Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
38/19.4GANLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: MAUS TRATOS A ANIMAIS DE COMPANHIA
CONCEITO DE ANIMAL DE COMPANHIA
Data do Acordão: 04/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - NELAS - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 387.º E 389.º DO CP
Sumário:
I – O conceito de animal de companhia engloba qualquer animal, independentemente da espécie e independentemente de viver ou não no “lar” do seu detentor.
II – O animal pode ser detido para entretenimento e companhia vivendo no lar do seu detentor ou em qualquer outro espaço, como sucede com muitos animais de companhia, nomeadamente os detidos por pessoas sem abrigo e por muitas pessoas que habitam zonas rurais.
III – A alusão do artigo 389.º do CP a animal detido abrange qualquer espécie de animal na posse do homem com a finalidade de lhe proporcionar companhia e entretenimento, enquanto que a referência a animal destinado a ser detido tem como campo de aplicação todos os animais cujo destino normal de vida é virem a desempenhar a função social de proporcionarem companhia e entretimento ao homem, ou seja, os animais de companhia que não estão a ser detidos por ninguém.
IV – São animais de companhia por natureza as espécies de animais histórico-culturalmente tidas como tal, de que são exemplo paradigmático os cães e os gatos, enquadrando-se os cães e os gatos vadios no âmbito dos animais destinados a ser detidos pelo homem.
V – Integra o conceito de animal de companhia uma cadela, independentemente de a acusação não o ter mencionado expressamente, ou de não ter densificado esse conceito, posto que os cães são, por norma, animais de companhia destinados a desempenhar essa função. Só excepcionalmente o não serão; em tais circunstâncias, o diverso destino do animal, excluindo-o do âmbito de protecção da norma penal, funcionará como causa de exclusão de ilicitude, o que tem como consequência que identificada na acusação uma espécie de animal que é por natureza um animal de companhia, é desnecessária a factualização que corresponde a esse estado ou destino. A necessidade de tal procedimento será, no entanto, incontornável, relativamente a animais que, não tendo histórico-culturalmente tal função ou destino, todavia a ela sejam pontualmente adstritos.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo comum (tribunal singular) supra referenciados, que correram termos pelo Juízo de Competência Genérica de Nelas, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência foi proferida sentença em que se decidiu absolver o arguido AA, com os demais sinais dos autos, da autoria do crime de maus tratos a animais de companhia, p.p. pelo art. 387º, nºs 1 e 2 do Código Penal.

           

Inconformado, recorre o Ministério Publico, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

A. A sentença aqui em crise fundamenta a absolvição do arguido na circunstância de a matéria de facto não permitir concluir que a cadela que foi morta por acção do arguido era um animal votado ao seu entretenimento e companhia.

B. Não podemos estar mais em desacordo.

C. O n.º 1 do artigo 387.º, n.º 1, do Código Penal, punia (na redacção em vigor à data dos factos) “quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”, consagrando-se no n.º 2 do mesmo um crime agravado pelo resultado, sempre que dos maus-tratos previstos no n.º 1 resultasse a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afectação grave e permanente da sua capacidade de locomoção.

D. Encontrando-se no o n.º 1 do artigo 389.º, do Código Penal o conceito de “animal de companhia”.

E. Esta norma distinguia animais “detidos” de animais “destinados a ser detidos” pelo ser humano.

F. Os animais de companhia “destinados a ser detidos” pelo ser humano serão, fundamentalmente, aqueles que são os animais de companhia “por natureza” (animais cujo destino normal é virem a desempenhar a função de proporcionarem companhia e entretenimento ao Homem), conceito onde se inclui, pelo menos, seguramente, cães e gatos, ainda que vadios ou errantes (portanto, não detidos por ninguém), atendendo ao factor histórico-cultural que nos demonstra que estes são os animais, companheiros do Homem, por excelência, há já vários milénios.

G. Conforme se refere no Parecer do Conselho Superior do Ministério Público sobre os Projectos de Lei n.ºs 164/XIII (PS) 171/XIII e 173/XIII (PAN), os cães e gatos são os únicos animais susceptíveis de abrangência total da protecção penal, desde logo porque, ao contrário da generalidade das outras espécies, não terão como destino possível a alimentação humana.

