Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
343/05.9GAFCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 02/20/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 429.º, DO CÓD. COMERCIAL DL N.º 522/85 DE 31/12
Sumário: 1. Existe ofensa do princípio “ne bis in idem” quanto à contra-ordenação prevista no art. 81.º, n.º 1, 2 e 5, al. b), do Código da Estrada, relativamente à qual foi condenado o arguido em processo administrativo e quanto à contra-ordenação prevista no art. 25.º, n.º 1, al. c) e f), do mesmo diploma pela qual foi condenado por crime de homicídio negligente .
2. No âmbito do seguro obrigatório, não pode a seguradora desonerar-se para com o lesado, invocando uma mera anulabilidade que não esteja directamente prevista no DL n.º 522/85 de 31/12, nomeadamente não lhe podendo opor qualquer anulabilidade prevenida em outra lei, geral ou especial, designadamente a anulabilidade prevista no art. 429.º, do Cód. Comercial.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

No processo supra identificado, em que é arguido F.., o tribunal decidiu:
Quanto à acusação:
a) Absolver o arguido da prática de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 2, do Código Penal.
b) Condenar o arguido, como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal (por referência às contra-ordenações p. e p. pelos art. 25.º, n.º 1, al. c) e f) e 81.º n.º 5, al. b) do Código da Estrada), na pena de 12 (doze) meses de prisão.
c) Suspender a pena aplicada, ao abrigo do disposto no art. 50.º, n.º 1, do Código Penal, pelo período de dois anos.
d) Condenar o arguido, como autor material da contra-ordenação p. e p. pelo art. 25.º, n.º 1, als. c) e f) do Código da Estrada, na coima de € 150 (cento e cinquenta euros), e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de quatro meses.
e) Condenar o arguido como autor material da contra-ordenação p. e p. pelo art. 81.º, n.º 5, al. b) do Código da Estrada, na coima de € 500 (quinhentos euros), e inibição de conduzir pelo período de dez meses.
f) Condenar o arguido, em cúmulo, das coimas e sanções acessórias de inibição de conduzir constantes das alíneas D) e E), na coima única de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros), e na sanção acessória única de inibição de conduzir de 12 (doze) meses.
g) Julgar parcialmente procedente o pedido indemnizatório deduzido pelos demandantes E….., T…. e L…., condenando a demandada “Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.”, a pagar aos demandantes, a título de danos patrimoniais a quantia de € 300.000,00 e a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 115.000,00, tudo no montante global de € 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil euros), quantia acrescida de juros legais, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
h) Absolver a “Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.” do pedido de reembolso contra si formulado pelo CDSS da Guarda.
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Da sentença recorreram o arguido, restringindo a sua pretensão à sua absolvição relativamente à contra-ordenação por condução sob a influência do álcool e à redução da pena e da sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir e a demanda Companhia de Seguros Tranquilidade, SA, pugnando pela declaração de nulidade do contrato de seguro ou a manter-se válido o mesmo pela redução da indemnização relativamente ao dano patrimonial.
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O arguido formulou as seguintes conclusões:
I - Concluímos, pelas exposições feitas nos artigos 5.º a 7.º, padecer a Douta Sentença recorrida do vício a que alude o artigo 410.º, n.º 1 do CPP, isto é, há insuficiência cara a decisão da matéria de facto dada como provada. De facto, o Tribunal "ad quo" deveria ter investigado mais aprofundadamente a matéria de facto relevante que se extrai de toda a matéria vertida em audiência de discussão e julgamento.
Não o tendo feito a decisão proferida não poderá ser aquela decisão justa que deveria ter sido proferida.
II - Face à condenação da contra-ordenação prevista no art. 24.° e 25.° e 81.°, do CE, em processo administrativo n.º 242436587, e à condenação em processo crime das duas contra-ordenações, previstas nos artigos 24.° e 25.° e 81.° do CE, violou-se o Principio Constitucional "Non Bis In Idem".
III - Por outro lado, e face à condenação do arguido como autor material de um crime de homicídio por negligencia, e nas contra-ordenações supra mencionadas, violando o disposto no art. 18.°, n.º 2 da Constituição da Republica Portuguesa, segundo o qual as restrições a direitos liberdades e garantias se limitarão ao "necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".
IV - O arguido deverá ser absolvido das contra-ordenações a que foi condenado, art. 24.°, 25.° e 81.° do CE, e restituído o que pagou a título de processo administrativo contra-ordenacional.
V - Por outro lado, também foi o arguido condenado na sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir, em processo contra-ordenacional no período de 60 dias, que cumpriu, sendo posteriormente condenado em processo crime dos presentes autos, na mesma sanção acessória pelo período de 12 meses.
VI - Ainda assim, consideramos que para efeitos de aplicação do quantum da sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir não adequou, o tribunal "ad quo" verdadeiramente o disposto nos art. 71.° e 72.°, do C.P., tendo em conta o decurso de quase dois anos sobre a data dos factos, a condenação de apenas uma condução sob o efeito do álcool, que se encontra integrado profissionalmente e familiarmente, deveria pena acessória de inibição de conduzir ser mais leve.
VII - Porém, não se entendendo assim, o que por mera cautela de patrocínio se admite, sempre se dirá que o tribunal "ad quo", na fixação do quantum da coima deveria ter em consideração o valor já pago pelo arguido, e na determinação da pena acessória os 60 dias em que foi condenado e que já cumpriu.
VII - Pelo que deve ser alterada a Douta Sentença recorrida nos termos sobreditos, absolvendo o Arguido, ora Recorrente, das contra-ordenações em que fora condenado e na aplicação de uma sanção de inibição de conduzir mais leve».
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A demanda Companhia de Seguros Tranquilidade, SA, formulou as seguintes conclusões:
«1- O arguido não apresentou qualquer prova, documental ou testemunhal, que sustentasse o facto por si alegado de ser o Leopoldino Grácio Rosário, seu pai e tomador do seguro, o proprietário do veículo UF e, em sede de prestação de declarações, afirmou, quanto à propriedade do veículo UF, nada recordar.
2- Não existem nos autos quaisquer elementos probatórios que possam dar como provado que era o Leopoldino o proprietário do veículo UF.
3- A demandada cível alegou um facto e juntou prova documental e testemunhal que a atestasse, pois foi junto com a sua contestação um documento que consubstancia uma declaração do arguido, prestada a um perito nomeado por aquela, onde afirma taxativa e categoricamente ser ele (o arguido) o proprietário do UF.
4- Não só o teor desse documento não foi impugnado como inclusivamente o foi conformado pelo arguido, que aceitou ser dele a assinatura naquele aposta.
5- Na falta de elementos que provem o contrário, deve o documento junto pela demandada cível, que consubstancia as declarações prestadas pelo arguido, ser suficiente para dar como provado que o veículo UF era pertença do arguido e não do seu pai.
6- Existe claro desfasamento entre os elementos constantes do processo e os factos dados como provados; existe erro no julgamento da matéria de facto, o que desde já a demandada cível alega.
7- Com recurso aos elementos probatórios existentes nos autos, nomeadamente as próprias declarações do arguido e o documento de fls... junto com a contestação da demandada cível (declarações prestadas pelo arguido), deve ser dado como provado que o proprietário do UF era o arguido. Por maioria de razão, deve ser dado como não provado que o proprietário do UF era o pai do arguido.
8- A alegada e requerida inversão da matéria dada como provada levará à existência de falsas declarações na elaboração do contrato de seguro.
9- A lei comercial (que é especial em relação à lei civil) é muito clara quanto à consequência jurídica: NULIDADE.
10- Basta o facto que consubstancia a falsa declaração influir sobre as condições do contrato para ser aplicado o instituto da nulidade.
11- É um facto público e notório, até porque se está perante um seguro obrigatório, que a idade do tomador do seguro é essencial ao cálculo do prémio devido; quanto mais novo for o tomador, mais elevado é o risco e mais elevado é também o prémio.
12- Sempre o contrato de seguro em análise seria nulo à luz do art. 428.º do Código Comercial.
13- Resultou provado que era o arguido o condutor habitual do veículo UF e este facto, aliado ao facto que se espera venha a ser dado como provado de ser o arguido o proprietário daquele, permitem uma conclusão cristalina: o Leopoldino, tomador do seguro, não tinha qualquer interesse na coisa segurada, ou seja, no veículo UF.
