Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1878/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
COMÉRCIO
RESOLUÇÃO
NÃO PAGAMENTO DA RENDA
ENCERRAMENTO DO ESTABELECIMENTO POR MAIS DE UM ANO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
PELO INQUILINO
Data do Acordão: 07/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 64º, Nº 1, ALS. A) E H), DO RAU ; 428º A 431º DO C. CIV. .
Sumário: I – Tanto no plano doutrinal, como jurisprudencial, admite-se a aplicação do instituto da excepção do não cumprimento – regulado nos artºs 428º a 431º do C. Civ. - ao contrato de arrendamento, designadamente por parte do arrendatário face à perda do direito do gozo da coisa locada imputável ao locador, ou mesmo devido a circunstâncias fortuitas, independentemente da vontade do locador, justificada precisamente pelo carácter sinalagmático do contrato .

II – Deste modo, se o locatário paga a renda e o locador não assume a prestação positiva de manutenção do gozo da coisa, pode aquele suspender o pagamento de toda a renda, tratando-se do não cumprimento que exclua totalmente o gozo da coisa, ou de parte da renda sendo a privação parcial .

III – Sendo elementos essenciais do contrato a obrigação de proporcionar o gozo, a cargo do locador, e a de pagar a renda, por parte do locatário, ambas estão ligadas por uma relação de sinalagma, que não fica destruído pela diversa natureza das prestações – continuada ou duradoura (do locador) e periódica ou repetida (do locatário) .

IV – No âmbito das prestações que se destinam a assegurar o gozo do arrendatário, o RAU, nos artºs 11º a 18º, veio especificar o tipo de obras, distinguindo entre obras de beneficiação e de conservação, e dentro destas as de conservação ordinária e extraordinária .

V – Cumprindo ao senhorio a obrigação de assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para o fim a que se destina, devendo efectuar todas as reparações ou outras despesas essenciais ou indispensáveis, se o não fizer, após aviso do locatário, falta culposamente ao cumprimento da obrigação, sendo responsável pelos prejuízos que cause ao credor, nos termos dos artºs 562º e segs. do C. Civ. .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

As Autoras – A... e B... ( por ser incapaz, representada por C... ) – instauraram na Comarca de Leiria acção declarativa com forma de processo ordinário, contra os Réus - D... e marido, E....
Alegaram, em resumo:
As Autoras são comproprietárias de um prédio urbano, composto de rés-do-chão, 1º e 2º andares, sito em Leiria.
Por escritura pública de 29/4/68, a 2ª Autora e a sua falecida mãe deram de arrendamento a F... uma parte do referido rés-do-chão, para o exercício do comércio ( casa de pasto, taberna, café, cervejaria, salsicharia, mercearia ), pela renda anual de 15.600$00.
Em 17/12/90, F... trespassou aos Réus dois estabelecimentos ( salsicharia/talho e restaurante ), situados no prédio arrendado, sendo a renda actual de 46.535$00.
Os Réus deixaram de pagar as rendas desde Março de 1999 e de exercer a actividade comercial no prédio arrendado há mais de dois anos.
Com fundamento no art.64 nº1 a) e i) do RAU, pediram cumulativamente:
a) - Que se decrete a resolução do referido contrato de arrendamento;
b) – A condenação dos Réus a despejar imediatamente o locado, deixando-o livre e devoluto de pessoas e bens, e em bom estado de conservação e limpeza;
c) – A pagarem as rendas vencidas até Outubro de 2001 no montante de Esc. 1.489.120$00, os respectivos juros vencidos à taxa legal de 7%, desde a data do vencimento da cada uma das rendas em divida no valor de Esc. 143.328500 e rendas vincendas, e respectivos juros, até efectiva entrega do locado.
Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:
Arguíram a excepção dilatória da incapacidade judiciária da 2ª Ré e a excepção peremptória do incumprimento do contrato, pois deixaram de pagar as renda, em virtude das Autoras não terem feito obras no prédio, tendo sofrido prejuízos patrimoniais.
