Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/05 1IDGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VILA NOVA DE FOZ COA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 103º E 105º DO RGIT
Sumário: O crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não haja entrega da declaração tributária.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal da Relação de Coimbra –
I –
1- No processo comum 24/05 do tribunal de Vila Nova de Foz Côa, J... foi absolvido dos crimes de fraude fiscal e de abuso de confiança fiscal, crimes estes previstos nos art.ºs 103º e 105º do RGIT.
2- Perante a absolvição do arguido quanto ao crime de abuso de confiança fiscal, o Ministério Público recorre concluindo –
1) A sentença padece do vício enunciado na alínea b) do art.º 410° [n.º2] do Código de Processo Penal,
2) Existindo entre os factos provados e a decisão uma contradição insanável, fruto de erro notório na interpretação do art. 105° do RGIT;
3) Pois à luz dos factos provados deveria o arguido ser condenado pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, preenchidos que estão todos os elementos do tipo.
4) Da mesma forma, ressalta uma contradição na fundamentação de direito,
5) Pois, por um lado, o tribunal admite que: "A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração. Quando a não entrega da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal. O mesmo não se poderá dizer quando a existência da divida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva. Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem ser valoradas criminalmente de forma diferente."
6) Por outro, acaba por concluir que: "Assim, a vontade inequívoca do legislador, que encontra apoio na letra e no espírito da actual alínea b) do n.º4 do artigo 105°do RGIT, é a de só criminalizar e punir como crime de abuso de confiança fiscal a pessoa que tendo comunicado à Administração Fiscal a prestação deduzida não procedeu ao seu pagamento (…) no prazo de 30 dias após a notificação que para o efeito a Administração Fiscal lhe fez.”
7) Ora não se compreende que o tribunal reconheça que o comportamento de quem nem sequer chega a declarar o facto sujeito a imposto é muito mais censurável do que o comportamento que quem entrega a declaração devida mas por qualquer motivo não liquida o imposto, fazendo até notar que o legislador quis "dar mais uma oportunidade às pessoas que comunicaram a prestação tributária à Administração Fiscal mas não fizeram a entrega (…)”.
8) Dito de outra forma, seguindo a óptica do julgador, quem não entregou a declaração e omitiu o pagamento do imposto sai beneficiado uma vez que segundo a interpretação feita na sentença o legislador não quis ver perseguido criminalmente quem não entregou a declaração e por isso não é notificado para proceder ao pagamento do imposto.
9) Ora não se pode deixar de notar que a posição adoptada é um claro convite à não entrega declaração da prestação tributária.
10) Pois cabe perguntar que de serve declarar os rendimentos sujeitos a imposto se "só quem comunica à Administração Fiscal a declaração da prestação deduzida e não entregue e não procedeu ao seu pagamento" é passível de ser perseguido pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal?
11) Nada mais injusto e violador do espírito e letra da lei, uma vez que da posição adoptada decorre que quem pratica acto menos grave acaba por ser mais severamente punido.
12) O que nos parece é que a obrigação que recai sobre a administração fiscal de diligenciar no sentido de dar cumprimento ao disposto no art. 105°/4 alínea b) do RGIT apenas é exigida pelo legislador quando o contribuinte declarou o facto sujeito a tributação e não quando o mesmo não chegou sequer a declarar a dívida.
13) É nesta medida que o legislador quis "dar mais uma oportunidade às pessoas que comunicaram a declarado de prestado tributária à Administração Fiscal mas não fizeram a entrega para regularizarem a sua situação fiscal pagando a dívida acrescida de juros e coima";
14) E nessa medida o legislador quis ver punidas de forma diferente duas situações de omissão dos deveres fiscais em virtude das mesmas revestirem gravidade dissemelhante e não, como se decidiu, de apenas criminalizar a conduta de quem declarou o facto sujeito a imposto.
