Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
310/18.0T8PNI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
SERVIDÃO DE PASSAGEM
CONSTITUIÇÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMPET. GENÉRICA DE PENICHE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 5º, Nº 3, 414º E 607º, Nº 5 DO NCPC; 1549º C. CIVIL.
Sumário: I - Estando a prova pessoal, essencial e determinante para a prova de certo facto, profundamente dividida, e inexistindo razão de ciência especial que possa atribuir maior relevo ao depoimento de certas testemunhas, o facto probando, quanto mais não seja por apelo ao artº 414º do CPC, não pode ser dado como provado.

II – Pedida a constituição de uma servidão de passagem constituída por usucapião, ela pode ser decretada ex vi de outro título, vg. por destinação do pai de família, pois que o módulo prático jurídico é respeitado pelo juiz e este não está sujeito às alegações quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas – artº 5º, nº 3 do CPC.

III – A servidão de passagem por destinação do pai de família implica, vg., a prova de que este quis ou teve necessidade de sujeitar o prédio ou a fração separada a tal encargo, não bastando para tal que ele tivesse caminhado de uns para os outros para aceder a várias estradas, e sem que nenhum deles estivesse encravado.

Decisão Texto Integral:








ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

C... (representado pelos seus herdeiros habilitados) e esposa M... instauraram contra A... e A... ação declarativa, de condenação, sob a forma de processo comum.

Pediram:

Sejam os réus condenados a reconhecerem o direito dos AA utilizarem e fazerem serventia do corredor de acesso dos Prédios Um, Dois e Três à Rua das ...; a demolirem o muro/a parede que levantaram e que passou a impedir a passagem até então existente dos Prédios Um e Dois ao corredor de acesso da Rua das ...; a absterem-se de praticar quaisquer atos que possam limitar ou condicionar o direito de os autores acederem e circularem pelo corredor de acesso à Rua das R....

Para tanto alegaram, em síntese:

São proprietários e legítimos possuidores de dois prédios que até 18 de Março de 1980 integraram e fizeram parte, ambos, de um único prédio urbano sito na Rua S..., da então freguesia da ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...

Em 18 de Março de 1980 foi feita, por escritura pública, a partilha do património dos pais do Autor marido, exclusivamente constituído pelo prédio urbano sito na Rua S..., números ..., na freguesia de ... (extinta freguesia da ...), concelho de ... – o prédio então constituído pelos actuais Prédios Um e Dois, e o Prédio Três.

Tal prédio foi então divido em duas verbas, uma das quais, por sua vez, dividida em dois lotes: Lote A (que deu origem ao prédio dos RR) composto de casas de habitação para nove inquilinos, com a superfície coberta de cento e cinquenta metros quadrados e logradouro e com duzentos e trinta metros quadrados, sito na Rua S..., n.º ..., (...); Lote B (que corresponde a um dos prédios dos AA) constituído por casa de habitação de rés-dochão e primeiro andar com a superfície coberta de cento e treze metros quadrados e páteo com sete metros quadrados, sito na Rua de S..., n.ºs ...

Os prédios concernentes aos dois lotes não estavam vedados, sendo os respetivos logradouros comunicantes entre si e os dois prédios urbanos partilhavam um acesso ao caminho público a que, entretanto, foi atribuído o nome de Rua das ...

Todos os referidos três prédios sempre partilharam – durante mais de cinquenta anos – , a Sul, um corredor de acesso à Rua das ... – o qual foi, durante mais de cinquenta anos, utilizado de forma contínua, pública e pacífica pelos sucessivos proprietários e possuidores de todos os imóveis e pelos seus sucessivos arrendatários. Sucede que, em data que os Autores não podem concretizar – mas seguramente há menos de dez anos – os Réus procederam a obras de recuperação do edifício existente no seu prédio.

