Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
97/04.4TBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 04/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1419º, 1422º-A DO CÓDIGO CIVIL; 1425º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E ALÍNEA F) DO ART. 132º DO CÓDIGO DO NOTARIADO
Sumário: 1. A modificação do título constitutivo da propriedade horizontal postula necessariamente uma alteração da própria estrutura do edifício ou uma alteração no conteúdo do estatuto real do condomínio, isto é, do número de fracções, da sua composição, dos espaços considerados comuns, das percentagens ou permilagens da fracção, etc.
2. A modificação do título constitutivo da propriedade horizontal pressupõe o acordo de todos os condóminos, ressalvado o disposto no art. 1422º-A do CC.
3. Só quando a lei substantiva admite o suprimento do consentimento é que o interessado pode socorrer-se do processo especial previsto no art. 1425º do CPC., e se a lei nada prever ou disser é o suprimento inadmissível.
4. O Código Civil não prevê o suprimento do consentimento dos condóminos para modificação do título constitutivo da propriedade horizontal.
5. O erro manifesto de escrito vertido no título constitutivo da propriedade horizontal pode ser rectificado mediante requerimento do interessado ao abrigo da alínea f) do art. 132º do Código do Notariado.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                      I)- RELATÓRIO

A.... intentou, no Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, acção com processo especial, contra B....e mulher C.... pedindo seja suprido o consentimento ou a declaração de vontade dos Requeridos na escritura de alteração da propriedade horizontal, em conformidade com o que consta da certidão da Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos, datada de 12-12-2001. Pede, ainda, que os Requeridos sejam condenados a pagar à Requerente a indemnização pelos danos causados com a sua recusa e que se vierem a liquidar posteriormente.

Para tanto, a Requerente alega que foi dona e possuidora de uma parcela de terreno, sita na vila de Figueiró dos Vinhos, onde construiu um edifício composto de rés-do-chão, 1.º e 2.º andares, sótão e logradouro, no regime de propriedade horizontal, tendo já procedido à venda de 14 fracções. Sucede que, no que diz respeito à fracção “N”, prometida vender e situada no 1.º piso do lado direito, foi atribuído por lapso, um terraço de cobertura, com a área de 96,6 m2, quando na realidade esse terraço está destinado ao uso privativo da fracção “C”, que corresponde ao sótão do lado direito, situando-se o terraço sobre este sótão.

Quando a Requerente pretendia outorgar a venda da fracção “N”, mediante escritura, constatou-se o referido lapso, e logo a Requerente pediu na Câmara Municipal a alteração da propriedade horizontal, no tocante à planta e memória descritiva e também na parte relativa à fracção “S”, constando agora que tal fracção deu lugar a seis novas fracções (S, U, V, X, Z, e AA) ali descriminadas.

Sendo ainda proprietária de 5 fracções autónomas, e tendo obtido já a procuração ou promessa de outorga de procuração por parte de 13 condóminos, a Requerente só não possui a procuração dos Requeridos, donos da fracção “O” a fim de proceder à escritura de alteração do titulo constitutivo da propriedade horizontal em consonância com a alteração aprovada na Câmara Municipal, o mesmo acontecendo com a inscrição matricial e registo predial do prédio.

Os Requeridos recusam-se injustificadamente, porque nenhum prejuízo lhes advém, a prestar o seu consentimento a outorgar a escritura de alteração da propriedade horizontal, estando a Requerente impedida de vender a fracção “N”, há dois anos, com isso sofrendo prejuízos.

Citados, os Requeridos responderam, alegando, em síntese, que no presente processo especial de suprimento do consentimento não é legítimo deduzir pedido de indemnização. O que a Requerente pretende não é rectificar um simples lapso da planta e memória descritiva que serviram de base à constituição da propriedade horizontal, mas fraccionar a fracção “S” e criar várias outras fracções ( “U”, “V”, “X”, “Z” e “AA”. A Requerente pretende alterar/modificar o prédio, o título constitutivo da propriedade, o registo predial, a relação de condomínio e o valor relativo das fracções. As alterações conseguidas pela Requerente junto da Câmara Municipal ocorreram após – pelo menos- a venda da fracção aos Requeridos  e sem o conhecimento e consentimento dos demais condóminos. A Requerente age, apenas, em proveito próprio, bem sabendo que não cumpriu, para com os Requeridos, as suas obrigações como vendedora, uma vez que não dispõem, na sua fracção “0”, de energia trifásica e, bem assim, a fracção e garagem adquiridas padecem de vícios e defeitos construtivos.