15) Da interpretação do tribunal resulta uma punição mais severa de quem até cumpriu a obrigação declarativa e a total impunidade de quem nem sequer declarou o rendimento.
16) O tribunal violou o art.º 105/ 1 a 4 do RGIT.
3- O arguido não respondeu e nesta instância de recurso o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto apôs «visto» nos autos.
4- Colheram-se os vistos dos Ex.mos Desembargadores que participam na Conferência. Cumpre agora apreciar e decidir!
II –
1-Decisão de facto inserta na sentença –
a) Factos provados
a) O arguido J…, encontra-­se colectado na área de serviço de finanças desta cidade, em IRS e IVA, no regime normal de periodicidade trimestral, pelo exercício da actividade de "comércio por grosso de electrodomésticos, aparelhos de rádio e televisão",
b) O arguido iniciou esta actividade em 1998, efectuando transacções comerciais, adquirindo e vendendo bens, emitindo facturas e demais documentos fiscalmente relevantes.
c) No período compreendido entre os anos de 2002 a 2004, o arguido exerceu de modo continuado e sem interrupções a actividade mencionada em a).
d) Não obstante, no período referido em c), o arguido omitiu qualquer expressão contabilística de tal actividade.
e) Concretamente, em sede de IRS, o arguido não entregou qualquer declaração do modelo 3, de rendimentos das categorias B/C, bem como as declarações anuais para os exercícios de 2002, 2003 e 2004.
f) Omitindo dessa forma os proveitos resultantes dos rendimentos obtidos através do desempenho da sua actividade profissional.
g) Com tal conduta logrando obter uma vantagem patrimonial de € 290,12 (2002), € 4775,06 (2003) e € 2281,15 (2004), ou seja, o valor global de € 7.346,33.
h) Por sua vez, em sede de IVA, o arguido não enviou à administração tributária qualquer declaração periódica de IVA, relativa aos exercícios de 2002, 2003 e 2004.
i) Ocultando, assim, valores que deviam ser revelados à administração tributária e não pagando o imposto devido.
j) Com tal conduta logrando obter uma vantagem patrimonial equivalente ao imposto recebido e não entregue, no montante de € 6.403,78.
1) O arguido estava ciente que ocultava valores que deveriam ser revelados à administração fiscal e que se apropriava de valores que não lhe pertenciam e que deviam ser entregues ao Estado, actuando com o propósito de obter uma vantagem patrimonial, à custa do não pagamento dos impostos ao Estado.
m) O arguido é casado e não tem filhos.
n) Exerce a actividade de comerciante e aufere entre € 500 a € 700 por mês.
o) A esposa é auxiliar da acção educativa e aufere a quantia mensal de € 400 a €500.
p) Paga empréstimo bancário no valor mensal de € 375.
q) Vive em casa arrendada pelo valor mensal de € 275.
r) Não tem antecedentes criminais.
b) Factos não provados
Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa.
c) Fundamentação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta dos documentos juntos aos autos (fls. 77 a 148), do depoimento da testemunha C... (isento, espontâneo e com conhecimento directo dos factos) e das declarações prestadas em audiência de julgamento pelo arguido, o qual confessou integralmente e sem reservas os factos por que vinha acusado, mostrando-se colaborador com a justiça.
Os factos referentes às condições pessoais e económicas do arguido ficaram igualmente provados com base nas suas declarações, que nos pareceram genuínas.
O disposto quanto aos antecedentes criminais do arguido resulta do teor do CRC junto aos autos, a fls. 210.
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2- Está tão só em causa saber se configura ou não o crime de abuso de confiança fiscal previsto no art.º 105º do RGIT a situação em que o agente nem apresenta a declaração fiscal referente à prestação em falta nem a paga.
3- Apreciação –
3.1- Começaremos por dizer que o recorrente faz inapropriado apelo ao vício da contradição insanável constante do art.º 410º/2 alínea b) do Código de Processo Penal.