14- Deve ainda ser dado como provado que o Leopoldino, pai do arguido e tomador do seguro, não tinha qualquer interesse no veículo UF, facto alegado pela demandada cível no art. 11.º da sua contestação.
15- Deve o tribunal "ad quem" suprir essa omissão ao declarar ou dar como provado que o Leopoldino Grácio Rosário não tinha qualquer interesse nem responsabilidade na circulação do veículo UF, ficando, por conseguinte, prejudicado o facto provado sobre o n.º 26.
16- Deverá ser declarada a nulidade do contrato de seguro com base no já citado n.º 1 do art. 428.º do Código Comercial, com a consequente absolvição da demandada cível do pedido.
17- Nesta parte da validade e eficácia do contrato de seguro a douta sentença violou entre outros os art. 428.º e 429.º, ambos do Código Comercial.
18- Face aos recibos de vencimento juntos aos autos, deveria ter sido dado como provado que a vítima auferia a quantia de 739,36 €, o que importaria numa indemnização de 134.954, 76 €, calculada em função dos seguintes parâmetros: idade da vítima (32 anos); limite de vida activa aos 70 anos; salário de 500,00 €; IPP de 100% e taxa de juro de 3%.
19- Se assim se não entender, sempre se dirá que a quantia arbitrada a título de dano patrimonial decorrente da morte da vítima (300.000,00 €) é exagerada e desconforme (felizmente) com a jurisprudência dominante dos tribunais superiores; é que, tendo em atenção os mesmos factores usados acima (com a excepção do salário, que passa para 1.000,00 €), chegamos a uma quantia de 269.909,53 €.
20- Nesta parte, a douta sentença recorrida violou, entre outros, os art. 562.º e ss. do Código Civil».
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O Ministério Público para os efeitos do art. 413.º, do Cód. Proc. Penal, sustenta que os factos provados são o corolário da prova produzida em audiência de julgamento e o enquadramento jurídico-penal dos factos mostra-se adequado, pelo que deve ser negado provimento ao recurso.
A assistente Emília da Conceição Dias Jorge, respondeu ao recurso interposto pela demandada seguradora sustentando que a assistente é terceiro contra quem não pode invocar a nulidade do contrato de seguro, que a indemnização se mostra equilibrada e que a recorrente não impugnou a matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.º 3 e 4, do CPP, concluindo pela manutenção do decidido.
Nesta Relação o Ex.mo Procurador-geral Adjunto, pronuncia-se no sentido que deve proceder o recurso apenas relativamente à sal condenação pela contra-ordenação p. e p. pelo art. 81.º, n.º 1, 2 e 5, al. b), do CE, devendo manter-se inalterada a parte restante da sentença recorrida
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Colhidos os vistos legais, cumpre-nos decidir.
Vejamos pois a factualidade dos autos e respectiva motivação.

Factos provados
Da acusação:
«1- No dia 18 de Junho de 2005, pelas 20 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula UF-66-76, nele seguindo como passageiro Rui Nelo dos Santos Jorge, na Estrada Municipal n.º 607, no sentido Freixeda do Torrão–Figueira de Castelo Rodrigo, ladeada de casas de habitação de ambos os lados.
2- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, seguia o veículo de matrícula QP-25-84, conduzido por José Quadrado, em sentido contrário.
3- Ao descrever a curva que antecede a localidade de Figueira de Castelo Rodrigo, delimitada com a respectiva placa identificativa, o arguido invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha e ao deparar-se com o veículo QP, desvia o seu veículo para a direita, de forma a evitar a colisão frontal, entrando com a sua roda da frente direita na valeta, atento o seu sentido de marcha, voltando o arguido a guinar o seu volante para a esquerda, invadindo de novo a via contrária, tendo entrado em despiste.
4- O arguido não conseguiu controlar o veículo e foi embater frontalmente e de forma violenta, num muro de blocos existente no lado esquerdo da via contrária ao seu sentido de marcha inicial.
5- Após embater no muro, o veículo tripulado pelo arguido, rodopia sobre o seu lado direito, altura em que a porta do lado do passageiro se abre, sendo o referido Rui Nelo projectado para o exterior, por não fazer uso do cinto de segurança, embatendo com a cabeça no muro ali existente, e, após, foi projectado a cerca de 16 metros do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do veículo UF.
6- Seguidamente, o veículo UF volta a embater com a sua parte direita traseira no referido muro, e continua a sua progressão de forma desgovernada em direcção a Figueira de Castelo Rodrigo, para o lado direito da via, retomando o seu sentido de marcha inicial, sendo a certa altura o arguido projectado para o exterior, em virtude de também ele não fazer uso do cinto de segurança.
7- Após o arguido ter sido projectado, o UF continua em despiste, acabando por capotar e ficar imobilizado a cerca de 469 metros do local do primeiro impacto, no lado direito da via, atento o seu sentido de marcha.
8- Em consequência do embate, Rui Nelo dos Santos Jorge sofreu as lesões traumáticas crânio-encefálicas descritas no relatório de autópsia de fls. 20 a 25 (nomeadamente arrancamento traumático da calote óssea, com perda de quase a totalidade da massa encefálica; fractura no terço inferior do braço direito) que lhe causaram directa e necessariamente a morte.
9- O arguido imprimia ao veículo automóvel por si conduzido uma velocidade superior a 100 km/h, tendo entrado em despiste quando desfez a curva que antecede a localidade de Figueira de Castelo Rodrigo, atento o sentido de marcha em que seguia, circulando em derrapagem cerca de 50 metros, antes de colidir com o obstáculo.
10- O arguido, que antes ingerira bebidas alcoólicas, submetido a exame hematológico, acusou uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 0,89, e, através da urina foi-lhe detectada uma substância denominada ácido delta-9-tetrahidrocanabióico, numa concentração de 100,8 ng/ml.
11- O arguido conduzia o veículo UF sem os devidos cuidados, em violação das regras estradais, com manifesta falta de atenção ao trânsito e sem adequar a velocidade imprimida no veículo ao local.
12- A estrada encontrava-se limpa e seca, tendo a faixa de rodagem cerca 5,64 metros de largura.
13- O arguido era o condutor habitual do veículo UF.
Do pedido de indemnização civil:
14- O malogrado Rui Nelo dos Santos Jorge era casado com Emília da Conceição Dias Jorge, com quem contraíra matrimónio no dia 22 de Dezembro de 1996.
15- E pai de Tiago Manuel Dias Jorge e Liliana da Conceição Dias Jorge, 2º e 3º demandantes, nascidos em 25 de Abril de 2000 e 15 de Novembro de 1996, respectivamente.
16- O acidente dos autos ocorreu às 20 horas e a morte do malogrado Rui Nelo sobreveio na mesma hora.
17- O falecido Rui Nelo, nascido em 28 de Junho de 1973, era uma pessoa saudável, trabalhadora, alegre e cheia de vontade de viver.
18- O ofendido era companhia da demandante e contribuía, com os seus rendimentos, para as despesas familiares.
19- A notícia da morte do seu marido, provocou na Emília da Conceição Dias Jorge, 1ª demandante, um estado de pânico, desorientação, profunda depressão e angústia.
20- Provocou também um sentimento de perda irreparável e uma profunda tristeza e desgosto.
21- Os 2º e 3º demandantes sempre foram muito chegados ao pai, tendo a morte deste lhes provocado uma profunda angústia, tristeza e desgosto.
22- Á data dos factos, a primeira demandante trabalhava em part-time como ajudante de cozinha, auferindo o ordenado mínimo nacional.
23- O inditoso R…. trabalhava por conta de outrem, tendo como entidade empregadora a sociedade Transportes Ana del Teso Martín, sita em Salamanca.
24- Onde desenvolvia a função profissional de condutor de camiões, efectuando viagens internacionais.
25- À data da sua morte, R…….e auferia o salário mensal de € 1.581,75.
26- À data do acidente, a responsabilidade pelos danos causados pelo veículo UF-66-76, conduzido pelo arguido, encontrava-se transferida para a aqui demandada, “Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.”, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0900182246.
Da contestação apresentada pelo arguido:
27- No dia 18 de Junho de 2005, pelas 20 horas, na estrada municipal n.º 607, no sentido Freixeda do Torrão-Figueira de Castelo Rodrigo, o veículo UF-66-76 era conduzido pelo arguido, tendo o mesmo sido adquirido por G………, seu pai.