Terminam, concluindo pela absolvição do pedido.

Na audiência de julgamento a que se procedeu, a Requerente desistiu do pedido de suprimento do consentimento relativo à sub-divisão da fracção “S” em 6 novas fracções (S, V, F, X, Z e A) (fls. 219). Como se vê de fls. 535, foi homologada tal desistência do pedido.

A fls. 223 e ss, a Requerente pediu a alteração do pedido e da causa de pedir, tendo alegado o seguinte:

Os Requeridos sabem que o que se pretende é a substituição da letra “N”, pela letra “C” na parte final da escritura de constituição de propriedade horizontal, onde sob a alínea b), se lê “o telhado e o terraço de cobertura, ainda que é destinado ao uso privativo da fracção “N”. O referido terraço está afecto ao uso privativo da fracção “C” e não é acessível por qualquer outro lado, senão pelo interior da fracção “C”. Tal como consta da escritura de constituição de propriedade horizontal é a fracção “C” que surge composta de terraço, pelo que a troca da letra da letra “C” pela “N” foi devida a erro de quem passou a certidão camarária para efeitos de escritura. Os Requeridos actuam com manifesto abuso do direito, prevalecendo-se indevidamente do disposto no art. 1419º do CC, continuando a provocar danos à Requerente.

Termina pedindo que os Requeridos sejam condenados como litigantes de má-fé, por abuso do direito, e em sanção pecuniária compulsória aplicável equitativamente, bem como nos danos que se vieram a liquidar em execução de sentença.

Os Requeridos responderam nos termos constantes de fls. 229 e 230, pugnando pelo indeferimento do requerido.

Por despacho de fls. 245 e 246 foi admitido o requerido, enquanto ampliação do pedido, tendo os Requeridos agravado, estando as alegações juntas a fls. 409 a 414. 

Finda a audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e provada, declarando suprida a vontade dos Requeridos para efectuar a escritura de alteração da propriedade horizontal constituída por escritura celebrada no Cartório Notarial de Figueiró dos Vinhos, de modo a que, em vez de constar que o terraço de cobertura se encontra destinado ao uso privativo da fracção N, conste que o terraço de cobertura se encontra destinado ao uso privativo da fracção C. Quanto ao mais pedido, foram os Requeridos absolvidos, sendo a responsabilidade pelas custas repartida em partes iguais.

Irresignados com tal decisão, apelaram os Requeridos, extraindo da sua minuta de recurso as seguintes conclusões:

1ª-A Recorrida propôs a presente acção, pretendendo suprimento das declarações dos Recorrentes, com vista à modificação e alteração do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio por si edificado, quanto ao do alvará de construção, ou seja, ao número da fracção, áreas e valor de mais 5 fracções, bem assim, da alteração da escritura, quanto à afectação e destino do terraço mencionado.

2ª-Da fracção autónoma designada pela letra “C”, faz parte integrante de, entre o mais, a cozinha, a qual contém o terraço;

3ª-As partes componentes desta fracção constituem parte exclusiva da mesma e a mesma é pertença plena do dono respectivo;

4ª-Tal terraço, no título, não figura como de cobertura do prédio ou parte comum do prédio;

5ª-Os Apelantes deduziram oposição, por em seu entender in casu, não haver lugar a suprimento, mas sim e antes, trata-se de questão do condomínio a quem compete apreciar e deliberar em assembleia, para o efeito, convocada;

6ª-Como não ser aplicável, através do processo de suprimento, para modificar o título constitutivo de propriedade horizontal, com mais 5 fracções, alterando-as quanto ao seu valor relativo e áreas.

7ª-Nem para condenação dos Apelantes, em indemnização.