H. Pelo que, salvo melhor opinião, a mais correcta interpretação da referida norma passa por considerar que, mesmo quando os cães e gatos não estão afectos em concreto ao “entretenimento” e “companhia” do ser humano, encontram-se abrangidos pela protecção da norma, uma vez que poderão sempre ser considerados como destinados a esses fins, ainda que não o sejam.

I. Por outro lado, considera-se que no conceito de animal de companhia “detido” pelo ser humano cabe, para além dos já referidos animais de companhia “por natureza”, os animais que, em concreto, se encontrem sob a alçada do Homem, “designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”, sendo certo que este último segmento da norma se encontra fundamentalmente dirigido, atendendo aos argumentos supra referidos, para os animais que socio-culturalmente não são entendidos como animais de companhia, mas que o Homem decidiu deter com o objectivo de lhe proporcionar entretenimento e companhia.

J. Dúvidas não existem que o animal dos presentes autos era uma animal de companhia, nos termos estabelecidos no artigo 387.º, por referência ao artigo 389.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

K. De facto, tratava-se de um animal canídeo, ou seja, um animal de companhia “por natureza”, pelo que mesmo que não se tivesse provado que estava aos cuidados do arguido – o que não aconteceu -, ao se ter provado o acto do arguido sobre o animal, sempre estaríamos perante a prática do crime em apreço.

L. Sucede que, resultou da prova produzida, que o animal era detido pelo arguido, encontrando-se aos seus cuidados, por lhe ter sido dado pelo casal BB e CC, testemunhas nestes autos.

M. Portanto, tratando-se de um cão – animal de companhia “por natureza” -, detido pelo arguido, teria o arguido que ser condenado pelo crime de que vinha acusado.

N. Não sendo, para esse efeito, necessário, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, que resulte da factualidade provada que o animal se destinava à companhia e entretenimento do arguido.

O. Uma vez que estamos perante um cão – animal cuja função social é fazer companhia ao Homem – e não um outro animal que à priori não é de “companhia”, mas que o Homem decide detê-lo como tal…

P. Ao absolver o arguido, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 387.º, n.º 1 e 2 e 389.º, n.º 1 do Código Penal.

Q. Pelo que deve a sentença proferida ser substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de Maus Tratos a Animais de Companhia, p. e p. pelo artigo 387.º, n.º 1 e 2, por referência ao artigo 389.º, n.º 1, ambos do Código Penal, com a redação vigente à data dos factos (por a lei nova não se mostrar mais favorável ao arguido – artigo 2.º, n.º 1 e 4.º, 1.ª parte Código de Processo Penal).

Nestes termos, (…) deverá a douta decisão ser revogada e substituída por uma outra que condene o arguido nos termos aduzidos, com todas as legais consequências (…).

O arguido não respondeu.

Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pela procedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente importa apenas averiguar se o animal que o arguido deliberadamente matou era um animal de companhia; e em caso afirmativo, verificando-se a tipicidade do crime imputado ao arguido, haverá que proferir decisão condenatória em conformidade.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

           1. Em data não concretamente apurada, mas posterior a fevereiro de 2019 e anterior a 10 de abril do mesmo ano, o arguido AA, amarrou uma corda que tinha uma pedra numa das pontas ao pescoço da cadela de nome “Princesa”, registada com o chip (….), de que era possuidor.

           2. Seguidamente, atirou a aludida cadela para um poço de água, sito na Rua do (…), em (…), abandonando-a.

           3. Em consequência dos factos descritos, a cadela veio a falecer.

           4. O arguido ciente da sua conduta quis e conseguiu molestar o animal vivo e consciente, infligindo-lhe dor e sofrimento.

           5. O arguido ao manietar a cadela, pelo pescoço com uma corda presa com uma pedra e atirá-la, nessas circunstâncias para um poço de água, sabia e quis provocar dor e sofrimento e, nessa sequência, a morte do animal, como se verificou.