Do pedido de reembolso do CDSS (Guarda)
28- T…………………… é beneficiário 11182107806, foi processada pelo CDSS (Guarda) a título de subsídio de doença, a importância de € 4.975,63, quantia paga ao arguido, relativamente ao período de doença compreendido entre 19 de Junho de 2005 e 1 de Dezembro de 2006, decorrente do acidente descrito nos autos.
29- O arguido é mecânico, auferindo mensalmente a quantia de € 400,00.
30- Vive sozinho e tem um filho menor.
31- Vive numa casa arrendada, pagando de renda a quantia mensal de € 165,00.
32- Contribui para as despesas do filho com a quantia de € 30,00 mensais (abono).
33- Tem o 6º ano de escolaridade.
34- É detentor de licença de condução desde 2000.
35- Consta do seu certificado de registo criminal uma condenação em pena de multa, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez – sentença proferida no processo sumário n.º 114/03.5, do Tribunal Judicial de Almeida, por factos ocorridos em 24/07/2003, pena que foi já declarada extinta.
36- Para além dos factos descritos em 34, não tem averbado qualquer contra-ordenação ao seu registo individual de condutor.
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Factos não provados
Não se provaram entre outros, os seguintes factos:
1- O salário auferido por R…….e era o único meio de subsistência do seu agregado familiar.
2- O falecido tinha grandes qualidades de trabalho.
3- A demandante Emília da Conceição Jorge, após a morte do marido e por causa dela passou a frequentar consultórios médicos e a tomar tranquilizantes para as noites de insónia.
4- A Seguradora não teria celebrado o contrato se conhecesse a idade e os anos de carta do verdadeiro condutor habitual do UF.
Não se provaram os demais factos alegados nas diversas peças processuais, que não estejam contidos ou estejam em oposição com os aqui dados como assentes.
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Motivação
Quanto a esta matéria, somos impelidos a realçar que o Tribunal teve em conta os princípios e regras legais sobre os meios de prova, sua obtenção e força probatória atribuída por lei, tendo em consideração, em especial, o preceituado no art. 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Tal princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária - da prova produzida.
Tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: a liberdade de apreciação da prova e, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material”, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em regra susceptível de motivação e controlo.
Embora se não busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E “se a verdade que se procura ... é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primordiais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais- mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando (...) o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, quando o Tribunal (...) tenha logrado afastar qualquer dúvida para que pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”- Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º Vol., pág. 203/205.
Foi com base nestes princípios, conjugados com a análise crítica das provas produzidas e examinadas em audiência de julgamento que o Tribunal alicerçou a sua convicção.
Assim, o Tribunal formou a sua convicção com base:
- Nas declarações da demandante, E…….., esposa do falecido R….., que, embora não tenha presenciado os factos, referiu que logo após o acidente, teve conhecimento que o seu marido se encontrava morto. Deslocou-se, de imediato, para o local do embate e aí chegada viu o corpo do seu marido estendido no chão, já tapado, tendo sido impedida de se aproximar do mesmo. Pronunciou-se acerca das condições sócio-económicas do seu marido (referindo que este era saudável, não padecia de qualquer deformidade ou enfermidade; que trabalhava como camionista numa empresa de transportes internacionais em Espanha, actividade pela qual auferia a quantia de € 1.500,00 mensais, que contribuía para os encargos familiares e que vivia com a demandante e dois filhos de ambos, com quem estava junto quase todos os fins de semana, já que durante a semana se encontrava a trabalhar, sendo a companhia destes).
Acrescentando que o seu falecido marido durante a semana fazia todos os dias viagens internacionais, dormia no camião e cozinhava num fogão amovível de que dispunha, trazendo de casa os alimentos de que necessitava, quando regressava do fim-de-semana.
Pronunciou-se pelo profundo amor que tinha pelo seu marido e desgosto pela sua morte.
- No depoimento de Manuel Sílvio Luís Paredes, agente da GNR, que à altura dos factos prestava serviço no Posto de Figueira de Castelo Rodrigo. Embora não tenha presenciado o acidente, foi chamado ao local. Foi ele que elaborou a participação e o croqui de fls. 7 e 8, cujo teor confirmou, tendo esclarecido que quando chegou ao local ainda se encontrava o UF-66-76 no local, o qual se encontrava imobilizado e distanciado a 46 metros do local do embate, bem como do primeiro corpo que se encontrava prostrado no chão, identificando-o como sendo o do passageiro, atenta toda a trajectória do veículo e os vestígios deixados no local do embate, o qual já se encontrava morto. Acrescentou que o veículo ficou destruído, com o motor fora da carroçaria e distante dela. Foi ele que mediu o rasto de derrapagem, em que entrou o veículo UF, após descrever a curva e antes de embater, explicando tal se ter ficado a dever à velocidade imprimida no referido veículo ao descrever a curva, esclarecendo que as marcas deixadas no piso revelam que o veículo seguiu a sua trajectória inclinado, não tendo ocorrido antes do embate qualquer travagem por parte do condutor, uma vez que as marcas dos pneumáticos não se encontravam vincadas na sua totalidade, mas apenas parcialmente (na lateral). Note-se que quanto a esta matéria o tribunal insistiu, tendo o depoente corroborado o croqui por si elaborado e referido não ter qualquer dúvida que o corpo que encontrou no local já morto era o do passageiro, atentos os vestígios que percepcionou no local, designadamente o posicionamento dos corpos após o embate. Relevou para este efeito, igualmente, o relatório de fls. 245/248, no qual se dá conta da identidade do condutor e do passageiro do veículo UF, por referência aos vestígios encontrados no local após o embate e em face das lesões sofridas por cada um dos intervenientes no acidente em causa, tudo conjugado com as regras da experiência comum.
- No depoimento de Alberto Américo Quadrado Correia: esta testemunha que, nas circunstâncias de tempo e lugar narrados e atrás provados, encontrava-se no jardim de sua casa, situada em cima da curva descrita pelo arguido, imediatamente antes do embate, narrou os factos por si presenciados de forma clara e sem hiatos nem contradições e, também por isso de forma, perfeitamente credível. Esclareceu que quando o veículo em causa passou em frente da sua casa, fê-lo em grande velocidade, ouvindo-se o motor em esforço, tendo, logo de seguida, ouvido um “estrondo”. Ao aproximar-se do local, cruzou-se com a testemunha José Carlos, carteiro, que se encontrava dentro de uma carrinha junto da mencionada curva, direccionada para Freixeda do Torrão, o qual com um ar assustado lhe dissera “aquele malandro ia-me matando”. Mais referiu que, quando chegou ao local do embate, a cerca de 150 metros de sua casa, encontrou os dois corpos estendidos no chão, encontrando-se o corpo do falecido Rui Nelo perto do muro ali existente e o do arguido do lado oposto, mais afastado do local do embate e do outro lado da estrada, no sentido Figueira de Castelo Rodrigo.
- No depoimento de José Carlos Ferreira Quadrado: que se encontrava no local do embate. Depôs de forma isenta, coerente e objectiva, convencendo o tribunal do que consignou: referiu que se cruzou na recta com o veículo UF que seguia a “grande velocidade”, acima dos 100 km/h, no sentido de Figueira de Castelo Rodrigo, referindo que o veículo em causa quando fez a curva “já vinha em despiste” directo à carrinha tripulada pela testemunha, circulando no meio da faixa de rodagem, tendo-se apercebido que, nesse instante, o condutor do veículo que circulava no sentido contrário ao seu fizera um gesto de desvio para a direita, não lhe tendo embatido por “milagre”. Referiu que, mercê do “susto” que apanhou parou a sua carrinha mais à frente, perto da curva, onde se situa a casa da testemunha Alberto Correia, saiu e quando olhou para trás, viu uma grande “poeirada” que o impedia de ver o local onde ocorreu o embate.
- No depoimento de Júlia Pinto Correia: esta testemunha, que não viu o embate, depôs de forma isenta e imparcial, logrando convencer o tribunal do que consignou. Referiu, de forma pormenorizada e sem hiatos nem contradições, que no final da tarde do dia em que ocorrera o acidente, quando estava a estender roupa na sua casa, situada à entrada da localidade de Freixeda do Torrão, viu o falecido Rui Nelo sentado no lugar do passageiro de um veículo de cor cinzenta, conduzido na altura por um indivíduo que não reconheceu, tendo o veículo passado ao lado de sua casa e seguido pelo povo abaixo.
