Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
74/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: FALÊNCIA
Data do Acordão: 03/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART.º 63.º DO CREEF
Sumário:

I – A norma estabelecida no artigo 63º do CREEF é imperativa, no sentido de afectar os direitos dos credores que votaram a providência de recuperação contra os terceiros garantes da obrigação e, mesmo que assim não fosse, a renúncia antecipada ao respectivo direito seria nula por contrária à ordem pública.
Decisão Texto Integral:
Acordam, na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de agravo nº 74/04, vindo do 3º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Aveiro (processo especial de falência nº 3846/03.4):
I – Relatório.
1. A C, S.A., requereu, em 24 de Julho de 2003, a declaração de falido de J.
Fundamentou o pedido no facto de o requerido ter avalizado livranças em branco, subscritas por “E, S.A.”, com autorização de preenchimento em determinadas circunstâncias; verificadas estas, o requerido não pagou; a avalizada requereu processo especial de recuperação de empresa, no qual foi aprovada uma medida de gestão controlada; o requerido assinou declaração a renunciar aos direitos previstos no artigo 63º do Código de Processo Especial de Recuperação de Empresas e de Falências (CPEREF); o requerido não tem bens nem crédito bancário.
2. O Sr. Juiz mandou arquivar o processo por considerar que o requerido não estava em situação de incumprimento, uma vez que a requerente aprovara, em 7 de Maio de 2002, a referida medida de recuperação da avalizada, tendo havido uma modificação da dívida, que se estende, imperativamente, aos garantes da obrigação, nos termos do disposto no artigo 63º do CPEREF, pelo que a declaração do requerido de renúncia ao direito que lhe confere o referido artigo 63º, datada de 2 de Março de 2002, não produz efeitos jurídicos.
3. Desta decisão, recorreu o requerente, concluindo as suas Alegações pela forma seguinte:
A) A norma correspondente ao art. 63º do CPEREF não tem natureza imperativa, podendo ser afastada por vontade das partes ou por acto unilateral do terceiro garante ou coobrigado.
B) A doutrina avisada na matéria interpreta o artigo em causa na perspectiva de que a solução legal pode ser afastada, mantendo-se os direitos relativamente aos coobrigados e terceiros garantes.
C) Este entendimento é aquele que permite o equilíbrio dos interesses de todos os intervenientes: empresa a recuperar, credores e terceiros garantes/coobrigados.
D) A possibilidade de manter os direitos relativamente a estes é também uma garantia que os credores têm de como a medida recuperatória será objecto da devida atenção, já que na maior parte das vezes os terceiros garantes/coobrigados são membros dos corpos sociais que gerem os destinos das empresas;
E) Abona também a favor deste entendimento, o facto de os processos de recuperação de empresa são marcados por uma forte componente da vontade dos intervenientes, ficando para o tribunal o mero controle da legalidade;
F) A decisão em crise viola o art. 63º do CPEREF.
...
II – Fundamentação.
5. Factos a considerar:
5.1. No exercício da sua actividade creditícia, a C celebrou com a Sociedade “E, S.A.” contratos de mútuo, para cuja garantia foram subscritas várias livranças em branco, que a mutuante poderia preencher em determinadas circunstâncias.
5.2. Essas livranças foram avalizadas pelo requerido.
5.3. Com data de 2 de Março de 2002, o requerido, juntamente com outros, declarou à requerente «expressamente renunciar ao direito que lhes confere o art. 63º do Código de Processo Especial de Recuperação de Empresas e de Falências, garantindo desta forma a manutenção dos direitos do referido credor C, S.A.».
5.4. No processo de recuperação de empresa com o nº 661/01, do 3º Juízo cível do Tribunal Judicial de Aveiro, em 7 de Março de 2002, foi aprovada a medida de gestão controlada da referida Sociedade.
5.5. Esta medida foi homologada, pelo que o crédito comum da requerente foi reduzido em 60% e será pago em quinze anos, com um período de carência de três anos.
5.6. A requerente votou favoravelmente a referida medida de recuperação da Sociedade.
6. O Direito.
6.1. O que está em discussão é saber se a norma estabelecida no artigo 63º do CPEREF tem natureza imperativa, de modo a anular a declaração de renúncia do requerido, como se defende no despacho recorrido, ou se tem natureza facultativa, como defende a recorrente.