           6. O arguido sabia que, sendo sua cadela, se tratava de um animal indefeso, carecido de alimentação, conforto e cuidados veterinários, ainda assim, quis e conseguiu agir do modo descrito, ciente de que com a sua conduta lhe provocava sofrimento e, em consequência, a sua morte.

          7. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal como crime e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

           8. O arguido vive em união de facto com DD, em casa arrendada, pagando a renda mensal de €100,00; a referida DD aufere rendimento social de inserção no valor mensal de €292,00; o arguido é calceteiro, encontra-se desempregado e possui o 4.º ano de escolaridade; o casal beneficia da ajuda do Lar de (…), que lhe fornece gratuitamente o almoço.

           9. O arguido não tem registada qualquer condenação por factos ilícitos criminais (CRC de fls. 147, de 03.09.2021).


           Foi consignado na sentença recorrida inexistirem factos não provados com relevo para a decisão

            O julgamento de facto foi fundamentado nos seguintes termos:
(…).


*

            Vejamos então as questões suscitadas no recurso:

           Estava o arguido acusado pela autoria material de um crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo art. 387.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na versão da Lei nº 69/2014, de 29 de agosto, em vigor à data da prática dos factos.

            O crime encontra-se tipificado no nº 1 do art. 387º, prevendo o nº 2 a agravação em função do resultado da conduta. O respectivo teor é o seguinte:

           1 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

           2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

            Estes normativos são complementados pelo art. 389º do Código Penal, que estabelece o conceito de animal de companhia, estatuindo assim:

           1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.

           2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.

         O tribunal a quo, em singela argumentação, questionou a circunstância de a cadela que o arguido matou dever considerar-se um animal de companhia, tendo concluído que a matéria de facto não permite extrair tal conclusão e que a circunstância de aquele animal estar registada com um chip não permite, só por si, a sua integração naquele conceito, por o nº 3 do art. 389º, dispondo que são igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância, apenas ter sido introduzido por lei ulterior (Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto) que, diz, veio alargar o conceito de animal de companhia, não sendo assim aplicável ao caso dos autos.

            Afigura-se-nos, porém, que a restritiva tese perfilhada na decisão sob recurso não corresponde à melhor interpretação do preceito aplicável, como procuraremos demonstrar.

           É certo que se algum consenso doutrinal ou jurisprudencial se formou em torno do teor do art. 387º do Código Penal é o que coincide no entendimento de que o tipo de crime em apreço apresenta deficiências estruturais, a exigir redobrada atenção por parte do intérprete. De todo o modo, deixaremos de lado, pelo menos por agora, as múltiplas questões suscitadas pela formulação deste tipo legal de crime para nos cingirmos ao cerne da questão interpretativa que conduziu à absolvição, qual seja, a determinação do âmbito de aplicação do preceito no que tange ao seu objecto.

            Assim, relativamente aos animais em geral, a Lei nº 92/95, de 12 de Setembro (lei de protecção aos animais) previa no nº 1 do seu artigo 1º que são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal, norma que foi depois incluída no art. 7º, nº 3, da Lei nº 276/2001, com supressão do termo injustificadas, ficando aí  consignado que são proibidas todas as violências contra animais, considerando-se como tais os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões a um animal.

           Esta norma deixava já antever a futura criminalização dos maus tratos contra animais que, no entanto, se veio a restringir aos animais de companhia. Com efeito, visto o teor da norma na formulação contemporânea da prática dos factos, não oferece dúvida que a tutela gizada no art. 387º do Código Penal tem em vista apenas os animais de companhia, por expressa opção do legislador vertida no respectivo texto.

           Independentemente do método interpretativo perfilhado e da prevalência que se atribua a qualquer dos seus vectores, não há como fugir ao argumento literal, posto que a letra da lei se impõe ao intérprete como limite da actividade interpretativa, recaindo sobre ele a tarefa de procurar no texto legal a melhor interpretação consentida pela harmonia do sistema; sem que se esqueça, no entanto, que a captação da função atribuída à norma na harmonia do sistema pressupõe que a par da letra da lei se atenda à mens legislatoris, ou seja ao intuito que presidiu à formulação da norma, bem como à história do preceito.