- Quanto ao pedido cível, mostraram-se também relevantes, entre outros, os depoimento de César António Estremanho Ferreira e Carlos Alberto Pereira. Foram valorados os depoimentos destas testemunhas as quais pronunciaram-se pormenorizadamente quanto à situação pessoal, familiar, profissional e familiar da vítima e da demandante esposa e também quanto à dor e saudade que esta sofreu e ainda hoje sofre.
Tais depoimentos foram esclarecedores no que se refere aos rendimentos auferidos pelo falecido Rui Nelo à data da sua morte, conjugados com os documentos juntos aos autos a fls. 305, 529 a 534, bem como com as declarações prestadas, a propósito, pela demandante cível.
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Refira-se que o arguido embora se tivesse prestado a prestar declarações, quanto aos factos em causa nos autos, referiu, contudo, não se lembrar da forma como o acidente ocorreu, referindo apenas que o veículo UF fora comprado pelo seu pai, Leopoldino, e posteriormente dado por este ao arguido.
Quanto à situação pessoal, familiar e profissional do arguido tiveram-se em conta as declarações por ele prestadas em audiência de discussão e julgamento, já que mais nenhuma prova a esse respeito foi produzida.
Foram ainda ponderados todos os documentos juntos aos autos, nomeadamente:
- participação e croquis de fls. 7/8 e 242/244;
- relatório de fls. 245 a 248;
- Relatório de perícia-médico-legal de fls. 21 a 25;
- Certificado de óbito de fls. 10;
- Registos clínicos de fls. 81 a 83;
- Relatórios de fls. 162 a 166;
- Fotos de fls. 192/210, 212/216 e 218/241;
- Apólice de seguro de fls. 68 e 350/353;
- Assento de casamento de fls. 302;
- C.R.Criminal de fls. 311 e 312;
- Registo individual de condutor de fls. 77.
*
No que concerne aos factos não provados apenas importa salientar que sobre os mesmos não foi efectuada qualquer prova (assim que a demandante “Combate as suas longas noites de insónia com tranquilizantes, tendo passado, partir da morte do marido, a frequentar consultórios médicos (...); ou foi efectuada prova de realidade contrária ou distinta (assim quanto à dependência exclusiva da actividade desenvolvida pelo falecido para fazer face aos proventos necessários à subsistência do seu agregado familiar); ou a prova produzida foi manifestamente insuficiente ou inconclusiva (assim no que respeita à celebração do contrato de seguro pela demandante nos moldes em que o fez ou noutras circunstâncias se conhecesse a idade e anos de carta do condutor habitual do veículo segurado; e quanto às “grandes qualidades de trabalho” que possuía o falecido)».
*
O Direito:
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Questões a decidir:
I - Recurso do arguido
a) Apreciar se existe ofensa do princípio “ne bis in iden” quanto à contra-ordenação prevista no art. 81.º, n.º 1, 2 e 5, al. b), do Código da Estrada, relativamente à qual foi condenado o arguido em processo administrativo e quanto à contra-ordenação prevista no art. 25.º, n.º 1, al. c) e f), do mesmo diploma legal, por estar numa relação de subsidiariedade com o crime de homicídio negligente pelo qual foi condenado na sentença recorrida.
b) Aferir da adequação da medida concreta da pena de prisão e da pena acessória e ainda “ex ofício” do período de suspensão da execução da pena, face à nova redacção do art. 50.º, n.º 5, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.

II - Recurso da demandada “Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.”,
a) Apreciar da alegada nulidade do contrato de seguro por o tomador do seguro (pai do arguido) não ser o proprietário do veículo, facto do qual se a seguradora tivesse conhecimento não teria celebrado o contrato, ou, a tê-lo feito, não o faria nos mesmos termos.
b) Aferir da adequação do montante da indemnização fixado relativamente ao dano patrimonial.

I - Recurso do arguido
a) Da ofensa do princípio “ne bis in idem”
Alega o arguido na sua douta motivação de recurso que existe ofensa do princípio “ne bis in idem” quanto à contra-ordenação prevista no art. 81.º, n.º 1, 2 e 5, al. b), do Código da Estrada, relativamente à qual foi condenado em processo administrativo e quanto à contra-ordenação prevista no art. 25.º, n.º 1, al. c) e f), do mesmo diploma legal, por estar numa relação de subsidiariedade com o crime de homicídio negligente pelo qual foi condenado na sentença recorrida.
Apreciemos a questão suscitada.
Quanto à primeira contra-ordenação foi o arguido condenado como autor material da contra-ordenação p. e p. pelo art. 81.º, n.º 5, al. b) do Código da Estrada, na coima de € 500 (quinhentos euros), e inibição de conduzir pelo período de dez meses.
A factualidade dada como assente e não posta em causa relativamente a esta contra-ordenação, é a seguinte:
«1- No dia 18 de Junho de 2005, pelas 20 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula UF-66-76, nele seguindo como passageiro Rui Nelo dos Santos Jorge, na Estrada Municipal n.º 607, no sentido Freixeda do Torrão–Figueira de Castelo Rodrigo, ladeada de casas de habitação de ambos os lados.
(…)
10- O arguido, que antes ingerira bebidas alcoólicas, submetido a exame hematológico, acusou uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 0,89, e, através da urina foi-lhe detectada uma substância denominada ácido delta-9-tetrahidrocanabióico, numa concentração de 100,8 ng/ml.
(…)
35- Consta do seu certificado de registo criminal uma condenação em pena de multa, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez – sentença proferida no processo sumário n.º 114/03.5, do Tribunal Judicial de Almeida, por factos ocorridos em 24/07/2003, pena que foi já declarada extinta.
36- Para além dos factos descritos em 34, não tem averbado qualquer contra-ordenação ao seu registo individual de condutor».
Antes de prolatada a sentença recorrida não há notícia nos autos de que tenha havido condenação pela prática da contra-ordenação em apreço.
Porém, com o requerimento de interposição de recurso a fls. 620, o arguido através da sua ilustre defensora requer que se oficie à Direcção Geral de Viação para extrair certidão do processo administrativo de contra-ordenação n.º 242436587 no qual diz ter sido condenado pelos mesmos factos e ter pago a coima e cumprido a sanção acessória de inibição de conduzir.
Com a mesma interposição de recurso junta cópia da decisão da entidade administrativa a fls. 637, proferida em 19/10/2005, da qual consta a sua condenação em 500,00 Euros e 60 dias de inibição de conduzir pela prática daquela contra-ordenação.
Junta ainda a fls. 676 cópia do auto de apreensão da carta de condução pela GNR.
Posteriormente, o arguido junta aos autos em 21/8/2007 certidão da Direcção Geral de Viação relativamente ao processo de contra-ordenação n.º 242436587, comprovando ter entregue a carta de condução, para cumprimento da inibição de conduzir em 20/4/2006 e do qual consta que a data de devolução ocorreria em 18/6/2006.
Da mesma certidão consta ainda a fls. 692 que a última prestação da coima aplicada ocorreu em 13/4/2007.
Efectivamente o arguido foi condenado na sentença recorrida pelos factos acima descritos e pelos quais já tinha sido condenado por decisão proferida em processo administrativo, tendo designadamente cumprido o pagamento da coima e a inibição de conduzir, conforme documentos juntos de fls. 636 637 e 690 a 692, já depois de interposto o recurso.
É pacífico que estamos perante um caso óbvio de ofensa do princípio “ne bis in idem”.
Segundo este princípio constitucional, previsto no art. 29.º, n.º 5, da CRP, aplicável às contra-ordenações, por força do disposto no art. 41.º, do DL n.º 433/82, de 27/10, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática da mesma infracção.
Estando perante duas decisões transitadas em julgado, o meio processual para corrigir o erro de dupla condenação será o recurso de revisão, previsto no art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP.
E nesta sede deve por aplicação do art. 675.º, n.º 1, do CPC, cumprir-se, tão só, a decisão transitada em primeiro lugar, pois também aqui está presente a contradição exigida, referida, não ao sentido das decisões. Mas à contradição formal (contradição por coincidência, em função da regra “ne bis in idem”) – conforme Ac. do STJ, de 6/7/2006, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.