O vício, tal como os restantes elencados no nº2 do art.º410º/2 do CPP, reporta-se à decisão de facto e não à decisão de direito e sua fundamentação.
Quando ocorre errada aplicação do direito aos factos provados, o que se verifica não é o indicado vício [que a verificar-se conduzirá à anulação da sentença] mas um erro de direito que conduz à sua revogação.
A revogabilidade mediante recurso é o valor jurídico da sentença injusta ou ilegal que haja decidido contra direito.
3.2- Tal como o recorrente, não podemos concordar com o raciocínio expendido na fundamentação jurídica da sentença segundo o qual só haveria crime de abuso de confiança fiscal nas situações em que o agente entrega a declaração tributária mas [dolosamente] não paga a prestação devida.
Ora, a nosso ver e do recorrente, o crime ocorre quer haja ou quer não haja a entrega da declaração tributária. A entrega da declaração é uma obrigação acessória à obrigação da entrega do imposto que não interfere com o preenchimento do tipo legal.
Os elementos do tipo constam do n.º1 do art.º 105º do RGIT, a saber, a [dolosa] não entrega [total ou parcial] da prestação que for legalmente devida à Administração tributária.
Os n.ºs 2 e 3 do artigo reportam-se a exemplificações do que deva ter-se por «prestação tributária»; o n.º 4 reporta-se a condições de procedibilidade e de punibilidade; o n.º 5 à forma qualificada do tipo; o n.º6 foi revogado pela Lei 64-A/2008 de 31/12; e o n.º 7 reporta-se aos valores a considerar no cometimento do crime.
Sob o ponto de vista dogmático/jurídico, o crime de abuso de confiança fiscal configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico revisto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para o cumprimento da obrigação tributária, por força do n.º2 do art.º 5º do RGIT.
O crime tem como pressuposto a existência de uma prestação tributária deduzida e a que o agente está legalmente obrigado a entregar ou que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a entregar, caindo fora da esfera da norma incriminadora as situações em que a não entrega da prestação tributária se deve à sua não dedução, não liquidação ou ao seu não recebimento por parte do agente.
É um crime doloso, dividindo-se a doutrina entre aqueles que consideram ser necessária a existência de um dolo específico e aqueles que entendem que o dolo se afere nos termos gerais do art.º 14º do Código Penal, sendo esta a posição que melhor se coaduna com o texto do art.º 105º do RGIT.
No que concerne ao bem jurídico protegido, o crime de abuso de confiança fiscal tem por fundamento a protecção do património do Estado, mediante a tutela e protecção criminal da obrigação da entrega das quantias que foram confiadas ao agente para que este as entregasse nos Cofres do Estado.
Julgamos que terá de existir necessariamente essa investidura, tornando-se aquele sobre quem recai o dever de entrega uma espécie de fiel depositário de imposto pago por terceiros.
O cumprimento da obrigação declarativa acessória à obrigação da entrega do imposto apenas interfere com a possibilidade da regularização tributária nos termos da alínea b) do n.º4 [do artigo 105º do RGIT].
Ocorrendo tal regularização o crime não será punível. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, II, 38/39] a punibilidade não é característica geral do crime mas sua consequência, embora não haja crime que não seja um facto punível.
Em síntese, o crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não haja entrega da declaração tributária.
3.3- Só que entretanto, ou seja, posteriormente à interposição do recurso, foi publicada e entrou em vigor da Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2009 (Lei n.º 64-A/2008 de 31/12] onde foram descriminalizadas as não entregas de prestações de valor não superior a €7.500.
E como nenhuma das prestações em falta atinge este valor, por outra via não poderá dar-se provimento ao recurso. Efectivamente, terá de aplicar-se a lei mais favorável ao arguido, por força da estatuição do art.º 2º/4 do Código Penal.
III –
Decisão –
Termos em que por razões diversas das indicadas na sentença se não dá provimento ao recurso.
Sem custas
Coimbra,