Estamos do lado do despacho recorrido, quer em tese geral, quer considerando o caso concreto.
6.2.1. A matéria sofreu uma alteração relevante com a aprovação do CPEREF, visto que, anteriormente, o credor conservava todos os direitos contra os coobrigados ou garantes: «conservam, no entanto, todos os seus direitos contra os co-obrigados ou garantes do devedor» artigo 1160º, nº 2, última parte do CPC, na redacção anterior à Reforma de 1995, e artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 10/90, de 5 de Janeiro; cf. Acórdão da Relação do Porto, de 3 de Dezembro de 1996, in CJ XXI, 5, 204, 1ª col... Hoje, as providências de recuperação de uma empresa abrangem a existência e o montante dos direitos dos credores contra os coobrigados ou os terceiros garantes da obrigação, «se os titulares dos créditos tiverem aceitado ou aprovado as providências tomadas ...» artigo 63º, 2ª parte do CPEREF., conforme se decidiu no Acórdão do STJ, de 25 de Junho de 2002: «se o credor aprovar ou aceitar a providência fica impossibilitado de agir contra os coobrigados e garantes, sejam eles solidários ou não e na exacta medida da extinção ou modificação do crédito» Acórdão relatado pelo Sr. Conselheiro Pinto Monteiro, no processo 02A1339 e disponível em www.dgsi.pt..
Ora, uma tal alteração é relevante e significativa.
O legislador passou para um regime diametralmente oposto, exprimindo-se de uma forma imperativa e sem estabelecer qualquer ressalva, o que seria curial face à inércia dos comportamentos - que é uma característica geral, incluindo, se não reforçada, das empresas do sistema bancário -; assim, dado o regime anterior, o legislador contaria com a tendência para se continuar a considerar e a agir como se a medida de protecção da empresa não se estendesse aos terceiros garantes da obrigação.
6.2.2. Portanto, parece-nos que, quando o legislador, depois do regime anterior permitir expressamente a manutenção e imutabilidade da obrigação de garantia, vem dizer que as providências de recuperação afectam a existência e o montante dos direitos dos credores contra os terceiros garantes da obrigação desde que os titulares do crédito tenham aceitado ou aprovado as providências tomadas, o que ele quer é inverter a disciplina legal. Se, entretanto, permitisse que as partes afastassem o novo regime, ele não vigoraria efectivamente, quer pela inércia do que vinha anteriormente, quer por não ser normal as pessoas não afastarem um regime que não lhes é favorável, podendo fazê-lo; as pessoas, em geral, mas, por maioria de razão, as entidades bancárias, cujo negócio é emprestarem dinheiro, mediante garantias. O que se quer dizer é que, se o legislador se empenhou por uma alteração do regime, não quereria que ele não se impusesse aos particulares, sendo que, pelas circunstâncias, isso iria acontecer, na prática.
6.2.3. Uma norma imperativa é aquela que visa «directa e imediatamente impor aos particulares a observância de certo comportamento, de forma tal que os particulares ficam com a liberdade de constituir relações jurídicas que caibam dentro dessas normas, mas não de criarem para si regime diferente do pretendido pelo legislador Professor Pires de Lima, Noções Fundamentais de Direito Civil, Coimbra Editora, 1957, vol. I, pág. 74.. Não obstante elas serem predominantes no direito público, também as há no direito privado, sobretudo quando se pretende «proteger as pessoas econòmicamente débeis ou as pessoas necessitadas, por qualquer circunstância, da tutela legal e ainda as normas que visam combater abusos ou fraudes do comércio jurídico» Autor citado, ibidem..
Sendo certo que, num mundo socio-económico liberal, havia tendência para a restrição do tipo de pessoas qualificáveis como economicamente débeis, tradicionalmente os menores e outros incapazes, no mundo moderno, em que o Estado intervém mais e de forma decisiva na economia, o quadro tem de ser diferente. É assim que entendemos que a intervenção relativamente a empresas em dificuldades, com os problemas sociais e económicos que lhes são inerentes «o descalabro da empresa devedora passou a ser sentido a cada passo, cada vez com maior frequência, ..., mais como uma causa de mal-estar social do que a simples perda dos capitais investidos ...», é a expressão do legislador, no Preâmbulo do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, nº 1, 5º §., caracteriza uma actividade estadual que, ou se impõe aos particulares ou não resulta num trabalho sério e eficaz.