           O cometimento do crime pressupõe, pois, que o agente inflija dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia, definido este no nº 1 do art. 389º como qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.

            Esta definição de animais de companhia tem a sua origem remota no Decreto nº 13/93, de 13 de Abril, que aprovou, para ratificação, a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia. Segundo o art. 1º, nº 1, da referida Convenção, entende-se por animal de companhia qualquer animal possuído ou destinado a ser possuído pelo homem, designadamente em sua casa, para seu entretenimento e enquanto companhia, prevendo o art. 2º, nº 1, a sua aplicação e execução

            (…)

           a) Aos animais de companhia possuídos por uma pessoa singular ou colectiva em qualquer lar, em qualquer estabelecimento que se dedique ao comércio ou à criação e manutenção a título comercial desses animais, bem como em qualquer abrigo para animais;

            b) Se for o caso, aos animais vadios;

            (…)

           O DL nº 276/2001, de 17 de Outubro, que estabeleceu as normas legais tendentes a pôr em aplicação em Portugal a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia e um regime especial para a detenção de animais potencialmente perigosos, manteve praticamente inalterada a definição de animais de companhia, ao estabelecer que para efeitos daquele diploma se entende por «Animal de companhia» qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia; [cfr. o respectivo artigo 2º, nº 1, al. a)].

           Segundo as palavras de Maria da Conceição Válega, que acompanhamos integralmente, este conceito de animal de companhia é um conceito amplo que engloba qualquer animal, independentemente da espécie e independentemente de viver ou não no “lar” do seu detentor, o que se retira da utilização do advérbio “designadamente” que antecede a expressão “no seu lar”. O animal pode ser detido para entretenimento e companhia vivendo no lar do seu detentor ou em qualquer outro espaço, como acontece com muitos animais de companhia, nomeadamente os detidos por pessoas sem abrigo e por muitas pessoas que habitam em zonas rurais [1]. Refere a mesma autora que a menção do art. 389º a animal detido abrange qualquer espécie de animal detido pelo homem com a finalidade de lhe proporcionar companhia e entretenimento, enquanto que a referência a animal destinado a ser detido tem como campo de aplicação todos os animais cujo destino normal de vida é virem a desempenhar a função social de proporcionarem companhia e entretenimento ao homem, ou seja, os animais de companhia por natureza que não estão a ser detidos por ninguém,[2] mencionando ainda, citando Pedro Delgado Alves [3], que são animais de companhia por natureza as espécies de animais histórico-culturalmente tidas como tal, de que são exemplo paradigmático os cães e os gatos, enquadrando-se os cães e os gatos vadios no âmbito dos animais destinados a ser detidos pelo homem. Acrescentaremos nós que normalmente os cães e gatos vadios se encontrarão nessa situação apenas porque fugiram dos seus donos, porque se perderam ou porque foram deliberadamente abandonados, circunstâncias que não excluem a tutela proporcionada pela norma penal. São animais destinados a ser animais de companhia que, por razões fortuitas, não cumprem essa função.

           Posto isto, não vemos como excluir do conceito de animal de companhia a cadela a que se reportam os autos, independentemente de a acusação não o ter mencionado expressamente, ou de não ter densificado esse conceito, posto que aceitamos que os cães são, por norma, animais de companhia ou animais destinados a desempenhar essa função. Só excepcionalissimamente o não serão; e em tais circunstâncias, o diverso destino do animal, excluindo-o do âmbito de protecção da norma penal, funcionará como causa de exclusão de ilicitude, o que tem como consequência que identificada na acusação uma espécie de animal que é por natureza um animal de companhia, é desnecessária a factualização que corresponde a esse estado ou destino. A necessidade de tal procedimento será, no entanto, incontornável, relativamente a animais que, não tendo histórico-culturalmente tal função ou destino, todavia a ela sejam pontualmente adstritos.