Ora, no caso dos autos estamos perante um decisão da entidade administrativa transitada e já integralmente cumprida e uma decisão judicial não transitada.
Então quid iuris?
Em caso de não estar cumprida a decisão administrativa, encontraríamos resposta no art. 82.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, que dispõe o seguinte:
“A decisão da autoridade administrativa que aplicou numa coima ou uma sanção acessória caduca quando o arguido venha a ser condenado em processo criminal pelos mesmo facto”.
A justiça deve estar ao serviço dos cidadãos e resolver de forma justa a questão controversa que lhe foi submetida à apreciação e não se ficar pela justiça formal do caso.
A justiça tem de dar resposta a uma caso de ofensa nítida de ofensa do princípio constitucional ne bis in idem, quando o arguido a ser julgado pelos mesmos facto, cuja primeira condenação já cumpriu.
De forma alguma o arguido poderá ser obrigado a cumprir outra condenação pelos mesmos factos, tornando-se evidente a inexigibilidade em termos constitucionais da segunda sanção aplicada por mera negligência do Estado.
E dar resposta não é remeter o arguido para novo recurso em sede de revisão de sentença previsto no art. 449.º, do CPP e segts.
Não podemos resolver a questão por via do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, como pretende o recorrente, pois a existência de tal vício pressupõe que os factos agora conhecidos (ter sido o arguido condenado pela mesma contra-ordenação em processo administrativo, à sombra do qual cumpriu a coima e a inibição de conduzir) tivessem sido submetidos à apreciação do tribunal, constando consequentemente da acusação ou da contestação.
Estamos perante insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, o qual deve decorrer do texto da sentença, quando o recorrente pretende ver provados factos, os quais só devem ser considerados se importantes para a decisão e sendo-o, os mesmos implicam alteração da decisão.
Resulta do art. 339.º, n.º 4, do CPP que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, designadamente para efeitos dos art. 368.º e 369.º, do mesmo diploma legal, isto é, apreciar questões relacionadas com a culpabilidade e determinação da sanção.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre aqueles factos e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.
Admite-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal “a quo”através dos meios de prova disponíveis, seriam dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas – Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 2.ª Ed., pág. 737 a 739.
Verifica-se pois o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição – Cfr. entre outros os Acórdãos do STJ de 6/4/2000, in BMJ n.º 496, pág. 169 e de 13/1/1999, in BMJ n.º 483, pág. 49.
A solução deve ser buscada noutra sede, designadamente na omissão do dever do juiz de investigar oficiosamente o passado criminal e contra-ordenacional do arguido para determinação respectivamente da pena e da coima e sanção acessória a aplicar.
Se bem que não houve omissão relativamente à responsabilidade criminal do arguido, cujo certificado do registo criminal constante de fls. 311 e 312, foi junto em 7/2/2006, encontrando-se actualizado, já o mesmo se não pode dizer relativamente à sua responsabilidade contra-ordenacional.
O único registo individual de condutor constante dos autos a fls. 77, foi junto na fase de inquérito em 12/07/2005, encontrando-se desactualizado à data da sentença recorrida, proferida em 31/5/2007, sendo que no intervalo destas duas datas o arguido havia sido condenado em 19/10/2005, no processo administrativo n.º 242436587 que correu termos pelo Governo Civil da Guarda.
O arguido foi condenado nesses autos na coima de 500,00 Euros e 60 dias de inibição de conduzir, por no dia 18/6/2005, pelas 20 horas, conduzir na EN 607 (Figueira de Castelo Rodrigo) o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula UF-66-76, com uma taxa de alcoolémia de 0,89 g/l, no sangue.
O processo administrativo teve origem em auto de notícia autónomo levantado pela GNR, na sequência do acidente que também motivou a participação de fls. 7.
Conforme certidão da Direcção Geral de Viação, emitida em 2/8/2007, o arguido já pagou a coima (última prestação em 13/4/2007) e cumpriu a inibição de conduzir que naquela processo administrativo lhe foram aplicadas, não podendo por isso ser condenado agora nestes autos pelos mesmos factos, por ofensa do princípio constitucional ne bis in idem, constante do art. 29.º, n.º 5, da CRP.
O tribunal recorrido para ficar habilitado a proferir sentença relativamente à responsabilidade contra-ordenacional, nos termos do art. 139.º, n.º 1, do CE, podia e devia fazer juntar cadastro individual de condutor actualizado, uma vez que o junto na fase de inquérito havia sido requisitado há cerca de dois anos.
E tal procedimento não foi observado, apesar daquele preceito legal impor que para determinação da medida da sanção e regime de execução, o tribunal deve atender para além de outras circunstâncias aos antecedentes do infractor relativamente ao diploma legal ou aos seus regulamentos.
É nula pois a sentença nesta parte, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por o tribunal não se ter pronunciado sobre a concreta questão de apreciar e tomar em conta o cadastro individual do condutor, relativamente ao arguido, devidamente actualizado.
Se o tivesse feito não teria condenado o arguido pela mesma contra-ordenação.
Tal nulidade da sentença pode ser suprida em recurso por força do disposto no art. 379.º, n.º 2, do CPP, uma vez que este tribunal dispõe de todos os elementos para prova da anterior condenação.
Assim, em consequência da nulidade declarada que agora suprimos o ponto 36, da matéria de facto provada, passa a ter a seguinte redacção:
«36. Para além dos factos descritos em 35, o arguido já foi julgado em processo administrativo pela contra-ordenação p. e p. pelo art. 81.º, n.º 1 e 5, al. b), do Código da Estrada, que lhe é imputada na acusação, por, no dia 18/6/2005, pelas 20 horas, na E.M. n.º 607, no sentido Freixeda do Torrão – Figueira de Castelo Rodrigo, conduzir o veículo ligeiro de passageiros, marca Renault 19, matrícula UF-66-76, com uma taxa de alcoolémia de 0,89 g/l no sangue, tendo pago a coima de 500,00 Euros e cumprido 60 dias de inibição de conduzir».
Nesta conformidade impõe-se a absolvição do arguido pela prática da aludida contra-ordenação p. e p. pelo art. 81.º, n.º 1 e 5, al. b), do Código da Estrada.
Sustenta ainda o recorrente que deve ser absolvido da contra-ordenação por excesso de velocidade p. e p. pelos art. 25.º, n.º 1, al. c) e f), 145.º, al. e) e 147.º, n.º 2, do CE, causal do acidente, uma vez que, em seu entender, existe uma relação de subsidiariedade implícita com o crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal.
Na contra-ordenação por violação da velocidade imposta, o bem protegido é a segurança do trânsito rodoviário. A mera violação do regulamento estradal é punida, independentemente do resultado produzido.
Com a norma do crime de homicídio negligente, o bem jurídico protegido é a vida. Aqui integrar a conduta típica é violar o dever objectivo de cuidado ou dever de diligência.
São bens distintos e punidos autonomamente, independentemente da contra-ordenação ser ou não causal do acidente.
É incorrecta a afirmação do recorrente na sua douta motivação de recurso quando afirma que foi punido com inibição de conduzir pelo crime de homicídio negligente, pois é questão concretamente abordada pela senhora juíza, a qual condenou em sanção acessória apenas pelas contra-ordenações.
É questão sobejamente discutida na doutrina e jurisprudência que se vêem pronunciando no sentido que as contra-ordenações causais do acidente não estão numa relação de consunção com o crime de homicídio negligente.
É pois manifesta a falta de razão do recorrente, quanto à pretensão da sua absolvição pela contra-ordenação por excesso de velocidade, pois se outros fundamentos não houvesse o recurso com este fundamento seria rejeitado por manifesta improcedência.
*
b) Da adequação da medida concreta da pena de prisão e da pena acessória e período de suspensão da execução da pena
Restam as condenações do arguido, como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal (por referência às contra-ordenações p. e p. pelos art. 25.º, n.º 1, al. c) e f) e 81.º n.º 5, al. b) do Código da Estrada), na pena de 12 (doze) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos e como autor material da contra-ordenação p. e p. pelo art. 25.º, n.º 1, als. c) e f) do Código da Estrada, na coima de € 150 (cento e cinquenta euros), e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de quatro meses.
A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 1 e 2 do CP).
A defesa da ordem jurídico penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração) é a finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Juridicas do Crime, pág. 55 e seguintes e Ac STJ 29.4.98 CJ, T. II, pág. 194.