8ª-A Apelada, pese embora, tenha desistido de parte do pedido, veio, em seguida, ampliá-lo e alterá-lo;

9ª-A sentença recorrida enfoca o caso como sendo de erro de escrita  não de constituição de propriedade horizontal, a bulir com a posição dos Apelantes;

10ª-O processo de suprimento judicial, não é o aplicável;

11ª-A acção deveria ser julgada totalmente improcedente e as custas ser, na sua totalidade, da responsabilidade da Recorrida;

12ª-Por erro de interpretação e/ou aplicação, não se mostram correctamente observados e, por isso, foram violados os princípios gerais de direito e os dispositivos atinentes, nomeadamente, os previstos nos arts. 1419º, 1421º, 1422º-A do CC e arts. 450º e 1425º do CPC.

A Requerente contra-alegou em defesa do julgado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                     II)- OS FACTOS

Na sentença recorrida  foi dada por assente a seguinte factualidade:

1.º- A Requerente A…. foi dona e legítima possuidora de uma parcela de terreno para construção, com a área de 956 m2, sita na vila e comarca de Figueiró dos Vinhos, a confrontar do Norte com Rua ….., Sul e Nascente com a própria e Poente com …., omissa na respectiva matriz e descrita na respectiva Conservatória do Registo Predial, sob o n.º 04879/17112000-Figueiró dos Vinhos (cfr. artigo 1.º da p.i., doc. de fls. 456 e ss);

2.º- Nesta parcela de terreno, a Requerente construiu um edifício composto de cave, rés-do-chão, 1.º e 2.º andares, sótão e logradouro, com a superfície coberta de 771 m2 e logradouro de 185 m2 (cfr. artigo 2.º da p.i., doc. de fls. 457);

3.º- Edifício que, constituído em propriedade horizontal, deu lugar a 19 fracções autónomas: A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q, R, S, T (cfr. artigo 3.º da p.i. e doc. de fls. 457);

4.º-  A Requerente procedeu à venda das seguintes fracções: A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, O, P e Q, no total de 15 fracções (cfr. artigo 4.º da p.i. e doc. de fls. 460 e ss);

5.º-  A Requerente prometeu vender a fracção correspondente ao 1.º piso direito, designada na Conservatória do Registo Predial pela letra N, a M….., casado com MA….. (cfr. artigo 5.º da p.i., docs. de fls. 54-55 55; 457 e fundamentação);

6.º- A Requerente é proprietária das fracções N, R, S, T (cfr. artigo 13.º da p.i. e doc. de fls. 455 e ss);

7.º- Na escritura pública de constituição da propriedade horizontal relativa ao edifício constante do artigo 1.º supra, consta além do mais:

         «fracção C – localizada no sótão, direito, tipo T3, composta de cinco compartimentos: três quartos com varanda, sala comum com varanda, cozinha com terraço, arrumos, hall e dois quartos de banho, destinada a habitação (…)»;

         «todas as fracções terão como propriedade comum (…) b) o telhado e o terraço de cobertura, ainda que destinado ao uso privativo da fracção N» (v. doc. de fls. 47 e 51);

8.º-  A fracção N corresponde ao 1.º piso do lado direito e a fracção C corresponde a um sótão do lado direito, situando-se o terraço justamente sobre esse sótão (cfr. artigo 7.º da p.i., docs. de fls. 43 e ss; 452 e ss; e fundamentação);

9.º-  Na escritura pública de constituição da propriedade horizontal foi atribuído à fracção N, por lapso de escrita, um terraço de cobertura, quando, na realidade, esse terraço está afecto ao uso exclusivo da fracção C (cfr. artigo 7.º da p.i., doc. de fls. 43 e ss, v. fls. 47, 49 e 51 e fundamentação);

10.º- Quando se constatou o lapso, foi tentado proceder às devidas rectificações, na sequência do que a Câmara Municipal deliberou aprovar a alteração da propriedade horizontal, tendo emitido certidão donde consta que: «o telhado e o terraço de cobertura ainda que destinado ao uso privado da fracção C, com a área de 96,6 m2 da área

total do pavimento» (cfr. artigo 9.º, 10.º e 12.º da p.i., doc. de fls. 57 e 58 e fundamentação);

