e estes, na ausência dos réus, desentupiram a mina e colocaram manilhas com vista a que a água retomasse o seu curso.
Tendo-se concluído que os autores têm a titularidade do direito de servidão de aqueduto, e que a mesma não se extinguiu, terá que improceder o pedido de condenação na retirada das manilhas (aqueduto), bem como o pedido de condenação de abstenção na prática de quaisquer obras “relacionadas com o curso de água da mina”.
Deverá, em consequência, a sentença ser alterada em conformidade.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação:
1. Em julgar parcialmente procedente o recurso dos autores sobre a matéria de facto e, em consequência, em alterar a resposta dada ao quesito 12.º, nos termos que se consignaram na redacção do facto n.º 26;
2. Em julgar parcialmente procedente os recursos dos autores e dos réus sobre a matéria de direito, e, em consequência, em revogar a douta sentença recorrida:
a) Condenando-se os réus a reconhecer o direito de servidão de aqueduto dos autores, relativamente à mina existente no prédio dos réus;
b) Condenando-se os autores a reconhecer o direito de propriedade dos réus sobre os prédios identificados nos n.º 4 e 5 dos factos provados: i) rústico descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº K..., inscrito na matriz sob o artº 4; ii) urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº Z..., inscrito na matriz sob o artº 005....
c) Absolvendo-se autores e réus de todos os restantes pedidos formulados na acção e na reconvenção.
Custas na 1.ª instância e no recurso, por autores e réus, em partes iguais.


[1] Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 1972, pág. 276
[2] Relatado pelo Conselheiro Santos Bernardino, Processo n.º 678/1999.P1.S1 (http://www.dgsi.pt)
[3] No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STJ, de 3.03.2005, Proc. 05A011, relatado pelo Conselheiro Azevedo Ramos (http://www.dgsi.pt)
[4] Processo n.º 678/1999.P1.S1 (http://www.dgsi.pt)
[5] Vide ainda acórdão do STJ de 5.03.2009, proferido no Processo n.º 09B0148 (http://www.dgsi.pt)
[6] Ob. cit. pág. 624
[7] Ob. cit., pág. 101
[8] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 186 e 187
[9] Proferido no Processo n.º 08B2004 (http://www.dgsi.pt)