Concluíram pela improcedência da acção e em reconvenção pediram a condenação das Autoras não só a dar como pagas todas as rendas em dívida como ainda em entregar aos réus, a título de indemnização, a quantia de Euros: 25.947,47 (Esc.: 5.202.000$00) e a condenação como litigantes de má fé, em multa e numa indemnização de 1.496,39 euros.
Responderam as Autoras, contraditando a defesa por excepção e a reconvenção.
No saneador relegou-se para final o conhecimento das excepções, afirmando-se quanto ao mais a validade e regularidade da instância.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, após considerar sanada a incapacidade judiciária da 2ª Ré, na parcial procedência da acção e da reconvenção, decidiu:
a) - Decretar a resolução do contrato de arrendamento;
b) – Condenar os Réus a despejar imediatamente o locado, deixando-o livre e devoluto de pessoas e bens, e em bom estado de conservação e limpeza;
c) – Condenar os Réus no pagamento de metade do valor das rendas vencidas até Outubro de 2001, no montante de € 3.713,85 (três mil setecentos e treze euros e oitenta e cinco cêntimos) - Esc. 744.560$00, nos respectivos juros de mora vencidos às taxas legais de 7% até 30/04/2003 e de 4% a partir de 01/05/2003, desde a data do vencimento da cada uma das rendas em dívida no valor de € 3.713,85, e metade das rendas vencidas e vincendas desde Outubro de 2001, e respectivos juros na forma atrás indicada, até efectiva entrega do locado;
c) - Declarar não serem exigíveis aos Réus reconvintes metade do valor das rendas vencidas até Outubro de 2001, no montante de € 3.713,85 (três mil setecentos e treze euros e oitenta e cinco cêntimos) - Esc. 744.560$00, e respectivos juros de mora vencidos às taxas legais de 7% até 30/04/2003 e de 4% a partir de 01/05/2003, desde a data do vencimento da cada uma das rendas em dívida no valor de € 3.713,85, e metade das rendas vencidas e vincendas desde Outubro de 2001, e respectivos juros na forma atrás indicada, até efectiva entrega do locado;
d) - Absolver as Autoras reconvindas do pedido dos Réus reconvintes de aquelas darem como pagas todas as rendas em dívida como ainda em entregarem aos réus, a título de indemnização, a quantia de € 25.947,47 (Esc. 5.202.000$00):
e) - Absolver as Autoras reconvindas do pedido de condenação como litigantes de má fé e respectiva condenação em montante não inferior a € 1.496,39 (Esc. 300.000$00) e indemnização do mesmo montante a entregar aos réus.

Inconformados, os Réus recorreram de apelação, com as conclusões que se passam a resumir:
(…)
Contra-alegaram as Autoras, preconizando a improcedência do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts. 684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).
Considerando as conclusões que os apelantes extraíram da motivação, as questões essenciais que importa decidir são a seguintes:
1ª) – Impugnação da matéria de facto ( quesitos 5º, 7º, 15º, 21º, 22º e 26º da base instrutória );
2ª) – A excepção do não cumprimento do contrato, como facto impeditivo ao direito potestativo de resolução.

2.2. – Os factos provados:
(…)
2.3. - 1ª QUESTÃO / Impugnação da matéria de facto:
(…)
2.4. - 2ª QUESTÃO / O direito de resolução e a excepção do não cumprimento do contrato:
A pretensão das Autoras ( senhorias ) reconduz-se ao exercício do direito potestativo de resolução do contrato de arrendamento, arrancando de duas causas de pedir diversas: o não pagamento da renda e o encerramento do locado por mais de um ano ( art.64 nº1 a) e e h) do RAU ).
Não está em causa a qualificação e validade do contrato de arrendamento para o exercício do comércio, outorgado em 29/4/68.
A resolução dos contratos de arrendamento por parte do senhorio tem um regime específico, já que está restringida ao princípio da tipificação, enunciando a lei os casos de incumprimento que fundamentam o direito potestativo.
Comprovado que está a falta de pagamento da renda desde Março de 1999 e o encerramento do locado há mais de dois anos, os Réus defenderam-se com a excepção do não cumprimento, pelo que tratando-se de facto impeditivo estavam onerados com a respectiva prova ( art.342 nº2 do CC ).