11.º- Cada um dos proprietários das fracções A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, P e Q, declararam constituir sua bastante procuradora a sociedade Requerente e conferir-lhe poderes para «outorgar e assinar a escritura pública de alteração da propriedade horizontal, lavrada no dia 31 de Janeiro de 2001, no Cartório Notarial de Figueiró dos Vinhos, iniciada a folhas cinco do livro de notas para escrituras diversas, do prédio urbano (…)» referido no ponto 1.º supra, para «a rectificação da mesma escritura no sentido de que o uso privativo do terraço com a área de 96,6 m2 pertence à fracção “C” e não à fracção “N”, como por lapso ficou a constar do mencionado título constitutivo» (cfr. artigo 13.º da p.i. e docs. de fls. 496-532);

12.º- A fracção C encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial em nome de AM…. e mulher SA…. (cfr. doc. de fls. 465 - Ap. 01/03032006);

13.º- Os Requeridos, proprietários da fracção O, recusam-se a consentir na alteração pretendida pela requerida (cfr. artigo 14.º e 15.º da p.i. e teor da oposição); 

14.º- A Requerente pretende proceder à outorga da escritura definitiva de compra e venda da fracção prometida vender, referida no ponto 5.º supra, e não o vem podendo fazer por causa da recusa dos Requeridos (cfr. artigo 17.º e fundamentação);

15.º- Os Requeridos pretendem exigir da requerida a instalação de energia trifásica na fracção adquirida e a supressão de vícios e defeitos construtivos (cfr. teor do artigo 39.º da oposição).

Esta a factualidade assente que se mantém inalterada, porque não mereceu impugnação nem oficiosamente se justifica qualquer reparo.

                                     III)- O DIREITO

O objecto do recurso é definido, em princípio, pelas conclusões da alegação, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 690º, n.º1, 684º, n.º3 e 660º, n.º2, todos do CPC).

Sublinhadas tais normas adjectivas, analisemos os recursos interpostos pelos Requeridos. 

III-A)- AGRAVO

Com a Apelação subiu o recurso de Agravo interposto pelos Apelantes contra o despacho interlocutório, exarado a fls. 245 e 246, que admitiu a ampliação do pedido deduzida pela Requerente.

Como se vê de fls. 223 e 224, pediu a Requerente, em ampliação do pedido inicial, que os Requeridos, ora Agravantes, fossem condenados  como litigantes de má fé por abuso manifesto do direito, declarando-se a nulidade de ilegitimidade do abuso de direito. Mais pediu que os Requeridos fossem condenados em sanção pecuniária compulsória, a pagar à Requerente os danos que se viessem a liquidar em execução de sentença e ainda condenados a pagar custas e procuradoria condignas.

Nas conclusões do recurso, juntas a fls. 409 a 414, defendem os Agravantes, em suma, que atento o pedido inicial de suprimento de consentimento, não tem qualquer sentido processual o pedido de condenação em sanção pecuniária compulsória. Mais aduzem não ter sido invocado qualquer facto a consubstanciar a pretendida condenação em abuso de direito, como ocorreu omissão de pronúncia relativamente aos pedidos de condenação em indemnização por danos a liquidar em execução de sentença e ainda em custas e procuradoria.

Antes de entrar no conhecimento do mérito do Agravo, importa ter em consideração o disposto nos ns.º 1 e 2 do art. 711º do CPC, ressaltando do n.º2 que os agravos só são providos quando a infracção cometida tenha influído no exame ou decisão da causa.

Ora, fácil é constatar que a deferida ampliação do pedido, mesmo que qualificasse infracção processual, em nada influiu no exame e decisão da causa. Na verdade, os Requeridos, ora Agravantes, tal como emerge da sentença final, foram absolvidos de tais pedidos, porque somente foi declarado suprido o consentimento dos Requeridos, não nos exactos termos do requerimento inicial, porque, no decurso da tramitação processual, a Requerente desistiu do pedido de suprimento do consentimento para a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal no tocante à divisão da fracção “S”, localizada na cave, em 6 novas fracções (“S”, “U”, “V”, “X”, “Z” e “AA”), tendo sido homologada tal desistência (cfr. fls. 219 e 535). E a sentença, no tocante à absolvição dos pedidos, transitou em julgado, porque não foi impugnada pela Requerente. Tendo, porém, os Requeridos sido condenados em custas, estas não enquadram o pedido da acção ou mesmo ampliação do pedido, definindo-se o pedido como o efeito jurídico visado com a demanda (n.º3 do art. 498º do CPC). Aliás, o Julgador, na decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos, condenará em custas a parte que a elas houver dado causa, ou não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito (n.º 1 do art. 446º do CPC). Tal condenação é oficiosa, não carecendo de pedido.