           Segue-se, consequentemente, que a absolvição decretada não poderá prevalecer, uma vez que se provou que o arguido deliberadamente causou a morte a um animal de companhia, havendo assim que proceder ao seu sancionamento por se evidenciar a autoria material de um crime agravado de maus tratos a animal de companhia, p. p. pelo art. 387º, nºs 1 e 2, por referência ao nº 1 do art. 389º, todos do Código Penal, na versão da Lei nº 69/2014, de 29 de Agosto.

           Está em causa um crime de resultado, de natureza necessariamente dolosa, cuja moldura penal é a de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.

           Segundo o art. 70º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

           Constitui esta norma um afloramento do pendor assumidamente humanista do Código Penal, consagrando uma solução que tem como referência predominante os valores da liberdade responsável e da responsabilidade social, individual e colectiva, procurando dar execução aos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação das reacções penais. A referência às finalidades da punição remete para o art. 40º, nº 1, em cujos termos a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

          Na esteira do ensinamento de Figueiredo Dias, acentuando que “são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação” [4], a jurisprudência dos tribunais superiores vem apontando a necessidade de proceder à escolha da pena com base em considerações de prevenção especial de ressocialização e de prevenção geral sob a forma de satisfação do «sentimento jurídico da comunidade».

           Com utilidade para a ponderação das exigências preventivas visando a escolha da pena, a matéria de facto revela a inexistência de antecedentes criminais averbados no Certificado de Registo Criminal do arguido, retirando-se desse CRC que contaria com 59 anos de idade à data da prática dos factos, circunstância que se reflecte no juízo de prevenção positiva de ressocialização. Quanto ao mais, e visto a pena de prisão ser uma pena de ultima ratio, o juízo global que os factos possibilitam, apesar da sua gravidade, justifica a opção pela pena não detentiva.

           A moldura penal a considerar tem o mínimo legal de 10 dias, previsto no art. 47º, nº 1, do Código Penal, e um máximo de 240 dias.

           A concretização da pena far-se-á em função da culpa e das exigências de prevenção, atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a favor do agente ou contra ele, ponderando, nomeadamente, as exemplificadas nas alíneas a) a f) do nº 2 do art. 71º.

            A culpa consiste essencialmente num juízo de censura dum facto típico por referência à pessoa do seu agente; juízo de censura por o agente não ter actuado de forma diversa, podendo e devendo tê-lo feito, donde resulta ser este conceito integrado pela imputabilidade, pelo nexo de imputação (a título de dolo ou de negligência) e pela exigibilidade (… de um comportamento diverso). Cabe-lhe, segundo a previsão legal e os ensinamentos da jurisprudência, a função de determinar o limite intransponível da pena.

           A prevenção geral, que tem como destinatários todos os membros da comunidade jurídica (excluído o arguido, objecto da prevenção especial),  na sua vertente de prevenção geral positiva, permite a determinação do limite mínimo da pena admissível para o caso concreto, por a garantia da manutenção da confiança da comunidade na validade da norma e a dissuasão de potenciais infractores exigirem um mínimo de punição, variável em função do contexto e do momento histórico, capaz de satisfazer aquela dupla função.

           A prevenção especial, por seu turno, acumula uma função de ressocialização do delinquente a uma outra, de dissuasão da prática de futuros crimes. Intervém na graduação da pena funcionando entre o mínimo reclamado pelas exigências de prevenção geral e o máximo consentido pela culpa (cfr. arts. 40º, nº 2 e 71º, nº 1), como factor de determinação do quantum de pena necessário à ressocialização (entendida como adesão do agente aos valores comunitariamente postergados) e à prevenção da reincidência (que se atinge através duma pena doseada em moldes de representar um sacrifício de tal forma penoso que o agente não quererá repetir).