O instituto da chamada “ exceptio non adimpleti contratus “, regulado nos arts. 428 a 431 do CC, tem o seu âmbito de aplicação nas obrigações sinalagmáticas, impondo, no entanto, que se tome em conta o princípio da boa fé e o apelo à ideia de abuso de direito ( arts.762 nº2 e 334 do CC ).
É comumente qualificada de excepção dilatória de direito material ou substantivo: é excepção material porque fundada em razões de direito substantivo, e dilatória, por que não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente ( cf. por ex., CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág.329 e segs., JOSÉ ABRANTES, A Excepção do Não Cumprimento, pág.127 e segs. ).
Tanto no plano doutrinal, como jurisprudencial, admite-se a aplicação do instituto da excepção do não cumprimento ao contrato de arrendamento, designadamente por parte do arrendatário face à perda do direito do gozo da coisa locada imputável ao locador, ou mesmo devido a circunstâncias fortuitas, independentemente da vontade do locador, justificada precisamente pelo carácter sinalagmático do contrato.
Deste modo, se o locatário paga a renda e o locador não assume a prestação positiva de manutenção do gozo da coisa, pode aquele suspender o pagamento de toda a renda, tratando-se do não cumprimento que exclua totalmente o gozo da coisa, ou de parte da renda, sendo a privação parcial.
E afora a lei apenas prever a hipótese de não haver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, entende-se que a excepção pode ser invocada ainda que haja vencimentos diferentes, por aquele dos contraentes cuja prestação deva ser feita depois da do outro, só não podendo opô-la o contraente que devia cumprir primeiro ( neste sentido, P.LIMA/A VARELA, Código Civil Anotado, vol.I, 4ª ed., pág.406; CALVÃO DA SILVA, loc.cit., pág.331; JOÃO ABRANTES, loc.cit., pág.62 a 67; ALMEIDA COSTA, RLJ ano 119, pág.141 e segs., em anotação favorável ao Ac do STJ de 11/12/84; Ac RL de 9/5/96, C.J. ano XXI, tomo III, pág.87; Ac RP de 11/4/94, C.J. ano XIX, tomo II, pág.209; Ac RC de 27/6/95, C.J. ano XX, tomo III, pág.47 ).
É certo que alguma jurisprudência tem decidido que a excepção do não cumprimento do contrato não tem aplicação ante o incumprimento da eliminação dos defeitos pelo senhorio, com o argumento da falta de interdependência ou reciprocidade das obrigações, visto que o dever do locador em reparar as deficiências do locado não é correspectivo do dever do arrendatário pagar pontualmente as rendas ( por ex., Ac STJ de 6/5/82, BMJ 317, pág.239, Ac RC de 29/10/96, C.J. ano XXI, tomo IV, pág.45 ).
Todavia, não parece ser esta a melhor doutrina, porquanto sendo elementos essenciais do contrato a obrigação de proporcionar o gozo, a cargo do locador, e a de pagar a renda, por parte do locatário, ambas estão ligadas por uma relação de sinalagma, que não fica destruído pela diversa natureza das prestações – continuada ou duradoura ( do locador ) e periódica ou repetida ( do locatário ).
Na verdade, como de forma expressiva se argumenta no Ac RL de 6/4/95 ( C.J. ano XX, tomo II, pág.111 ), “ salta aos olhos que a importância e essencialidade da obrigação do locador proporcionar ao locatário o gozo da coisa locada fazem-na equivaler a todas as obrigações do locatário, porque, naturalmente, todas elas estão conexionadas e dependentes da detenção e uso do locado pelo arrendatário. Portanto, se este ficar, sem culpa, privado totalmente do gozo da coisa locada, é justo que possa recusar o cumprimento de todas as suas obrigações, invocando a excepção do nº1 do art.428 do CC, enquanto o locador não cumprir aquela sua obrigação de tornar habitável o locado “.