Isto é, face ao exposto, a admitida ampliação do pedido, mesmo a ser reputada infracção da lei adjectiva, a verdade é que nenhuma influência teve no exame e decisão da causa. Consequentemente, o recurso de Agravo não merece ser provido, importando então conhecer da matéria do recurso de Apelação também interposto pelos Requeridos.

III-B)- APELAÇÃO

Nas conclusões 2ª a 4ª, inclusive, os Recorrentes tecem considerações sobre a descrição da fracção “C”, onde surge uma cozinha com terraço (cfr. n.º 7 supra), que, salvo o devido respeito, em nada relevam à presente demanda. Com efeito, está apenas em causa, após a desistência de parte do pedido, o suprimento do consentimento para alteração da escritura da propriedade horizontal em conformidade com a certidão da Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos, na parte em que foi atribuída à fracção “N”, um terraço de cobertura com a área de 96,6 m2. Aceitam, aliás, os Recorrentes não estar, na realidade, a fracção “N” ao nível ou sob qualquer terraço de cobertura que possa servir de uso privativo, como foi considerado provado (cfr. n.º 9 da factualidade assente). Como está provado sob o n.º 7º supra, que na escritura de propriedade horizontal consta, além do mais, que “todas as fracções terão como propriedade comum (…) o telhado e o terraço de cobertura, ainda que destinado ao uso privativo da fracção “N”. E não estando em causa a impugnação da decisão de facto, foi considerado provado, sob os n.ºs 8º e 9º, que só por lapso foi o terraço de cobertura atribuído à fracção “N”, que corresponde ao 1º piso lado direito do prédio, quando, na realidade, esse terraço sempre esteve afecto ao uso exclusivo da facção “C”, que corresponde a um sótão do lado direito do prédio, situando-se o terraço justamente sobre esse sótão. E porque a verdade material ou realidade construtiva ab initio, não se harmonizava, nesse aspecto, com o teor do título constitutivo da propriedade horizontal, exarado em conformidade com o projecto camarário[1], é que a dita Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos deliberou, 12.10.2001, aprovar a alteração da propriedade horizontal do prédio (n.º10 e doc. de fls. 57 e 58), visando simplesmente corrigir o lapso de escrita já vertido na memória descritiva do projecto de arquitectura aprovado e que consistia na troca de letras identificativas de fracções exclusivamente servidas pelo terraço de cobertura. Assim procedendo, não aprovou, pois, qualquer alteração ao projecto inicial porque, na realidade construtiva, sempre o dito terraço de cobertura esteve afecto ao uso exclusivo ou privativo da fracção “C”.

Em suma, a escritura de constituição da propriedade horizontal foi redigida de acordo com a descrição do prédio constante do documento complementar a que alude o art. 64º do Código do Notariado, mas aquela descrição, no que toca à localização do terraço de cobertura e fracção servida pelo terraço, não condizia, ao tempo e por lapso evidente, com a realidade construtiva, estrutura ou configuração do prédio, tal como resultava da planta ou projecto de arquitectura. O lapso evidente de escrita, consubstanciado na troca de letras identificativas das duas fracções, inquinava já a memória descritiva do projecto, uma vez que aquela afectava o terraço de cobertura ao uso exclusivo da fracção “N”. E situando-se a fracção “C” no sótão do prédio sob o terraço, este só pode ser o terraço aludido na sua descrição (“cozinha com terraço”), e como terraço de cobertura constitui parte comum do prédio nos termos do art. 1421º, alínea b) do CC, norma também assumida no titulo constitutivo da propriedade horizontal, apesar de destinado o terraço ao uso exclusivo dessa fracção. 

Mas, no caso, é de admitir o suprimento do consentimento?

Esta é, ao cabo e ao resto, a questão nuclear colocada a julgamento.