6.2.4. Poder-se-ia pensar que a manutenção integral da obrigação dos garantes se justificava como uma forma de participação na recuperação de uma empresa, de tal maneira que não recaíssem somente sobre os credores as desvantagens dela resultantes. Mas, nesse caso, justificava-se a manutenção do regime anterior ou, pelo menos, que ficasse claro a não imperatividade de um novo regime, diametralmente oposto.
6.2.5. É certo que os Autores citados pela recorrente afirmam, em comentário ao artigo 63º, que se está no domínio de direitos disponíveis Professor Carvalho Fernandes e Mestre João Labareda, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência Anotado, Quid Juris?, 1999, pág. 205: «Em primeiro lugar, visando a solução da lei a tutela de terceiros e estando no domínio de direitos disponíveis, ...».. A afirmação não está fundamentada e insere-se numa perspectiva de discordância da nova solução legal: «deva reconhecer-se que essa (a solução anterior) seria, sem dúvida, a solução mais razoável, na perspectiva da composição justa dos interesses em causa»; «duvidosa, na perspectiva da viabilização da empresa, a regra do art.º 63.º pretende, todavia, tutelar os interesses daqueles que, juntamente com ela, respondem perante os credores» obra citada, pág. 204..
A verdade é que a nova posição da lei «visou, ..., assegurar a protecção de terceiros que, uma vez aprovada a medida e satisfeito o crédito, poderiam ficar numa situação de impossibilidade ou grave limitação no que respeita ao exercício do direito de regresso contra a empresa» ibidem.. E, então, voltamos ao mesmo: se a lei pretende este objectivo - com o que todos estamos de acordo -, ele só será satisfeito, pelo menos numa fase de mudança legislativa e de adaptação, se for imposto às partes, caso contrário, sairá, com certeza, frustrado, como é visível no caso deste processo, como nos demais, porque, repete-se, não se vê que um credor deixe de fora uma garantia, podendo não o fazer; um credor especializado no tipo de negócio em causa, que se movimenta no mercado e pressionado pela sua lógica.
A nossa perspectiva é a mesma da recorrente e dos referidos Autores, mas vista de ângulos opostos: eles afirmam que a nova disciplina legal, a ser imperativa, iria dificultar os acordos, nós afirmamos que a disponibilidade das partes para saírem fora da disciplina legal, deixaria de «tutelar os interesses daqueles que, juntamente com ela (empresa), respondem perante os credores», deixaria de «assegurar a protecção de terceiros que, uma vez aprovada a medida e satisfeito o crédito, poderiam ficar numa situação de impossibilidade ou grave limitação no que respeita ao exercício do direito de regresso contra a empresa».
E esta hipótese verificar-se-ia porque o garante está numa situação negocial debilitada, fraca, pelo que aceitará as condições impostas pela contra-parte, com poder para impor o que lhe interessa. Estamos, efectivamente, perante relações jurídicas em que o desnível da posição das partes é acentuado e pode levar a situações que o direito considera intoleráveis, como também se passa no direito laboral, em contratos de adesão, etc..
Se a recorrente e os Autores em que se apoia fazem o enfoque da situação pelo lado dos credores, muito embora, também refiram os reflexos negativos que possam advir para as empresas-devedoras, haverá a tendência para diminuírem o alcance da norma que visa a protecção dos terceiros-garantes; se o legislador faz o enfoque pelo lado dos terceiros-garantes, é natural que o intérprete aumente o seu alcance e lhe dê consistência. Portanto, a discordância dos referidos Autores quanto ao novo regime, poderá justificar a sua posição quanto à natureza facultativa da norma.