Neste contexto, para se aquilatar da relevância da “ exceptio “ impõe-se saber se as Autoras ( senhorias ) não cumpriram o contrato, postergando o dever essencial de manutenção do gozo da coisa locada para o fim a que se destina.
Com efeito, faz parte do chamado “ programa de prestação “ emergente da própria relação locatícia, a obrigação positiva de manutenção do gozo da coisa, a cargo do senhorio ( art.1031 alínea b) do CC ).
O problema situa-se em sede de responsabilidade do senhorio pelos vícios da coisa locada ( arts.1031 b), 1032, 1034 do CC ), pelo que o direito à reparação assume natureza contratual, visto derivar do incumprimento do contrato por parte do locador.
No âmbito das prestações que se destinam a assegurar o gozo do arrendatário, o Regime do Arrendamento Urbano ( RAU ) ( arts.11º a 18º ) veio especificar o tipo de obras, distinguindo entre obras de beneficiação e de conservação, e dentro destas as de conservação ordinária e extraordinária.
Assente, portanto, que o senhorio tem a obrigação de assegurar ao locatário o gozo da coisa para o fim a que se destina, devendo efectuar todas as reparações ou outras despesas essenciais ou indispensáveis, mesmo que a sua necessidade resulte do desgaste do tempo ou de caso fortuito, se o não fizer, após aviso do locatário, falta culposamente ao cumprimento da obrigação, sendo responsável pelos prejuízos que cause ao credor ( art.798 do CC), nos termos dos arts. 562 e segs. do CC ( cf., por ex., Ac STJ de 30/1/81, BMJ 303, pág.212, de 11/2/92, BMJ 414, pág.464, Ac RL de 6/4/95, C.J. ano XX, tomo II, pág.111 ).
As reparações ou despesas que se inscrevem no dever genérico do art.1031 alínea b) do CC têm de ser pedidas pelo locatário, sobre quem impende o dever jurídico – e não o mero ónus – de avisar o locador dos vícios que descubra na coisa ou dos perigos que a ameaçam, para que este os possa providenciar ( art.1038 alínea h) do CC ).
E este aviso deve ser feito de imediato, não lhe sendo aplicável o prazo fixado no art.916 nº2 do CC, relativamente à denúncia do defeito da coisa, na venda de coisa defeituosa ( P.LIMA-A VARELA, Código Civil Anotado, vol.II, 2ª ed., pág.351 ).
Não se tratando de defeito da coisa locada anterior ou contemporânea da entrega, não há lugar à presunção do conhecimento pelo locador ( art.1032 a) do CC ), e, por outro lado, segundo os elementos disponíveis, não está demonstrado que as Autoras soubessem ou devessem saber tal facto, pelo que impendia sobre os Réus a obrigação de as avisar ( arts.1033 d) e 1038 h) do CC), cuja interpelação podia ser feita extra-judicialmente, sem sujeição a quaisquer formalidades.
Comprovou-se que em 10/8/92, a Ré mulher solicitou por escrito à Autora A... autorização para realizar obras no locado, ao que esta respondeu que só depois de falar com o seu advogado se pronunciaria, mas que até lá não dava autorização, desconhecendo-se que tipo de obras e a que de destinavam.
Sabe-se que em 8/6/94, através de vistoria realizada pela Câmara Municipal de Leiria, verificou-se existir um buraco no tecto na zona da cozinha do restaurante, por onde escorriam imundices provenientes da instalação sanitária existente no piso superior, pondo em risco a normal laboração da cozinha.
Acontece que só em 9/4/96 a Ré avisou as Autoras, reclamando obras ( reparação do buraco no tecto e substituição completa das canalizações ), por continuarem os maus cheiros provenientes das escorrências da casa de banho do andar superior das Autoras ( senhorias ) ( r.q.11º e 12º ), pois não comprovou que o fizesse em 1/10/93, face à resposta negativa ao quesito 5º.