A este propósito, como correctamente é salientado na sentença sob exame, a presente acção, no específico aspecto decidendo, não visa suprir judicialmente o consentimento dos Requeridos, ora Apelantes, para modificar o título constitutivo da propriedade horizontal, já que essa modificação postula necessariamente uma alteração da própria estrutura do edifício ou uma alteração no conteúdo do estatuto real do condomínio, isto é, do número de fracções, da sua composição, dos espaços considerados partes comuns, das percentagens ou permilagens, do destino de cada fracção, etc. [2].  Pode tratar-se de uma modificação de pormenor, como a fixação do valor relativo das fracções ou a indicação do fim a que cada uma delas se destina; ou pode tratar-se de uma alteração substancial do domínio de cada consorte[3] . O conteúdo do título constitutivo vem definido no art. 1418º do CC.

Como acima já vincado, após a desistência parcial do pedido, não está em causa qualquer alteração na estrutura física do prédio, apenas a correcção de um evidente lapso de escrita revelado na declaração negocial constitutiva da propriedade horizontal, constante da escritura pública outorgada pela Requerente, em 31.10.2001, que remete para um documento complementar. Erro patenteado na indicação da fracção “N”, quando a declarante, a ora Requerente, pretendia, sem dúvida, referir-se à fracção “C”, na parte do título constitutivo onde se exara, na alínea b), como parte comum do prédio “o telhado e o terraço de cobertura, ainda que destinado ao uso privativo da fracção N”, porque a realidade física do prédio demonstra claramente que, no momento da outorga da escritura de constituição de propriedade horizontal, já o terraço de cobertura estava afecto ao uso exclusivo da fracção “C”[4] que corresponde ao sótão lado direito do prédio.

Não está, evidentemente, em causa a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, que, ressalvado o disposto no n.º3 do art. 1422º-A do CC, pressupõe o acordo de todos os condóminos e redução desse acordo a escritura pública (ns.º1e 2 do art. 1419º do CC), exigindo o art. 60º, n.º1 do Código do Notariado que a escritura de modificação de tal título que importe alteração da composição ou do destino das respectivas fracções e só podendo ser lavrada se for junto documento camarário comprovativo de que a alteração está de acordo com os correspondentes requisitos legais.

Mesmo que se tratasse de alteração ou modificação do título constitutivo, na esteira da jurisprudência quase unânime e até doutrina, o consentimento dos condóminos não era passível de suprimento judicial, não deixando a letra da lei, a nosso ver, qualquer dúvida a esse respeito[5], não obstante, no caso presente, se mostrar injustificada a recusa dos Requeridos, porque daí nenhum prejuízo lhes adviria[6]. É sempre necessário o acordo de todos os condóminos e a lei não prevê o suprimento judicial do acordo de qualquer condómino. E só quando a lei substantiva admite o suprimento do consentimento no caso de recusa, é que o interessado pode socorrer-se do processo especial de suprimento (art. 1425º do CPC). Se o direito substancial nada prever ou disser sobre o suprimento do consentimento, tem de concluir-se que o mesmo é inadmissível[7].

Está em causa, pois, apenas a correcção de um erro de escrita constante do título constitutivo da propriedade horizontal, já corrigido por deliberação camarária, datada de 12.12.2001 (cfr. doc. de fls. 57 a 58), rectificação essa que evidentemente não se confunde com a alteração do negócio. Não carecendo, pois, tal rectificação de suprimento do consentimento dos Requeridos, impõe-se apenas, por meio de averbamento ao título constitutivo e a requerimento de qualquer interessado, a rectificação da escritura com fundamento em inexactidão da declaração devida a erro manifesto de escrita, ao abrigo da alínea f) do art. 132º do Código do Notariado. Também o art. 249º do CC prescreve que o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta. Tal é o caso. O erro ou lapso, a que aludem os n.ºs 8 e 9 da factualidade assente e que os Recorrentes aceitam, comprova-se documentalmente pelo projecto de arquitectura que retratando fielmente a realidade construtiva afectava, ao tempo da outorga do título constitutivo, o terraço de cobertura ao uso privativo da fracção “C”. Lapso esse rectificado já na deliberação camarária de 12.12.2001.