6.2.6. Porém, os Autores também sentem que a questão traz problemas pelo lado do terceiro garante: «Por outras palavras, nada impede o afastamento da solução legal, quando o credor e terceiro obrigado ou garante convencionem a manutenção dos direitos daqueles contra estes, mesmo que o credor vote favoravelmente uma medida modificativa ou extintiva do crédito contra a empresa. E, pelo menos em certos casos, isso será mesmo da conveniência do obrigado, designadamente quando ele próprio obtenha do credor alguma contrapartida, como seja a subsidiariedade da sua obrigação, redução do seu montante ou, mesmo, uma simples moratória» obra citada, anotação ao artigo 63º, página 205; grifámos..
Ora, esta afirmação, suscita as seguintes reflexões:
a) ela ajudará a compreender que o Sr. Juiz tenha escrito que «se o credor não quer perder as garantias decorrentes do aval, ou não vota favoravelmente a medida que reduz as obrigações do devedor, ou, ..., celebra um novo acordo com o avalista em que este assuma uma nova responsabilidade» fls. 109; grifámos., sem que se lhe possa imputar que deixa «entrar pela janela o que impede (...) de entrar pela porta» Alegações, a fls. 4, 2º §., pois, na verdade, não se diz nem mais nem menos do que os Autores citados pelos recorrentes.
Entre parênteses, diga-se que a questão não está em a nova obrigação do garante surgir no âmbito do aval ou fora dele, mas sim em haver um regime de renegociação quer para o devedor quer para o garante, pelo que não concordamos com a afirmação de que «temos que admitir que se é possível o terceiro garante passar a ser devedor por outra razão para que responda nos mesmos termos contratados aquando dos financiamentos, também é possível que emita uma declaração de renúncia aos direitos que lhe confere o art. 63º do CPEREF» Alegações, a fls. 6, 1º §.. Não, não é isto que dizem os Autores referidos e a questão não está em manter a obrigação inicial, mas, sim, em renegociá-la, como aconteceu com o devedor.
b) a necessidade de afirmar a eventualidade de uma renegociação da dívida do garante - tal como aconteceu com o devedor -, se, por um lado, se adequa com o espírito da lei, já referido, por outro lado, deixa a nu o desequilíbrio que há entre as partes quando essa renegociação não se faz.
c) Mas, essa renegociação não se fará, em princípio, para não dizer nunca: como é que um credor que está em condições de impor a um devedor a manutenção da sua obrigação, como forma de não perder com o acordo de credores que foi feito com o devedor (neste caso, que ainda ia ser feito!), vai prescindir de recuperar o seu capital e lucros, de forma imediata e lateral?
d) Por isso quando os recorrentes apoiam a sua interpretação na «necessidade de flexibilizar o regime do art. 63º com a primazia da recuperação das empresas» Alegações, a fls. 4, 4º §., nós dizemos que se trata, antes, de esvaziar o regime do artigo 63º.
e) E como, na verdade, «é usual no crédito bancário que os terceiros que prestam as garantias coincidam com os corpos gerentes das sociedades que se apresentaram à recuperação» Alegações, a fls. 5, 2º §., é fácil impor o esvaziamento do regime do artigo 63º e é aí que reside a fonte de um desequilíbrio intolerável.
6.3. O que dissemos atrás, tem constatação no caso concreto em apreciação: o credor votou a medida de recuperação do devedor, mas exige do garante a totalidade do seu crédito inicial; ou seja, a renegociação do crédito não abrange a obrigação do garante. Assim, verdadeiramente, o que há é uma transferência da responsabilidade do devedor para o avalista.
E a declaração de renúncia tem data anterior à da votação da medida de recuperação, o que vem reforçar a possibilidade de situação de desnível negocial exagerado.
6.4.1. Se pode haver aspectos negativos por se limitar o poder dos credores sobre os terceiros garantes, também os haveria se se viesse a estabelecer um regime financeiro em que o crédito fosse concedido a contar com os garantes, subvalorizando-se a capacidade económica do futuro (a) e do actual (b) devedor, porque «a intervenção dos poderes públicos para aplicação de recuperação económica de empresas insolventes, que envolvem sempre sacrifícios mais ou menos pesados para muitas empresas credoras para a recorrente, não, segundo o método pretendido!, só tem justificação plena, ao nível da própria economia nacional globalmente considerada, quando (a) e enquanto (b) o comerciante ou a sociedade comercial devedora se possam realmente considerar como unidades económicas viáveis» Preâmbulo do Decreto-Lei nº 132/93, nº 2, 2º §.. Ora, se por um lado o credor mais dificilmente votaria a medida de recuperação, pelo outro lado aprovava-o sempre ou, pelo menos, sem grandes preocupações, porque o seu crédito era independente do estado económico da recuperanda, claudicando «toda a legitimidade dos sacrifícios impostos, em nome da solidariedade nacional, às múltiplas entidades credoras» Preâmbulo do Decreto-Lei nº 132/93, nº 2, 3º §. que não se socorressem do pagamento dos garantes.