Os Réus procederam à construção de um muro/uma parede que tapou a passagem e o acesso dos demais prédios à Rua das ..., impedindo, dessa maneira, que os Autores e os seus arrendatários pudessem continuar a utilizar o referido acesso à via pública.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Julgar a presente ação totalmente procedente, por provada, e, em consequência, condena os RR. A... e A... a reconhecerem o direito dos AA. C... (representado pelos seus herdeiros habilitados) e esposa M... a utilizarem e fazerem serventia do corredor de acesso dos Prédios Um, Dois e Três à Rua das ...; a demolirem o muro (/a parede) que levantaram e que passou a impedir a passagem até então existente dos Prédios Um e Dois ao corredor de acesso da Rua das ...; a absterem-se de praticar quaisquer actos que possam limitar ou condicionar o direito de os autores acederem e circularem pelo corredor de acesso à Rua das ...»

3.

Inconformados recorreram os réus.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

Inexistiram contra alegações.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º, nº 4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª - Alteração da decisão da matéria de facto.

2ª -  Improcedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº 607º, nº 5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, o que decorre da interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

5.1.2.

O caso vertente.

Pretendem os recorrentes a não prova do ponto 11, máxime na parte em que nele consta que a passagem  no corredor em causa era feita «à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja», ou seja, e nos seus dizeres, «pública a pacificamente».

Para tanto invocam, essencialmente, a prova pessoal produzida.

Já a julgadora fundamentou as respostas aos pontos de facto, máxime quanto a este, outrossim determinantemente, naquele tipo de prova.

Tal ponto tem o seguinte teor.

11. Desde há não menos de cinquenta anos e até à data a que se reporta Factos 14.) (2005), o corredor e portão no Prédio 3 sempre foram usados pelos donos e arrendatários dos Prédios Um e Dois para acederem à Rua das ..., à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, sob convicção de que se faziam usar de um direito próprio;

Foi apreciada a prova.

Desde logo há que verificar que a julgadora não cumpre cabalmente o dever de fundamentação.

Efetivamente, limita-se a fazer uma explanação meramente descritiva dos depoimentos, sem os analisar, ao menos suficientemente, criticamente.

Mesmo as menções por ela apostas de que uma testemunha depôs de forma «rigorosa e isenta» e que outra o fez «atabalhoada e hesitante», quedam-se nesta generalidade, abstração e conclusão, pois que não especifica, e, logo, convence, porque motivo assim taxou os depoimentos.

Ademais, opera uma análise meramente global e tabicada da prova, sem reportar,  como devia, concretamente cada meio de prova, rectius cada depoimento,  como fator alicerçante, a cada facto probando, ou, ao menos, a cada núcleo factual homogéneo.

Depois, e apreciada a prova, não se pode concluir,  sequer dentro da margem de álea em direito probatório  concedida e admissível, que o facto ora impugnado resultou provado.

Na verdade, a prova testemunhal é claramente contraditória e antinómica nesta particular.

Das sete ou oito testemunhas inquiridas, cerca de metade pronunciou-se no  sentido propugnado pelos autores –e nem sequer em toda a amplitude factual constante neste ponto – e a outra metade pronunciou-se em sentido oposto, ou seja, nunca terem visto ninguém passar no acesso à rua das rendilheiras pelo prédio que é atualmente dos RR.

Nenhuma testemunha apesentou uma especial e fidedigna razão de ciência que permitisse ao seu depoimento ganhar uma dignidade e relevância valorativa acrescidas.

Na verdade, todas as testemunhas falaram em função do que se iam apercebendo, ou por residirem nos prédios em causa, ou por morarem nas proximidades.

Há ainda que relevar o facto de algumas testemunhas apresentadas pelos próprios autores  -  a C... e a M... – verbalizarem, com maior ou menor acuidade e abrangência,  no sentido oposto ao  por eles alegado e aqui neste ponto provado.

Finalmente, tendo o acesso das casas 1 e 2 que, alegadamente, servia para desembocar na rua das rendilheiras, sido cortado em 2005, não se alcança, em função  da necessidade que tal acesso representava para os proprietários ou os ocupantes de tais casas, a razão pela qual a presente ação apenas foi instaurada 13 anos depois.