            Olhando para o caso concreto à luz destas considerações é-nos dado verificar que o arguido agiu com dolo, na modalidade de dolo directo, posto que actuou com a intenção de realizar o facto que se propôs. Ao atirar a cadela que lhe tinha sido confiada para dentro de um poço com uma pedra atada ao pescoço quis certificar-se de que o canídeo não sobreviveria aos seus esforços para o matar, evidenciando a sua actuação um dolo intenso. Agiu traindo a confiança em si depositada pelas pessoas que lhe confiaram a cadela, sendo o seu procedimento passível de um elevado juízo de censura porquanto provocou o resultado típico previsto na norma servindo-se de um meio apto a causar grande aflição e sofrimento ao animal de que se quis desfazer, revelando crueldade e total insensibilidade ao previsível sofrimento do animal. Uma culpa moldada por esta forma admite uma pena com um máximo que se pode aproximar dos 2/3 da moldura penal.

           O número de participações que vêm sendo registadas pelas autoridades policiais, com eco, aliás, no progressivo aumento de processos por crimes praticados contra animais pendentes em tribunal, evidencia fortes exigências de prevenção geral, a reclamarem uma pena que não se deverá situar abaixo dos 2/5 da moldura prevista.

           A ausência de antecedentes criminais mitiga as exigências de prevenção especial que, ainda assim, reclama uma sanção capaz de dissuadir o agente da prática de novos crimes promovendo simultaneamente a sua ressocialização, finalidades a obter através da fixação da pena entre os limites postulados pela culpa e pela prevenção geral numa medida que seja apta a fazê-lo compreender o significado negativo da sua conduta (função ressocializadora) e a demovê-lo da prática de novos ilícitos (função de dissuasão).

           Vistos todos os elementos resultantes do provado, afigura-se como ajustada uma pena concretizada em 140 (cento e quarenta) dias de multa.

            O quantitativo diário da multa é fixado entre € 5,00 e € 500,00, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, conforme prevê o nº 2 do art. 47º do Código Penal. A amplitude estabelecida no preceito visa eliminar ou, pelo menos, esbater, as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre arguidos possuidores de diferentes meios de a solver, realizando assim o princípio da igualdade de ónus e de sacrifícios. O montante a fixar não deverá, no entanto, esvaziar a noção de pena, que enquanto censura social de um comportamento desconforme com o pressuposto pela ordem jurídica há-de implicar necessariamente um sacrifício para o condenado de modo a fazê-lo sentir o juízo de censura correspondente à função preventiva da pena.

           Ponderada a situação económica apurada nos autos, mostra-se ajustado o montante diário de € 6,00 (seis euros), fixando-se assim o montante global da multa em €840,00 (oitocentos e quarenta euros).

            Importa ainda considerar a aplicação de pena acessória, atento o disposto no art. 388º-A do Código Penal.

           O ilícito cometido assumiu considerável gravidade, sendo elevada, como vimos, a culpa do arguido. Vistos todos os demais elementos que intervêm na determinação da pena, tal como foram referidos a propósito da determinação da pena principal e ponderado o teor do art. 388º-A, justifica-se a aplicação de uma pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período de 4 (quatro) anos.

            Em matéria de taxa de justiça é aplicável o disposto na primeira parte do nº 1 do art. 513º do CPP, posto que havendo absolvição do arguido em 1ª instância e decidindo-se o tribunal de recurso pela condenação, este substitui-se ao tribunal de 1ª instância na aplicação de todas as normas que ao caso cabem, incluindo as normas relativas à tributação processual.

 

III – DISPOSITIVO:

           Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público. Consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e condena-se o arguido AA, como autor material de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. p. pelo art. 387º, nºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), num total de €840,00 (oitocentos e quarenta euros).

           Impõe-se ainda ao arguido a pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período de 4 (quatro) anos.

            Condena-se o arguido na taxa de justiça de 3 UC (três unidades de conta), nos termos suprarreferidos.

                                                                       *

           Após baixa dos autos à 1ª instância deverão ser remetidos os pertinentes boletins ao Registo Criminal.

            Coimbra, 20 de Abril de 2022

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (relator)

Maria Pilar Oliveira (adjunta)

Alberto Mira [presidente da 5.ª secção (criminal)]


[1] Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 7 (2021), nº 2, págs. 1151 ss.
[2] Idem.
[3] in Desenvolvimentos recentes da legislação sobre animais em Portugal: uma breve crónica legislativa.
[4]- Figueiredo Dias, “Direito Penal Português”, pág. 331