Sendo assim, desde logo se evidencia que os Réus postergaram a obrigação de avisar imediatamente as senhorias, expressamente imposta no art.1038 alínea h) do CC, e tem-se entendido que o locatário não pode aproveitar-se do disposto no art.1032 do CC (não cumprimento por parte do locador ) se não tiver avisado imediatamente o locador do defeito ( cf. por ex., o Ac STJ de 14/4/72, BMJ 216, pág.137, votos de vencido no Ac do STJ de 23/2/73, BMJ 224, pág.150 ), devendo considerar-se o contrato correctamente cumprido, sem que o locador fique obrigado a eliminar os defeitos ou a indemnizar o locatário, por suporem o assentimento deste ( cf. P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, vol.II, 2ª ed., pág.350 e 351 ).
Em todo o caso, mesmo a admitir-se o contrário, ou seja, a obrigação das senhorias em realizar as obras reclamadas, também os Réus não tinham fundamento legal para suspender o pagamento integral da renda.
Não estando demonstrado que as infiltrações ocorressem por culpa dos Réus, nomeadamente pelo alegado entupimento das caixas de esgotos, as obras são da responsabilidade das Autoras ( senhorias ), configurando-se como obras de conservação ordinária, nos termos do art.11 nº2 c) do RAU ( cf., por ex., Ac RL de 6/4/95, C.J. ano XX, tomo II, pág.111 ).
Coloca-se a questão de saber se a mora das locadoras na realização das obras legitimava os Réus a suspenderem o pagamento integral da renda.
A sentença recorrida, com proficiente retórica argumentativa, considerou que os Réus não podiam suspender o pagamento da renda na totalidade, designadamente porque as infiltrações apenas afectavam o restaurante e já não o talho/salsicharia.
Na verdade, existindo um único contrato de arrendamento, a privação parcial do gozo do locado, imputável ao locador, apenas legitima o locatário a suspender o pagamento de parte de renda ( cf., por ex., ALMEIDA COSTA, RLJ ano 119, pág.145 ).
Com efeito, tal como se observou na sentença, relativamente ao espaço do talho/salsicharia os Réus nada alegaram que justificassem a recusa do pagamento da renda.
Muito embora os apelantes afirmem agora que os cheiros afectam o espaço locatício destinado ao talho/salsicharia, a asserção não tem qualquer suporte factual.
Consideram os apelantes que a responsabilidade das Autoras é delitual ( art.483 do CC ), já que habitando por cima do estabelecimento provocaram tais danos, com o propósito de criarem uma situação favorável ao despejo, logo actuando com abuso de direito ( art.334 do CC ). Trata-se, porém, de uma alegação gratuita, sem a mínima correspondência na factualidade apurada.
Por outro lado, carece de consistência a objecção dos apelantes no sentido de competir às Autoras o ónus da prova da inexistência de razões justificativas para o encerramento do restaurante e a recusa das rendas, argumento já então irritamente sustentado na contestação ( art.11º ).
Ao discorrer sobre a evolução das regras do ónus da prova, ANTUNES VARELA ( RLJ ano 116, pág.333 e segs. e ano 117, pág.26 e segs. ) ensina que a distinção entre factos constitutivos e os factos impeditivos, modificativos ou extintivos deve partir-se, não no “critério da normalidade”, mas antes na “ teoria da norma “, segundo a qual “ a repartição do ónus da prova entre as partes tem de processar-se de harmonia com a previsão ( geral e abstracta ) traçada na norma jurídica que serve de fundamento à pretensão de cada uma delas ( teoria da norma )“.
Nesta medida, ao autor compete provar os factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido, ou seja, terá o ónus de provar os factos constitutivos correspondentes à situação de facto traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão ( art.342 nº1 do CC ).
Ao réu incumbirá a prova dos factos correspondentes à previsão ( abstracta ) da norma substantiva em que baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito jurídico pretendido pelo autor ( art.342 nº2 do CC ).
Ora, segundo a “teoria da norma”, às Autoras apenas competia alegar e provar os factos constitutivos do direito de resolução previstos no art.64 nº1 alíneas a) e h) do RAU ( falta de pagamento da renda e conservar encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado ) - o que lograram demonstrar - e aos Réus, como facto impeditivo, a excepção do não cumprimento do contrato ou a situação de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos, estas relativamente à causa resolutiva da alínea h).