Enfim, tudo visto e ponderado, conclui-se que, em função da prova produzida, no mínimo existe uma forte e insanável dúvida, a qual se  situa para além da aludida margem de álea, quanto à passagem dos donos e residentes dos prédios 1 e 2 através do logradouro do prédio 3, pelo menos de um modo público e pacífico, para acederem à aludida rua  das ...

Ora como este facto aproveitaria aos autores, tal dúvida contra eles tem de ser resolvida, pelo que ele não pode ser dado como provado – artº 414º do CPC.

5.1.3.

Por conseguinte e no deferimento da presente pretensão, os factos apurados são os seguintes:

...

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

A julgadora decidiu, de jure, nos seguintes, sinóticos e determinantes,  termos:

«Para que seja possível conhecer a procedência do desiderato final da ação acima enunciado, teremos que analisar do ponto de vista jurídico qual o enquadramento normativo que habilita os AA. a reivindicarem tal direito, sendo que inevitavelmente o mesmo apenas se poderá louvar numa servidão de passagem pré-existente.

Apesar de não ter sido peticionada a declaração de tal servidão, cumpre fazer a integração dos factos ao direito e assim desvendar, a dada altura, a sua existência ou não.

Nos termos do disposto no art. 1547.º, n.º 1 do referido diploma legal temos que um dos modos de constituição das servidões prediais é a destinação do pai de família.

O artigo 1549.º do mesmo Código estabelece que “se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”.

Assim para que se verifique a constituição de servidão por destinação de pai de família é necessário que estejam reunidos os seguintes requisitos: que num determinado prédio haja sinais visíveis e permanentes de serventia de uma fração do prédio relativamente a outra ou que existam tais sinais de serventia de um prédio relativamente a outro no mesmo dono.

Trata-se da possibilidade de se constituir uma servidão com base na situação que está criada  entre dois prédios (ou duas frações do mesmo prédio) durante o período em que ambos pertenciam ao mesmo proprietário.

A mudança de domínio pode ocorrer por qualquer modo, sendo ainda necessário, para que a servidão se constitua, que o proprietário não se lhe oponha ao tempo da sua constituição, requisito que a nossa lei refere ao dispor que pode declarar-se outra coisa ao tempo da separação “no respetivo documento”.

No caso vertente não se contesta a existência de sinais visíveis e permanentes de um corredor que permitia a ligação dos prédios (atualmente do dois ao prédio três e dali à atual rua das ...). Tais prédios pertenciam anteriormente a um só proprietário e, na sucessão, transmitiu-se para três titulares diferentes, tendo actualmente os AA. reunido a propriedade do prédio 1 e 2, sem que houvesse qualquer menção a que os bens se encontravam livre de quaisquer ónus ou encargos.

Ainda assim sempre diremos, citando o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.04.1993

, “As servidões constituídas por destinação de pai de família têm origem num acordo e nos presentes autos verifica-se que: a)Os dois prédios faziam parte de um só prédio que pertenceu ao mesmo dono; b)Existem sinais visíveis e permanentes que revelam a serventia de um para o outro; c)Verifica-se a separação dos prédios e não existe qualquer declaração oposta à constituição da servidão. II. Permitindo a lei que por acordo se possa criar quaisquer servidões, seja qual for a sua necessidade, não se compreenderia que elas se extinguissem por se tornarem desnecessárias. III. Tendo as servidões constituídas por destinação de pai de família, origem num acto de vontade, a sua extinção pelo não uso violaria o princípio da autonomia privada. IV. Só as servidões constituídas por usucapião se poderão extinguir com o fundamento no não uso, mas já não as constituídas por acordo, tendo origem em contrato, testamento e/ou destinação de pai de família.”

Analisada a factualidade provada, dúvidas não restam que os RR. desrespeitaram a servidão constituída aquando da divisão dos prédios, sendo que assiste aos AA. o direito de acederem à Rua das ... pelo corredor que atravessa o prédio três.