Todavia, a lei não prevê para a hipótese de rectificação de erro de escrita vertido em escritura pública o suprimento do consentimento, nem tal era concebível, pois basta o requerimento da parte interessada, assim se discordando da sentença impugnada que o admite em tal caso e, em consequência, declarou suprida a vontade dos Requeridos. O processo especial no tocante ao pedido de suprimento do consentimento, e apenas esse, foi, sem dúvida, bem aplicado, não existe erro na forma de processo, mas a lei substantiva não admite o suprimento no caso ajuizado. 

Como acima já se expôs, a Requerente desistiu de parte do pedido, concretamente na pretensão de ver suprido o consentimento dos Requeridos com vista à sub-divisão da fracção “S” em seis novas fracções, consubstanciando, na verdade, tal sub-divisão, apesar de aprovada pela Câmara Municipal (cfr. certidão de fls. 57 e 58), uma modificação do título constitutivo da propriedade horizontal. Tal desistência foi homologada, daí que não vislumbre o interesse da conclusão 6º alusiva a tal sub-divisão. Da mesma maneira, tendo sido os Requeridos absolvidos do pedido de indemnização a liquidar em execução de sentença, nenhum interesse ocorre em defender que o processo de suprimento de consentimento não se compagina com tal pedido (conclusão 7ª) ou que tal processo apenas consente o pedido de suprimento do consentimento.

Relativamente à questão abordada na 11ª conclusão, ou seja, à responsabilidade pelas custas, uma vez definido que a lei substantiva não permite o suprimento do consentimento para rectificar lapsos ou erros de escrita ocorridos no negócio jurídico de constituição da propriedade horizontal, contrariamente à tese perfilhada na sentença sob exame, é manifesto que a acção terá de improceder, ficando as custas totalmente a cargo da Requerente que a elas deu causa (art. 446º, n.º1 do CPC).

                                   IV)- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:

1-Negar provimento ao recurso de Agravo e conceder provimento ao recurso de Apelação.

2-Revogar a sentença impugnada, absolvendo os Requeridos do pedido de suprimento do consentimento para efectuar a escritura de alteração do titulo constitutivo da propriedade horizontal, de modo a que, em vez de constar que o terraço de cobertura se encontra destinado ao uso privativo da fracção “N”, fique antes a constar que tal terraço se encontra destinado a uso privativo da fracção “C”.

3-Condenar a Requerente nas custas, em ambas as instâncias, ficando as custas do recurso de Agravo a cargo dos Requeridos.


[1] Seria nulo o título constitutivo na parte em que divergisse do projecto aprovado pela Câmara Municipal -  cfr. Assento  do STJ, de 10.05.1989, publicado no DR, II, n.º141, de 22.06.1989 e no BMJ n.º 387º, p. 79.
[2] Cfr. Propriedade Horizontal, p. 54, de Aragão Seia
[3] Vide Código Ciivl Anotado, p. 358, vol. III, de Pires de Lima e Antunes Varela.
[4] Cfr., a este respeito, acórdãos do STJ, de 17.03.2005, P. 05B288 e de 14.02.2008, P. 08B29, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ, publicados no BMJ n.º 358º, p. 529 e no BMJ n.º 383º, p. 548; no BMJ n.º 246º, p. 157; no BMJ n.º 243º, p. 318; de 12.03.2002,  JSTJ00042870;  de 20.01.2005, P. 04B4278; de 31.10.2006, P. 06A2603,; de 03.10.2006, P. 06A2497; de 21.11.2006, P. 06A3493, todos acessíveis em www.dgsi.pt; obra citada de Aragão Seia, p. 56  e Henrique Mesquita, in RDES, 23º-102. 
[6] Como resulta dos arts. 38 e 39 da contestação, e foi dado por assente sob o n.º 15, a recusa isolada dos Requeridos é apenas uma forma de pressionar a Requerente, construtora e vendedora do prédio,  a instalar energia trifásica  e a corrigir pretensos vícios construtivos na fracção “O” adquirida.
[7] Cfr., a este respeito, Processos Especiais, vol. 2º, p. 459, de Alberto dos Reis.  Sobre a enunciação de alguns casos em que ali substantiva admite o suprimento do consentimento, com fundamento em recusa injustificada, veja-se Código de Processo Civil Anotado, de Abílio Neto, em anotação ao art. 1425º.