6.4.2. Nem sempre se pode dizer que, para o terceiro garante, seja mais útil a recuperação da empresa, como disse a recorrente com a intenção de justificar o sacrifício daquele, mesmo aos próprios olhos do sacrificado e, consequentemente, a renúncia aos seus direitos; obviamente, que, em termos gerais, a recuperação é sempre a melhor solução para toda a gente. Mas, em caso de falhanço ou desse terceiro não poder suportar o seu sacrifício, pode a empresa, apesar de tudo, ter património - e até com expressão relevante, embora sem liquidez -, pelo que a dívida do garante pode ser menor ou ter melhor possibilidade de exercer direito de regresso.
6.5. Chegados ao fim, apetece voltar atrás para reforçar a questão do desequilíbrio de posições entre o credor de cujo voto pode depender a medida de recuperação da empresa e o terceiro avalista, sobretudo quando é sócio ou tem interesses na referida empresa.
6.5.1. O princípio da liberdade contratual artigo 405º do Código Civil., quer na sua vertente de conclusão ou celebração dos contratos, quer na de modelação do conteúdo contratual Professor Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 65 e ss., teve, tem e terá uma importância primordial no direito civil, é e será princípio fundamental do direito privado. Mas, esta realidade não significa que este princípio, como os outros, não vá sofrendo evoluções ao longo do tempo. Citámos, atrás, o Sr. Prof. Pires de Lima, a propósito das normas imperativas, propositadamente para dar a dimensão inter-temporal de um princípio fundamental de direito e, ao mesmo tempo, fazermos o confronto, no tempo, do princípio da liberdade contratual, uma vez que aquela afirmação, hoje, teria de ser retocada: também as há, as normas imperativas, no direito privado, mas hoje cada vez em maior número e nos mais variados sectores da actividade sócio-económica cf. Prof. Rui de Alarcão, Direito das Obrigações - síntese das lições ao 2º ano jurídico, 1977-78, págs. 112 a 118.. A evolução que houve na economia, em que o Estado teve de introduzir a sua “mão” para corrigir graves entorses, permitidos pela “mão invisível”, e reconduzir o curso da vida social e económica, teve repercussões no direito e precisou da sua colaboração, obrigando o legislador a intervir directamente em matérias que, em princípio, haveriam de ficar no domínio da função deliberativa e conformadora dos sujeitos privados, por entender que nem sempre eles estão numa posição de igualdade e de liberdade que lhes permita prosseguir objectivos supra-individuais e com importância social e ética para o Estado. Como diz Karl Larenz, «para o contrato exercer de modo pleno a sua função, é essencial que vigore entre as partes o princípio da igual consideração e que uma e outra possam agir por sua própria e livre vontade» citado pelos professores Antunes Varela e Rui de Alarcão, in Das Obrigações em Geral, Almedina, 2ª edição, 1973, I vol. pág. 203, nota 1, e Obrigações, lições policopiadas, pág. 105.. E é esta reserva que permite explicar algumas das restrições impostas à regra da liberdade de conteúdo, uma vez que o contrato, além de expressão da autonomia da vontade individual, também é um “instrumento de cooperação” entre as pessoas, no plano dos valores que o direito é chamado a servir Professores Antunes Varela, Rui de Alarcão, nos locais citados, e Mota Pinto, obra citada, pág. 71..