5.2.2.

Dilucidemos.

5.2.2.1.

Não há duvida que os autores impetraram a constituição de uma servidão que, ainda que a não classifiquem, mas como bem foi interpretado na sentença, apenas pode ser taxada como de passagem.

Esta servidão, como qualquer outra, pode ser constituída por contrato, testamento, usucapião, ou destinação do pai de família – artº 1547º do CC.

In casu os demandantes invocaram a usucapião.

Mas perante os factos ora provados ela não pode ser concedida.

Na verdade, não se provando que a alegada passagem pela corredor em causa se tenha efetivado, desde logo, pacífica e públicamente, o prazo da usucapião não começa a correr e, assim, não pode relevar.

 Pois que ele só  se inicia e releva desde o momento em que a posse se torna pacífica e pública – artº1297º do CC.

Assim, e independentemente da alegada passagem dos donos e moradores dos prédios 1 e 2 pelo corredor em causa para aceder à rua das ..., e independentemente do período de  tempo em que tal tenha acontecido, a mesma não pode ser considerada e relevada para permitir se lhes conceda o direito a tal servidão de passagem.

Acresce que a servidão de passagem apenas pode ser concedida, para além do mais exigido, se o prédio dominante não tiver comunicação com a via pública (encrave absoluto) ou a mesma implicar excessivo e intolerável incómodo ou dispêndio (encrave relativo), ou ela seja insuficiente – artº 1550º do CC.

Ora no caso sub judice nem tal foi alegado e, inclusive,  resulta do processo que os prédios 1 e 2 têm acesso direto para a rua de S. J...

Ademais, da interpretação conjugada dos artºs 1550º e 1551º resulta que a servidão legal de passagem apenas, por via de regra, pode recair sobre prédios rústicos e não já sobre prédios urbanos, tout court.

Isto por se entender que neste caso a servidão prejudicaria o recato, a intimidade e o sossego de que deve rodear-se a fruição de tais prédios, maxime se forem destinados a habitação – P. Lima e A. Varela, Anotado,  3º, 1972, p. 586 e Tavarela Lobo, in Mudança e Alteração da Servidão, pág. 19.

Esta restrição reporta-se, inequivocamente, à própria edificação em si mesma.

Mas, sensata e razoavelmente, deve ainda abranger a edificação que, não obstante ter um quintal ou logradouro, o mesmo é de área de tal modo exígua que a constituição da servidão na sua superfície implicaria a lesão dos aludidos direitos que se pretendem tutelar com a sua proibição a incidir sobre tal edificação. cfr.  Acs. do STJ de  20.10.1992, 09.12.1992 e 06.10.1994, in dgsi.pt, ps. 082263,  082767 e 085483, respectivamente, a contrario sensu.

No caso vertente e perante a exiguidade do corredor em causa parece que esta extensão de proibição é de acolher.

Mesmo que assim não fosse, sempre a lei permite ao dono do prédio urbano, obviar à servidão adquirindo o prédio dominante encravado.

5.2.2.2.

A julgadora, porém, decidiu a  causa com base na constituição do pai de família.

É questionável, como aventado pelos recorrentes,  que o pudesse fazer.

Mas admitimos que sim.

Na verdade o juiz não está sujeito à alegações das partes no que tange à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – artº 5º, nº 3 do CPC.

Posto é que não se afaste do módulo fáctico-jurídico delineado pelas partes; e, no caso, não parece ter-se afastado, pois que, afinal, estamos apenas perante saber se aos autores assiste, ou não, jus à servidão de passagem.

Com que fundamento jurídico é quid que, como se viu, em última analise compete ao julgador averiguar.

Analisemos, pois, o bem, ou menos bem, fundado da sentença neste particular.