Na determinação da medida concreta da pena, dispõe o artigo 71.º/1 do fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente de entre as que constam do elenco do n.º 2 de tal norma legal.
Não se discute a aplicação de pena de diferente natureza da pena de culpa do agente e das exigências prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não
O tribunal recorrido analisou e atendeu á acentuada culpa com que o arguido actuou, bem como às exigências de prevenção e ainda ponderou todas as circunstâncias com influência na determinação da medida da pena.
Idêntica atitude teve relativamente à contra-ordenação por excesso de velocidade causal do acidente.
Estabelece o art. 137.º, n.º 1, do Código Penal que o crime de homicídio por negligência é punido com a moldura abstracta de pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Por sua vez a contra-ordenação por excesso de velocidade p. e p. pelos art. 25.º, n.º 1, al. c) e f), 145.º, al. e) e 147.º, n.º 2, do CE, é sancionada com coima de 120,00 Euros a 600,00 Euros e com inibição de conduzir de um mês a um ano.
O tribunal recorrido aplicou respectivamente para o crime de homicídio negligente 12 meses de prisão e para a contra-ordenação por excesso de velocidade quatro meses de inibição de conduzir.
Em síntese são factores a ponderar os seguintes:
- A culpa acentuada com que o arguido actuou, ignorando o dever de cuidado que sobre ele impendia, conduzindo a velocidade superior a 100 Km/hora, em Estrada Municipal ladeada de casas dos dois lados.
- Exigências de prevenção geral e especial.
- O elevado grau de ilicitude dos factos.
- A gravidade das consequências da conduta dos arguido, sendo que para além da morte que sobreveio para o acompanhante do arguido, põe seriamente em risco a vida do condutor que transitava em sentido contrário.
- A personalidade do arguido, revelada nos factos, no Certificado de Registo Criminal, sendo certo que já fora condenado em temos criminais, por condução em estado de embriaguez, por factos ocorridos em 24/7/2003.
Nesta conformidade aderindo aos fundamentos da sentença recorrida, dentro das molduras acima referidas mostram-se justas e adequadas tanto a pena aplicada como a inibição de conduzir.
Por se entender que a censura da actuação do arguido e a ameaça da pena de prisão realizam ainda de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, decidiu-se suspender a execução da pena, pelo período de dois anos.
O período de suspensão da execução da pena à data da prolação da sentença podia ser fixada “entre 1 e 5 anos”, nos termos do art. 50.º, n.º 5, do CP.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o período de suspensão da execução da pena passou a ter a “duração igual à da pena de prisão, determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano”.
Por obediência ao disposto no art. 2.º, n.º 4, do CP, não tendo transitado em julgado a sentença em recurso, deve ser aplicado a nova lei, quanto ao período de suspensão por se mostrar mais favorável, alterando assim de dois anos para um ano.
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II - Recurso da demandada “Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.”,
a) Da nulidade do contrato de seguro
A demandada, “Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.”, alega que o tomador que subscreveu a apólice de seguro não tinha qualquer interesse nem responsabilidade pelo circulação do mencionado veículo, tendo subscrito tal apólice apenas para que o verdadeiro proprietário pudesse beneficiar de um desconto no prémio, considerada a sua idade baixa e a sua pouca experiência como condutor.
Diz ainda que o tomador do seguro prestou falsas declarações, as quais influíram decisivamente na aceitação da proposta de seguro e no cálculo do respectivo prémio, sustentando que os factos ocultados (condutor habitual do UF) aumentavam o risco transferido e alteravam o respectivo prémio, pelo que o contrato de seguro é nulo.
Vejamos se existem razões para declarar a nulidade do contrato de seguro com aquele fundamento.
Quanto a esta questão encontra-se provada a seguinte matéria de facto:
«(…)
26- À data do acidente, a responsabilidade pelos danos causados pelo veículo UF-66-76, conduzido pelo arguido, encontrava-se transferida para a aqui demandada, “Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.”, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0900182246.
27- No dia 18 de Junho de 2005, pelas 20 horas, na estrada municipal n.º 607, no sentido Freixeda do Torrão-Figueira de Castelo Rodrigo, o veículo UF-66-76 era conduzido pelo arguido, tendo o mesmo sido adquirido por Leopoldino Grácio Rosário, seu pai».
Importa ter em conta que o contrato de seguro é um contrato formal, exigindo-se, designadamente quanto aos requisitos pertinentes quanto ao caso em apreço, no art. 426.º, do Código Comercial o seguinte:
«O contrato de seguro deve ser reduzido a escrito num instrumento que constituirá a apólice de seguro.
§ único - A apólice de seguro deve ser datada, assinada pelo segurador e enunciar:
(…)
3.º. O objecto do seguro e a sua natureza e valor.
4.º. Os riscos contra quem se faz o seguro».
Uma vez celebrado o contrato de seguro pelo tomador do seguro e pela seguradora, o mesmo regular-se-à pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência pelas disposições constantes do Código Comercial, conforme estipula o art. 427.º, deste diploma legal.
O contrato de seguro é o “contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto” - José Vasques, in Contrato de Seguro, Ed. 1999, pág. 94.
Na celebração do contrato de seguro, no que respeita à vontade das partes, domina o princípio da liberdade contratual decorrente do art. 406.º, n.º 1, do Cód. Civil, segundo o qual seguradora e tomador do seguro, dentro dos limites da lei, têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos ou incluir nele as cláusulas que lhes aprouver.
À luz da definição intrínseca de contrato de seguro, uma vez verificado o evento futuro e incerto decorrerá por consequência para a seguradora de forma reflexa a obrigação de indemnizar, se tal obrigação recair sobre o tomador do seguro, a não ser que conste da apólice cláusula convencional a excluir a responsabilidade civil ou que a mesma seja excluída por lei.
Ora, face à apólice de seguro constante de fls. 68, Leopoldino Grácio do Rosário, na qualidade de tomador do seguro, transferiu para a recorrente a responsabilidade civil, por danos causados a terceiros, pela circulação do veículo Renault 19, matrícula UF-66-76.
A apólice foi emitida pela seguradora sem quaisquer reservas, face à proposta de contrato de seguro cuja cópia se encontra junta a fls. 350, sendo que o contrato produziu os seus efeitos entre as partes.
Ora, nos termos do art. 18.º, al. a) e b), do DL 446/85 de 25 de Outubro são absolutamente proibidas as cláusulas contratuais gerais que excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto a responsabilidade por danos causados à vida, à integridade moral ou física ou à saúde das pessoas e a responsabilidade por danos patrimoniais extracontratuais causados na esfera da contraparte ou de terceiros.
O regime jurídico das cláusulas contratuais gerais consagrado no DL 446/85 de 25 de Outubro, por força do n.º 2, do art. 1.º, na redacção introduzida pelo DL 249/99, de 7 de Julho, passou aplicar-se também “às cláusulas inseridas em contratos individualizados mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar”.
A legalidade das cláusulas contratuais gerais, no ordenamento jurídico português, é aferida segundo o princípio da boa fé e do equilíbrio contratual de interesses em jogo.
No caso dos autos tal equilíbrio será posto em causa se a seguradora pretender realizar os seus objectivos e interesses, sem ter minimamente em conta os interesses os legítimos interesses do tomador do seguro.
A validade de tais cláusulas de exclusão ou limitadoras do risco não pode ser posta em causa sem mais, pois são cláusulas destinadas a definir o objecto do contrato, que precisam o seu conteúdo e extensão, ainda ao abrigo da liberdade contratual consagrada no art. 405.º, do Cód. Civil.
Contudo importa distinguir as cláusulas de exclusão da responsabilidade daquelas outras que delimitam o objecto do contrato. Nas Condições Gerais e Especiais de apó1ices de seguro não se exclui a responsabilidade da seguradora, mas delimita-se o âmbito do risco coberto pelo contrato de seguro.
Neste sentido escreveu Pinto Monteiro, in Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, p. 119, onde se lê:
«Será o caso, ainda, em contratos de seguros de assunção de certos riscos, com a exclusão de outros, por parte da Companhia Seguradora, cuja validade constitui orientação corrente da jurisprudência nacional, ainda que impropriamente designada por “cláusulas de exclusão da responsabilidade da seguradora”».