Neste quadro, se, porventura, a norma em questão não fosse imperativa, existindo manifestamente a necessidade de obstar a eventual abuso da autonomia contratual, teríamos de chegar à conclusão que a renúncia, antecipada, ao direito que o avalista tinha, viola a ordem pública, nos termos do artigo 280º, nº 2, instituto que intervém quando não exista preceito proibitivo do contrato ou de cláusula contratual cf. Prof. Baptista Machado, Obra Dispersa, “Scientia Iuridica, Braga, 1991, vol. I, págs. 641 e 642.. A ordem pública é constituída pelo «conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas» Prof. Mota Pinto, obra citada, pág. 434.. No caso da recuperação de empresas, o legislador apela «vivamente para os deveres de solidariedade económica e social que recaem sobre os credores» Preâmbulo do Decreto-Lei nº 132/93, nº 6, 7º §., dando ele próprio o exemplo, na medida em que consente a extinção dos seus créditos privilegiados, com a declaração de falência artigo 152º do CPEREF.. Conforme ensina o Sr. Prof. Baptista Machado «a ordem pública representa, assim, o próprio quadro de funcionamento normal das instituições e rege tudo o que o direito entende não dever abandonar à vontade dos indivíduos» e tem uma função limitadora da vontade contratual obra citada, pág. 643..
Ora, o quadro que se nos apresenta - renúncia de direito do avalista no contexto da recuperação de empresa, com conexão grande entre aquele direito e esta recuperação -, é tipicamente um daqueles que está sob a mira das preocupações e funções da ordem pública. Estamos num sensível domínio do social e da economia, cuja importância já levou a doutrina francesa a distinguir, dentro da ordem pública económica e social complementar da ordem pública política e moral., a “ordem pública de protecção”, com a consideração devida pela “organização económica” ao lado de valores já tradicionalmente considerados: a instituição familiar, a administração pública e os direitos fundamentais da dignidade e liberdade das pessoas Prof. Baptista Machado, obra citada, pág. 643..
6.5.2. Na parte inicial, começámos por uma abordagem geral para, depois, considerar o caso concreto. Também agora, para fazer uma ligação entre o que se acabou de dizer e o caso concreto em análise, continuaremos a dar a palavra ao Sr. Prof. Baptista Machado: «se a proibição do abuso ou do excesso tem mais frequentemente a ver com o exercício de quaisquer direitos ou poderes, ela não pode deixar de repercutir-se também na invalidade de cláusulas de renúncia a faculdades que o direito reconhece justamente para evitar que algum dos contraentes fique sujeito a sacrifícios irrazoáveis ou inexegíveis. Nesta categoria cabem os contratos ou as cláusulas “amordaçantes”, ou seja, aquelas que limitam desmesuradamente (excessiva e irrazoavelmente) a liberdade pessoal ou económica de uma das partes ... . No número destas cláusulas ditas “amordaçantes” poderemos incluir as cláusulas de perpetuidade, ou de renúncia antecipada ao direito de ... » ibidem, pág. 644.; «... renúncia antecipada ao direito de denúncia, em contratos duradouros», que era o caso analisado pelo Autor. Se vemos bem, no nosso caso, há o mesmo excesso e irrazoabilidade, por causa da “mordaça” em sentido figurado, significa repressão de liberdade de falar ou de escrever. em que ficaria um terceiro garante de uma obrigação em que o devedor principal era beneficiado com uma medida de clemência daquele que, entretanto, afinal, não quer mesmo prescindir do seu crédito, não obstante ter parecido querê-lo aquando da respectiva deliberação.
O processo de recuperação deve ser encarado como um sistema unitário, no qual não faz sentido “votar” em dois lados ao mesmo tempo: na deliberação para aprovação de medida de recuperação e na execução do terceiro garante. Parece-nos que as preocupações com as facilidades fiscais e a correcção de injustiças nesse domínio, como, por exemplo a possibilidade de serem registados como perdas efectivas os sacrifícios de carácter patrimonial suportados pelos credores em prol da recuperação da empresa, dão bem essa dimensão sistémica.
6.6. Nestes termos, consideramos que a norma estabelecida no artigo 63º do CREEF é imperativa, no sentido de afectar os direitos dos credores que votaram a providência de recuperação contra os terceiros garantes da obrigação e, mesmo que assim não fosse, a renúncia antecipada ao respectivo direito seria nula por contrária à ordem pública, tudo nos termos previstos no artigo 280.
III – Decisão.
Pelo exposto, negam provimento ao agravo, confirmando o decidido em primeira instância.
Custas pela recorrente.
16 de Março de 2004.