Tal como nela expendido a título de citação, os requisitos da servidão com base no artº 1549º são os seguintes:

- Os dois prédios, ou frações do mesmo prédio tenham pertencido ao mesmo dono;

- A existência de sinais visíveis e permanentes que revelam uma relação estável de serventia de um prédio para com o outro;

- Que os prédios, ou as frações dos prédios, se separem quando ao seu domínio e não haja no documento respetivo nenhuma declaração oposta à constituição do encargo.

A servidão por destinação do pai de família representa um encargo predial que se constitui no preciso momento em que os prédios ou frações de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes.

Acresce que:

 « Os sinais hão-de revelar a serventia de um prédio para com o outro. Isto significa que hão-de ter sido postos ou deixados com a intenção de assegurar certa utilidade a um, à custa ou por intermédio do outro» -  Antunes Varela e Pires de Lima, in CC anotado, 2ª edição, Vol.III, pag. 634.

Na situação concreta não há duvidas que se encontram verificados o 1º e 3º dos mencionados pressupostos, na medida em que os dois prédios em causa pertenceram anteriormente ao mesmo dono, se separaram e inexiste  no título da  separação obstáculo à constituição do encargo.

Mas será que se verifica o 2º dos pressupostos exigidos, ou seja, a existência de sinais visíveis e permanentes que revelam uma relação estável de serventia de um prédio para com o outro?

Não nos parece.

Como defendem os recorrentes, não se provaram factos que convençam ou inculquem suficientemente a ideia que o pai de família quis estabelecer uma relação de sujeição do prédio 3 e do respetivo logradouro aos prédios 1 e 2.

Antes pelo contrário, e numa sensata e adequada exegese dos factos apurados tem de concluir-se que tal sujeição inexistiu.

Efetivamente provou-se que:

9. J..., autor da sucessão referida em Factos 1.), quando em vida atravessava o logradouro do Prédio 3 pelo sobredito corredor, para, designadamente, visitar as instalações dos prédios, todos localizados na Rua de S. J..., ou para regressar à então sua residência, sita no Prédio Um;

10. J... tanto saía do logradouro do Prédio 3, para aceder ao logradouro do Prédio 2 e daqui à Rua de S. J..., onde viveu, no Prédio 1 como, por vezes, saindo do logradouro do Prédio 2, confinante com o logradouro do Prédio 3, acedia também ao logradouro deste último e, daqui, à Rua das ...;

Por aqui se alcança que o dito J... circulava, indiferenciadamente, como dono, pelos prédios, para aceder a uns e outros, quer para ir para a rua de São J..., quer para  se deslocar para a rua das ..., e sem qualquer intuito ou necessidade de sujeitar algum deles a servidão de passagem.

O que bem se compreende, pois que, como se viu, nenhum deles estava encravado, pelo menos absolutamente, pois que todos eles tinham e têm acesso à rua de S. J... e o nº 3 à rua das ...

Procede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC

I - Estando a  prova pessoal, essencial e determinante  para a prova de certo facto, profundamente dividida, e inexistindo razão de ciência  especial que possa atribuir maior relevo ao depoimento de certas testemunhas, o facto probando, quanto mais não seja por apelo ao artº 414º do CPC, não pode ser dado como provado.

II – Pedida a constituição de uma servidão de passagem constituída por usucapião, ela pode ser decretada ex vi de outro título, vg. por destinação do pai de família, pois que o módulo prático jurídico é respeitado pelo juiz e  este  não está sujeito às alegações quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas – artº 5º nº3 do CPC.

III – A servidão de passagem por destinação do pai de família implica, vg., a prova de que este quis ou teve necessidade de sujeitar o prédio ou a fração separada a tal encargo, não bastando para tal que ele tivesse caminhado de uns para os outros para aceder a várias estradas, e sem que nenhum deles  estivesse encravado.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a sentença, e, consequentemente, absolver os réus do pedido.

Custas pelos autores.

Coimbra, 2021.11.09.

                                                                  Carlos Moreira

                                                                  João Moreira do Carmo

                                                                  Fonte Ramos