Ainda que se possa vir a admitir a exclusão de alguns riscos, lícita por assentar na liberdade contratual e desde que não contrarie o regime das cláusulas contratuais gerais, constante do DL 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações dos DL 220/95, de 31 de Janeiro e 249/99, de 7 de Julho, em situações limite pode corresponder a uma solução inadmissível por desvirtuar o objecto do contrato que as partes tiveram em vista celebrar.
E haverá desvirtuamento do contrato de seguro relativamente ao tomador do seguro sempre que este adira a um contrato que não corresponda ao contrato que pretendeu celebrar.
Ora, o tomador do contrato de seguro celebrou o contrato de seguro dentro do âmbito do contrato de seguro obrigatório, cobrindo assim os riscos e danos causados pelo veículo em causa, independentemente de ser ele ou não o condutor.
Foi o contrato celebrado segundo as regras da experiência comum, no pressuposto de que cobriria os danos causados em caso de ser o condutor o seu filho e aqui arguido.
O art. 10.º, do DL 220/95, de 31 de Janeiro vem esclarecer que as cláusulas contratuais gerais são interpretadas de harmonia com as regras de interpretação dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluem.
Depois no art. 11.º, n.º 2, estipula-se que em caso de dúvida na interpretação de uma cláusula, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.
São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé (art. 15.º), sancionando-se as cláusulas contratuais gerais proibidas com a nulidade (art. 12.º).
Por força do art. 24.º, as nulidades deste diploma a que nos vimos referindo (DL 220/95, de 31 de Janeiro) são invocáveis nos termos gerais.
Ora, de acordo com o disposto no art. 292.º, do Cód. Civil a nulidade parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.
Não é manifestamente o caso, pois as partes, celebraram o contrato de seguro independentemente de quem era o proprietário e de quem era o condutor habitual.
Esta a interpretação que deve ser dada segundo as regras da experiência comum, pois, nos termos do art. 236.º, n.º 1, do Cód. Civil a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
As declarações inexactas consistem na declaração de factos que não correspondem à verdade; a reticência traduz-se na omissão de factos conhecidos do tomador e que este tinha o dever de declarar.
Embora a letra do referido art. 429.º, do Código Comercial pareça apontar no sentido de que se trata de uma nulidade, estamos apenas perante uma anulabilidade do contrato, como vem sendo entendido pela doutrina e pela jurisprudência (Moitinho de Almeida, in O Contrato de Seguro, p. 61, nota 29; José Vasques, in Contrato de Seguro, p. 379; Ac. do STJ de 10/05/2001, CJ do STJ, VI, 1, 103; Ac. do STJ de 04/03/2004, CJ do STJ, XII, 1, 102).
A interpretação referida é a que se mostra mais consentânea com a unidade do sistema jurídico que, como regra, qualifica de anulabilidade a invalidade dos negócios por vício na formação da vontade; e o art. 429º do Cód. Comercial constitui um afloramento do erro vício que atinja os motivos determinantes da vontade quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, previsto nos art.ºs 251º e 247º do Cód. Civil.
Sendo a declaração inexacta e a reticência um facto impeditivo ou extintivo da validade do contrato, incumbe à seguradora a prova da sua influência sobre a existência ou condições do contrato – art. 342º n.º 2 do Código Civil.
In casu, a demandada seguradora apenas alegou factos para demonstrar que a verdadeira identidade do condutor habitual do veículo segurado influenciaria o risco, agravando-o, e o cálculo do respectivo prémio.
É certo não se ter apurado que a demandada seguradora conhecesse a identidade do condutor habitual do UF, nem que soubesse que o tomador do seguro não era o seu condutor habitual, mas a seguradora não provou, como lhe competia, que não teria celebrado o contrato de seguro se conhecesse a verdadeira identidade do condutor habitual do UF ou que, conhecendo tal identidade, só o teria celebrado noutras circunstâncias.
Mesmo que não fosse considerada a validade do seguro e fosse antes entendido, face ao art. 429.º, do Cód. Comercial, que o seguro era anulável, essa anulabilidade seria inoponível ao lesado, conforme dispõe o art. 14.º, do DL n.º 522/85 de 31/12, que estabelece o seguinte:
«Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora só pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro».
Bem decidiu o tribunal a quo ao considerar que, no âmbito do seguro obrigatório, não pode a seguradora desonerar-se para com o lesado, invocando uma mera anulabilidade que não esteja directamente prevista no DL n.º 522/85 de 31/12, nomeadamente não lhe podendo opor qualquer anulabilidade prevenida em outra lei, geral ou especial, designadamente a anulabilidade prevista no art. 429.º, do Cód. Comercial.
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b) Da adequação do montante da indemnização fixado para o dano patrimonial.
Os demandantes Emília da Conceição Jorge, na qualidade de viúva do falecido, Tiago Manuel Dias Jorge e Liliana da Conceição Dias Jorge, na qualidade de filhos menores do falecido, peticionaram a título de danos patrimoniais (lucros cessantes) a quantia de € 841.481,00, tendo o tribunal recorrido arbitrado a quantia de € 300.000,00.
É este montante que a recorrente “Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.” questiona por entender ser exagerado.
A matéria de facto não foi impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3 e 4, do CPP, e, por isso, não padecendo a sentença de qualquer dos vícios do art. 410.º, n.º do mesmo diploma legal que oficiosamente nos cumpre conhecer dar-se-á como definitivamente assente a matéria de facto dada como provada, designadamente quanto ao valor da remuneração do falecido que a recorrente pretende questionar para fundamentar a redução da indemnização atribuída.
Estamos perante um dano futuro dos demandantes, pela perda monetária que o falecido deixou de contribuir para o agregado familiar enquanto desenvolvesse a sua actividade de motorista.
O dano por lucros cessantes, embora não tenha um critério rígido para a sua determinação, dependerá na sua essência do montante auferido pela vítima e do tempo provável que se manteria em actividade.
São dois factores que qualquer critério ou fórmula financeira obrigatoriamente não poderá ignorar.
Apreciemos pois a fixação deste patrimonial, sendo certo que uma justa indemnização é aquela que não deve enriquecer injustificadamente o lesado mas sim repor a situação como se a lesão não tivesse existido.
Encontrando-se reunidos todos os pressupostos da indemnização que aqui não cabe discutir, por não fazerem parte da concreta questão suscitada pela recorrente, importa apenas justificar em que termos se deve processar e quantificar a indemnização pelo dano causado.
O princípio basilar está consagrado no art. 562.º, do Código Civil, doravante designado pelas siglas CC, ao preceituar que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
A obrigação de indemnizar abrange todos os danos resultantes da facto danoso e por isso o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de auferir, em consequência da lesão, devendo o tribunal atender, aos danos futuros desde que sejam previsíveis, de acordo com o disposto nos art. 563.º e 564.º, do Cód. Civil.
Ora, é inquestionável que a perda monetária dos demandantes por deixarem de beneficiar das contribuições do falecido traduz-se num dano futuro, na sua esfera jurídica.
Está em causa é o quantum da reparação, que justa e adequadamente deve corresponder ao montante que deixaram e deixarão de auferir em consequência da morte do Rui Nelo dos Santos Jorge.
Hoje em dia a determinação da indemnização pelo dano futuro ou lucro cessante não sofre grandes discussões ao nível de acidentes de trabalho e acidentes de viação, uma vez encontrados os factores que devem servir para o cálculo.
Por isso mesmo se recorre com frequência a arbitragens fora da alçada dos tribunais para fixação da indemnização, uma vez acordados os factores determinantes para o cálculo da indemnização.
Não há nenhum critério rigoroso para atribuir uma indemnização, numa prestação única, por danos futuros, correspondente aos ganhos que o sinistrado deixaria de auferir e com os quais contribuiria para a ajuda do agregado familiar e dos quais beneficiaria os demandantes.
Porém, temos de optar por uma critério, sob pena da equidade se traduzir numa atribuição de uma indemnização de forma arbitrária.
Assim, dispõe o n.º 3 do art. 566º do C.C. que se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Será necessário lançar mão da equidade como critério formal de decisão.
Como tal, como atrás referimos, devemos atender às variáveis que aquele critério pondera e ainda àquelas que sempre serão imponderáveis mesmo ao arbítrio do julgador mais prudente.
Para além de não ser discutível a obrigação de indemnizar e a culpa exclusiva do arguido na produção do acidente, devemos tomar em conta a matéria de facto dada como provada, estritamente correlacionada com o montante da indemnização pelo dano patrimonial futuro.