Como se anotou, os Réus não tinham fundamento para a recusa do pagamento integral da renda, verificando-se, por isso, a causa de resolução do art.64 nº1 a) do RAU, considerando a sentença ser proporcional, nos termos do art.1040 nº1 do CC, a redução das rendas a metade, com vista à condenação das rendas vencidas.
No que toca à segunda causa de resolução ( encerramento do locado ) entende determinada jurisprudência que a falta de realização de obras pelo senhorio não pode ser considerada como excepção do contrato não cumprido, por não ter, como correspectivo o direito dos arrendatários em abandonar o locado enquanto aquele as não fizer, mas os procedimentos previstos nos arts.14 e 16 do RAU ( cf., por ex., Ac RP de 11/4/94, C.J. ano XIX, tomo II, pág.209 ).
Não procedendo a “ exceptio “ ( art.428 do CC ), como impedimento ao despejo, restará, então, averiguar se ocorre motivo de “ força maior “ para os Réus se oporem à resolução com fundamento no nº1 alínea h) do RAU, como parece resultar, pelo menos implicitamente, das alegações.
A lei não define o conceito de “ força maior “ e, para o efeito, a jurisprudência começou a correlacioná-lo com a norma do art.790 nº1 do CC, segundo o qual a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor ( cf., por ex., em matéria de resolução do contrato de arrendamento, por falta de residência permanente, Ac STJ de 6/1/83, BMJ 323, pág.352, Ac RP de 7/4/87, C.J. ano XXII, tomo II, pág.232 ).
O Prof. ANTUNES VARELA, em anotação ao Ac STJ de 6/1/83, na RLJ ano 119, pág.192 e segs., baseando-se em razões de ordem histórica, descola a noção de força maior do art.790 nº1 do CC dando-lhe uma outra plasticidade, para concluir que o “ essencial é que o caso de força maior – o tal facto cujos efeitos naturais superam a vontade normal do homem – torne compreensível, justificável, perfeitamente razoável, aos olhos de um julgador compreensivo e avisado, seja o facto da não ocupação, seja o da não fixação de residência permanente do imóvel arrendado “.
Dir-se-á, nesta perspectiva, que a compreensão do conceito operativo de “ força maior “ não está no facto exterior, em si mesmo considerado, mas na sua relação com a utilidade do bem, segundo a respectiva afectação contratual.
Utilizando o mesmo critério, num caso de resolução do contrato de arrendamento para comércio, o Ac RL de 24/3/92 ( C.J. ano XVII, tomo II, pág.142 ) ensaiou a noção de “ força maior “ como sendo “ o evento natural ou de acção humana ou de terceiro ( com exclusão, pois, da conduta do locador, do locatário ou de pessoa com este relacionada ) que, embora pudesse prevenir-se, não poderia ser evitado, nem em si, nem nas suas consequências danosas, que torne compreensível, aceitável, perfeitamente explicável que o locatário conserve encerrado por mais de um ano, conscientemente, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal “.
A este propósito, justificou-se na sentença, com apoio na factualidade apurada, que as deficientes condições do restaurante, causadas pelas infiltrações, não foram as únicas causas para os cessionários não prosseguirem a exploração, sendo legítimo inferir-se, como bem se observou, que os Réus, ao colocarem o aviso “ Cede-se à Exploração “, não consideravam tais deficiências impeditivas à locação do estabelecimento.
Por outro lado, a imprevisibilidade e a inevitabilidade que caracteriza o caso de força maior não se coaduna, em rigor, com o encerramento do locado por carência de obras, uma vez que estas são normalmente previsíveis e evitáveis por acto humano ( do senhorio ou do próprio inquilino ) ( cf., por ex., Ac RP de 21/1/92, C.J. ano XVII, tomo I, pág.227; Ac RL de 6/4/95, C.J. ano XX, tomo II, pág.111 ).
Em resumo, porque a sentença recorrida não violou, por erro de interpretação/aplicação as normas jurídicas indicadas, improcede a apelação.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar os apelantes nas custas.
+++
Coimbra, 18 de Julho de 2006.