Com interesse para dirimir a questão, está assente nos autos o seguinte:
Os três demandantes são, a primeira cônjuge sobrevivo e os restantes dois filhos menores do falecido.
O acidente ocorreu no dia 18/6/2005 tendo o Rui Neto nesse dia.
O falecido Rui Nelo, nasceu em 28 de Junho de 1973.
Era uma pessoa saudável, trabalhadora, alegre e cheia de vontade de viver, auferindo àquela data o salário mensal de € 1.581,75, como motorista de camiões e contribuía com os seus rendimentos para as despesas familiares.
Esta a matéria de facto dada como provada, com base na qual foi fixada a indemnização aos demandantes.
Como dano patrimonial futuro, a demandada foi condenada a pagar aos demandantes a quantia de 300.000 Euros, pela perda da ajuda monetária que o falecido prestaria ao seu agregado familiar, no pressuposto que gastando consigo cerca de 1/3 do salário, entregaria 2/3 para aquele fim.
O montante fixado para não ser arbitrário, tem de ser justificado, isto é, o juiz tem de demonstrar como chegou ao montante fixado.
Por isso, tem de ponderar as diversas variáveis, o que pressupõe que tais variáveis devem ser apuradas em julgamento.
Foi o que no caso concreto sucedeu de uma forma criteriosa que é de louvar, pois o tribunal apurou a idade do falecido, a profissão e os rendimentos da sua actividade, a sua ligação e afecto ao agregado familiar e fazendo uso das regras da experiência na fundamentação justificou que destina 2/3 do salário.
Como já referimos não há nenhum critério rigoroso para atribuir uma indemnização, numa prestação única, por danos futuros, correspondente aos rendimentos com que o falecido deixou de contribuir para o sustento do agregado familiar durante o período provável de vida.
Factores determinantes para a fixação da elevada indemnização são a idade do falecido (31 anos de idade à data do falecimento) e o vencimento mensal de 1.581,75 Euros, que deduzido de 1/3 corresponde à prestação de 1.054,50 Euros mensais com que o arguido contribuiria se continuasse no activo.
Também justificou a senhora juíza com um facto que está demonstrado por estudos que são do conhecimento geral, feitos pela Organização Mundial de Saúde, de que o tempo provável de vida no espaço da Comunidade Europeia para os homens é de 70 anos, (Acs. da RP de 11/04/2000, 30/01/2001, 31/10/2001 e 28/11/2001, sumariados in www.dgsi.pt/jtrp.nsf), sendo que há até quem defenda que chega aos 72 anos.
Tal permite-nos concluir que o falecido, não fora a morte precipitada e trágica como ocorreu e viveria por mais 39 anos, contribuindo assim com os rendimentos para o agregado familiar.
Ora, não podemos esquecer que os demandantes não podem receber ab initio a soma de todas as prestações que receberiam se o pagamento fosse mensal.
Para o efeito deverá atribuir-se ao lesado uma quantia em dinheiro que produza um rendimento (fixo) mensal equivalente ao perdido mas que, simultaneamente, não lhe proporcione um enriquecimento injustificado à custa do lesante, isto é, que na data final do período considerado se acha esgotada a quantia atribuída (Ac. do STJ de 05/05/1994, CJ Acs. do STJ, ano II, p. 86).
No cálculo da indemnização pelo dano patrimonial futuro o tribunal recorrido optou pela fórmula financeira de que se soccorreram os Acs. do S.T.J., de 2/2/93 e de 5/5/94, CJSTJ, tomos I e II, págs. 128 e 86, respectivamente, e Ac. da R.C., de 4/4/95, CJ, tomo II, pág. 23.
Já nos temos servido da tabela em causa usada em cálculo financeiro, para determinar o montante de prestações periódicas, quando pagas de uma só vez, como acontece no caso para determinação de pensões por invalidez nos acidentes de trabalho.
As fórmulas matemáticas além de propiciarem alguma uniformidade de jurisprudência, constituem um precioso auxílio no cálculo da indemnização a arbitrar, evitando ainda que a equidade corra o risco de se transformar em discricionariedade que não pode ser controlada pelas partes em litígio.
A fórmula conhecida traduz-se no seguinte:

N
(1 + i) - 1
C = -------------- X P
N
(1 + i) x i

C = capital a depositar no 1º ano;
P = prestação a pagar no 1º ano (€ 1.054,50 x 14 meses = € 14.763,00);
i = taxa de juro;
N = tempo provável de vida activa;
Nada há a censurar quanto à fórmula financeira usada.
Quanto aos factores que intervêm no cálculo da indemnização nada há observar, sendo que a senhora juíza teve o cuidado de explicar a forma como chegou à taxa de juro, fazendo uso, por um lado, da taxa de juro nominal líquida das aplicações financeiras ( r ) e, por outro lado, da taxa anual de crescimento de P ( k ), para que o resultado obtido seja a taxa de juro real líquida, de forma a contemplar a inflação anual, os ganhos de produtividade e as evoluções salariais por progressão na carreira.
Para determinar a taxa de juro usou seguinte fórmula:
1 + r
i = -------- - 1
1 + k
O tribunal recorrido considerou as taxas de 4% para “r” e 3% para “k”, tendo em conta actual taxa de inflação e a média corrente de remuneração das aplicações financeiras, resultando daqui que o valor de “i” é igual a 0,0097.
Com a fórmula usada obtém-se quantia de € 477.476,95.
Nas fórmulas financeiras não entram factores imponderáveis, como sejam a progressão na carreira ou aumento da capacidade aquisitiva ou eventual perda de trabalho, razão pela qual se deve entrar em conta com a equidade, nos termos do art. 566.º, n.º 3, do CC.
A correcção tanto pode ser elevando como diminuindo o valor encontrado para limites que se mostrem mais razoáveis com a situação do caso concreto.
A senhora juíza fundamentou, na aplicação da equidade ao caso concreto, embora não se concorde inteiramente com as razões alegadas por que baixou a indemnização relativamente ao valor obtido com a fórmula financeira, fixando-a em € 300.000,00 (trezentos mil euros).
De qualquer forma nunca agora em sede de recurso se poderia fixar a indemnização acima deste montante, por obediência do disposto no art. 684.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, que traduz o princípio da reformatio in pejus, em processo civil, conforme sustenta Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª Ed., pág. 142.
Nesta conformidade não há fundamento para alterar o montante da indemnização fixado pelo tribunal a quo para o dano patrimonial futuro.
*
Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decidem os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:
a) Conceder parcial provimento ao recurso do arguido Telmo Sequeira do Rosário, e, consequentemente, se declara a nulidade da sentença recorrida, na parte em que condenou o arguido pela contra-ordenação p. e p. pelo art. 81.º, n.º 1, 2 e 5, al. b), do Código da Estrada, relativamente à qual havia sido condenado em processo administrativo, no qual pagou a coima e cumpriu a inibição de conduzir.
b) Suprir a nulidade declarada, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do CPP, por os autos reunirem os elementos para esse efeito, o ponto 36, da matéria de facto provada, passa a ter a seguinte redacção:
«36. Para além dos factos descritos em 35, o arguido já foi julgado em processo administrativo pela contra-ordenação p. e p. pelo art. 81.º, n.º 1 e 5, al. b), do Código da Estrada, que lhe é imputada na acusação, por, no dia 18/6/2005, pelas 20 horas, na E.M. n.º 607, no sentido Freixeda do Torrão – Figueira de Castelo Rodrigo, conduzir o veículo ligeiro de passageiros, marca Renault 19, matrícula UF-66-76, com uma taxa de alcoolémia de 0,89 g/l no sangue, tendo pago a coima de 500,00 Euros e cumprido 60 dias de inibição de conduzir».
c) Absolver o arguido pela prática da contra-ordenação, por condução sob a influência do álcool, p. e p. pelo art. 81.º, n.º 1 e 5, al. b), do Código da Estrada.
d) Alterar o período da suspensão de execução da pena de prisão de 2 anos para 12 meses, por força do art. 50.º, n.º 5, do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
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d) Negar provimento ao recurso interposto pela demandada Companhia de Seguros Tranquilidade, SA.
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Pela improcedência parcial do recurso do arguido pagará este taxa de justiça que se fixa em 3UCs.
Custas cíveis a suportar pela demanda seguradora.